• Cotidiano

    Friday, 03-May-2024 19:33:47 -03

    Tratamento de infarto tem via-crúcis e abismo entre SUS e rede privada

    CLÁUDIA COLLUCCI
    ENVIADA ESPECIAL A ARACAJU (SE)

    30/03/2017 02h00

    Adriano Vizoni/Folhapress
    ARACAJU - SE - BRASIL, 23-03-2017, 15h20: SUS x HOSPITAIS PARTICULARES. Um grupo de medicos preparou um estudo com pacientes coronarios que aponta um enorme abismo entre o SUS, programa de saude do governo federal e os hospitais privados. O indice de obito do SUS e de 80%, enquanto da rede privada esse numero cai para 20%. Pacientes nos corredores do Hospital de Urgencias de Sergipe (HUSE). (Foto: Adriano Vizoni/Folhapress, SAUDE) ***EXCLUSIVO FSP***
    Pacientes nos corredores do Hospital de Urgências de Sergipe (HUSE).

    Naquele domingo, Maria Francisca do Nascimento, 68, acordou com enjoo e dor no peito. No hospital público de Estância, a 66 km de Aracaju (SE), recebeu soro e, três horas depois, foi liberada.

    Na madrugada de quinta (23/2), o desconforto voltou acompanhado de dificuldade de respirar. Às 6h, foi levada para o hospital, e recebeu soro o dia todo. No fim da tarde, uma médica decidiu pedir um eletrocardiograma, que diagnosticou o infarto.

    Mas o hospital, assim como outros no interior e na capital, não tem estrutura para tratar infartados, nem mesmo usa trombolítico, medicação que pode desobstruir a artéria, ajudando a estabilizar o doente até a chegada a um centro especializado.

    Só às 21h, 15 horas após a internação, é que Maria foi levada ao Hospital Cirurgia, em Aracaju, o único que atende pacientes infartados do SUS no Estado. No cateterismo, ela piorou, desenvolveu insuficiência cardíaca e, depois, falência renal. No dia 19 de março, a aposentada morreu.

    "Dói saber que minha mãe poderia ter sobrevivido se tivesse tido um atendimento mais rápido. Os médicos acreditam que, pelos sintomas, ela possa ter tido o primeiro infarto no domingo, mas ninguém no hospital percebeu", lamenta o filho Marcelo, 39.

    O diagnóstico tardio e a longa espera para conseguir tratamento do infarto, uma das principais causas de morte do brasileiro, está fazendo com que a taxa de mortalidade de pacientes do SUS de Sergipe seja o dobro em relação aos que têm planos de saúde e são tratados em hospitais privados (10,3% contra 4,9%).

    A conclusão vem de estudo inédito de um time de 36 pesquisadores, a maior parte da Universidade Federal de Sergipe, que acompanhou por um ano e quatro meses 460 vítimas de infarto atendidas nos hospitais especializados em cardiologia do Estado (um público e três privados).

    O número representa pouco menos de um quarto dos prováveis casos de infarto previstos no período para o Estado. Muitos pacientes morrem antes de chegar a uma unidade especializada.

    O trabalho, financiado pelo CNPq e apresentado em congresso americano de cardiologia há duas semanas, demonstra cientificamente várias disparidades entre os dois sistemas de saúde. Para os pesquisadores, ele funciona como um "laboratório" do que ocorre no resto do país.

    A pesquisa tem um acrônimo emblemático: Victim (Via-Crúcis para o Tratamento do Infarto do Miocárdio).

    "O paciente SUS tem experimentado uma verdadeira via-crúcis para ter acesso ao sistema de saúde e isso o torna uma vítima da ineficiência desse sistema", diz o cardiologista José Augusto Barreto Filho, professor da Universidade Federal de Sergipe e coordenador do estudo.

    SUS X PLANO DE SAÚDE - Sistema público tem o dobro da mortalidade em relação aos planos de saúde em SE

    A iniquidade já fica flagrante na distribuição dos equipamentos de saúde: 84% dos sergipanos são dependentes do SUS, mas só contam com um hospital que faz atendimentos cardiológicos. Ainda assim, a unidade ameaça suspender atendimento por atrasos nas verbas de custeio. Os usuários de planos (16%), têm três hospitais privados.

    No SUS, apenas 47,5% dos pacientes chegaram em tempo hábil para tratamento do infarto, que deveria ser inferior a 12 horas. No privado, esse número foi de 80,5%.

    Segundo Barreto Filho, quanto mais cedo a artéria obstruída for aberta (por medicação ou stent), maior será a preservação do músculo cardíaco e menores serão as taxas de mortalidade e de insuficiência cardíaca.

    "A maioria dos pacientes do SUS está chegando fora dessa janela por falta de acesso a um cuidado adequado. Isso é mortal", diz. Com 20 a 30 minutos de oclusão, há morte do músculo cardíaco.
    O tipo de infarto estudado (supra ST) é caracterizado por obstrução total da coronária.

    Outra falha apontada no estudo: só 42,5% dos pacientes do SUS foram tratados com reperfusão (terapia que restaura o fluxo para o músculo cardíaco ameaçado pela oclusão da artéria). No setor privado, a taxa foi de 73,1%.

    DIAGNÓSTICO

    São vários os entraves para o acesso ao hospital especializado, a começar pela chegada inicial a uma unidade de saúde. "Poucos conseguem ambulância. A maioria chega na garupa da moto, de bicicleta ou andando a pé mesmo. Alguns até deixam o cachorrinho na porta do hospital", relata Jeferson Cunha Oliveira, um dos pesquisadores que ajudou na coleta dos dados no interior do Estado.

    Há barreiras também no diagnóstico. O eletrocardiograma é feito nos hospitais regionais, mas quem dá o laudo é uma equipe de telemedicina na Bahia. O resultado costuma ser rápido, porém, nem sempre há alguém à espera do laudo na outra ponta.

    "É comum o resultado chegar e demorar para ser visto [no computador]. O paciente fica lá no corredor, infartado, sem assistência", diz o cardiologista Fabio Serra Silveira, coordenador da unidade vascular do Hospital Cirurgia.

    Segundo ele, o ideal seria que, ao sair o laudo, o paciente já recebesse trombolíticos. Só 3,7% dos pacientes receberam a medicação no SUS. "O remédio reperfunde [abre as artérias] em 60% dos casos, mas deve ser feito nas primeiras três horas. Tempo é músculo", diz o cardiologista José Eduardo Ferreira.

    48 HORAS DE ESPERA

    A via-crúcis do aposentado José Izídio de Santana, 79, começou na manhã do dia 5 de setembro do ano passado, quando sentiu fortes dores no peito e ânsia de vômito.

    Duas horas após chegar ao hospital municipal Nestor Piva, em Aracaju, exames de sangue e um eletrocardiograma comprovaram o infarto.

    Adriano Vizoni/Folhapress
    ARACAJU - SE - BRASIL, 23-03-2017, 15h20: SUS x HOSPITAIS PARTICULARES. Um grupo de medicos sergipanos preparou um estudo com pacientes coronarios que aponta um enorme abismo entre o SUS, programa de saude do governo federal e os hospitais privados. O indice de obito do SUS e de 80%, enquanto da rede privada esse numero cai para 20%. O aposentado José Isidio de Santana, 79, infartou e demorou 48 horas para ser atendido no Hospital Cirurgia, em Aracaju. (Foto: Adriano Vizoni/Folhapress, SAUDE) ***EXCLUSIVO FSP***
    José Isidio de Santana, 79, infartou e demorou 48 horas para ser atendido no Hospital Cirurgia, em Aracaju

    "Ele estava sentado numa cadeira dura e sentado continuou a tarde e a noite toda. Estava agoniado, com dor, mas diziam que não tinha vaga no Cirurgia [único hospital que faz angioplastia pelo SUS]. Mas depois soube que nem chegaram a solicitar a vaga", lembra a filha Leonisia Santa de Oliveira, 52.

    Na madrugada, houve troca de turno, e o médico que assumiu o plantão dispensou Santana. "Disse que era melhor ir pra casa porque não tinham o que fazer lá."

    Pela manhã, a filha saiu à procura de um cardiologista particular. Conseguiu um encaixe e, após repetir os exames, o médico a alertou que o pai estava tendo o segundo infarto e que precisaria de atendimento com urgência. "Corre, porque do próximo ele não escapa", disse ele.

    Ao retornar ao hospital municipal, o aposentado voltou para a cadeira. "Passou a tarde, a noite e só na manhã seguinte uma médica abençoada se indignou com a situação dele e conseguiu a transferência [para o hospital especializado]", diz a filha.

    Como já tinha passado muito tempo, os médicos decidiram estabilizar Santana e marcar um cateterismo para a semana seguinte. No dia 12, ele recebeu um stent e, 24 horas depois, estava de alta.
    "Só sobrevivi por Deus e porque tenho boa saúde. Não fumo, não bebo e me movimento muito o dia todo."

    Segundo o cardiologista José Augusto Barreto Filho, a demora para o encaminhamento de pacientes infartados na capital sergipana para atendimento cardiológico especializado tem sido "injustificável". "A rede está totalmente desarticulada."

    Nas horas que passou no hospital municipal, Santana também não recebeu trombolítico –medicamento que pode desobstruir a artéria.

    "O uso da medicação não é rotina nos hospitais não especializados, só é feito de forma esporádica, o que pode ser um fator de pior prognóstico", explica a enfermeira Laís Costa Oliveira, que estudou no mestrado as disparidades no uso de terapias de reperfusão para infartados.

    O estudo VICTIM também aponta que 98,4% dos pacientes infartados do SUS tiveram que passar por uma ou mais unidades de saúde antes chegar ao hospital especializado em cardiologia. Entre os pacientes privados, só um terço fez isso.

    "Temos pacientes que já infartaram perto do hospital [Cirurgia], mas não puderam ser atendidos porque não têm acesso direto, contraria a regulação [pelas regras do SUS, ele precisa de encaminhamento]. Isso gera atraso na assistência", conta o cardiologista Luiz Flávio Prado.

    Apesar de Sergipe ser o menor Estado do país, com municípios no máximo 200 quilômetros distantes da capital, Aracaju, o paciente do SUS demorou 27 horas, em média, para chegar ao hospital especializado –tempo quase três vezes maior do que o paciente do sistema privado.

    PRIVADO

    O professor aposentado Felisnei Costa Souza, 65, não levou mais do que duas horas entre o início dos sintomas do infarto e o recebimento de um stent cardíaco em um hospital privado de Aracaju.

    Foi em 15 de fevereiro de 2015. Por volta das 23h, ele começou a transpirar muito e sentir um desconforto no peito. Os filhos acionaram o serviço de emergência do plano de saúde e, ao mesmo tempo, o Samu, que foi mais rápido. Em cerca de 20 minutos, a ambulância já estava na garagem de Souza.

    Ao chegar ao hospital São Lucas, uma equipe já o esperava no pronto-atendimento. Ele foi levado ao setor de hemodinâmica, onde já fez a angioplastia com stent.

    "Não posso me queixar de nada. Fui muito bem atendido. Não sei se estaria vivo se tivesse que depender do SUS", diz ele, que paga R$ 1.900 por um plano de saúde.

    A professora aposentada Regina Bicudo Krempel, 65, também não tem do que se queixar. Do SUS.

    Ela começou a se sentir uma pressão no peito por volta das 8h do dia 18 de outubro, quando se preparava para ir à aula de hidroginástica. Chamou a vizinha, que logo suspeitou de infarto e acionou os filhos de Regina.

    A filha trabalha no Samu e o filho é medico no Hospital Cirurgia. "Em menos de 40 minutos o Samu já estava em casa com cardiologista e tudo. Eram quatro médicos e paramédicos do lado da minha cama", lembra.

    Como servidora estadual, ela tem um plano de saúde que só dá direito a atendimento cardiológico no hospital filantrópico que atende o SUS. Mas como o plano exigia antes um encaminhamento, o cardiologista decidiu levá-la direto ao Cirurgia.

    "Em uma hora e meia, eu já estava fazendo o cateterismo e recebendo um stent. Foi pelo SUS. Só depois é que chegou a autorização do convênio", conta Regina.

    "O atendimento foi rápido porque a gente tem conhecimento. Outros pacientes do SUS não tiveram a mesma sorte."

    OUTRO LADO

    O secretário municipal da Saúde de Aracaju, André Sotero, reconhece que a situação da área da cardiologia no município é de "grande precariedade. "Nada pode nem deve ser negado", disse em mensagem de texto.
    Ele afirma que encontrou uma secretaria totalmente sem estrutura e repleta de dívidas. "Tinha hospital que não recebia desde maio."

    Segundo Sotero, a prefeitura tem honrado todos os compromissos desde o início da gestão. "Já pagamos a inúmeros fornecedores. Quem um dia me suceder, receberá uma secretaria muito melhor do que a encontrada."
    Sobre o estudo VICTIM, ele disse que vai analisar todas as falhas de assistência apontadas para ver o que é possível corrigir prontamente.

    Procurado desde sexta (24), o secretário de Estado da Saúde do Sergipe, José Almeida Lima, não respondeu.

    Por solicitação do assessor de imprensa, Caio Guimarães, a Folha enviou na sexta os principais resultados do estudo e solicitou que o secretário comentasse as disparidades do atendimento no SUS.

    A reportagem também questionou por que só há um hospital referência do Estado para tratar infarto de pacientes do SUS e como o governo pretende solucionar a crise do setor, já que esse hospital ameaça parar o atendimento por falta de pagamento.

    Uma ação no Ministério Público diz que há mais de R$ 40 milhões de atraso de pagamentos por parte do Estado e da prefeitura. O secretário municipal negou o atraso.

    A reportagem perguntou ainda a razão de os hospitais regionais e ambulâncias do Samu de Sergipe não utilizarem trombolíticos para estabilizar os pacientes infartados até a chegada à capital.

    Também questionou como o Estado pretende solucionar falhas na rede assistencial, como a falta de ambulância para transportar doentes até Aracaju, e o que vai fazer para evitar que os pacientes continuem morrendo por falta de cuidado adequado.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024