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    Minha História

    VALDIR DA SILVA, 41

    Sou feliz sem enxergar, diz homem que virou fotógrafo após ficar cego

    Depoimento a
    PAULA SPERB
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA,
    EM PORTO ALEGRE (RS)

    09/03/2017 02h00

    RESUMO Após um acidente de trabalho em uma fábrica de sapatos que o fez perder a visão gradativamente até ficar cego, Valdir da Silva, 41, ficou desesperado. Mas depois aprendeu a fotografar usando sentidos como audição e tato. "Hoje, se alguém perguntasse se eu queria enxergar de novo, eu responderia que não. Sou feliz do jeito que sou", afirma o gaúcho, que dá palestras motivacionais e agora planeja filmar um documentário.

    *

    Nasci em Taquaruçu do Sul, no norte do Rio Grande do Sul, e deixei o interior em busca de trabalho. Aos 19 anos, consegui um emprego em uma fábrica de sapatos na região metropolitana de Porto Alegre. Trabalhei por cinco anos como auxiliar de montagem: lixava a palmilha do calçado, passava cola, colocava os acessórios.

    Certo dia, a ponta de uma tachinha saltou no meu olho direito. Por causa da dor do ferimento, virei para o lado e, sem querer, bati em um galão de solvente que derramou nos meus dois olhos.

    O oftalmologista da clínica da empresa limpou os resíduos e me liberou para continuar trabalhando. Só que começaram a aparecer problemas, como infecções. Então, consultei com outro médico e ele diagnosticou que em seis meses eu acabaria perdendo a visão. Eu tinha 24 anos. Descobrir que ficaria cego me deu um desespero.

    'VIDA ACABOU'

    Fui para casa, onde morava com minha irmã, e pensei: "Vou dar um fim na minha vida. A minha vida acabou". Em seis meses perdi a "janela da alma", como a gente fala sobre os olhos foi difícil.

    Comprei uma corda e, no momento que fui colocar no meu pescoço, passou um filme na minha cabeça. Percebi o quanto estava sendo egoísta, pensando apenas na minha dor. Não estava pensando na dor da minha família, dos amigos. Aquilo me fez voltar à realidade. Acabei percebendo que a vida tinha outras oportunidades.

    RETOMADA

    Hoje, se alguém perguntasse se eu queria enxergar de novo, eu responderia que não. Sou feliz do jeito que sou. Sou casado e tenho uma filha de cinco anos, a Vitória. Descobri a felicidade com a minha deficiência. Busquei a reabilitação e aprendi braille em oito meses, aprendi a me locomover e aprendi a desenhar.

    Há uns quatro anos, a professora da Associação dos Deficientes Visuais de Canoas (Adevic) me lançou um desafio: a fotografia. "Um cego fotografando?", perguntei. "Tu tem (sic) os outros sentidos", ela incentivou. Comprei uma máquina simples e ela foi me dando dicas.

    O SOM E O TATO

    Sou apaixonado por fotografar aquilo que não posso ver e já fiz diversas exposições. Se escuto determinado barulho, sei que ali tem uma árvore. Se escuto um passarinho cantando, se ouço uma pessoa falando, mais ou menos defino a distância e a altura. Para fotografar o mar, também me guio pelo som.

    Quando as ondas se formam, elas têm um barulho; quando quebram, têm outro som. Existe um espaço de tempo que tu tem (sic) que clicar, isso que é legal.

    A busca por esse espaço de tempo, por aquele pôr do sol que tu vai (sic) sentindo o calor diminuindo e daí vai batendo a foto. Uso vários sentidos, como o tato e a audição. Só não tenho a visão, que é o sentido mais usado na fotografia. Mas aí é que está o barato: as pessoas enxergam o mundo muito visual e esquecem da essência.

    Também faço palestras motivacionais. Meu sonho é ter um equipamento profissional, porque quero filmar um documentário sobre pessoas com deficiência e conscientizar sobre a acessibilidade. Não basta acesso arquitetônico, é preciso acesso humano.

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