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    Sobre palafitas no Pará, 'cidade do pedal' usa bike até como ambulância

    SÉRGIO RANGEL
    ENVIADO ESPECIAL A AFUÁ (PA)

    03/04/2017 02h00

    Quarta-feira, 23h47, um paciente com a perna quebrada é colocado numa "bicilância" para ser transferido para Macapá. Ele é levado por cerca de 500 metros num quadriciclo improvisado como ambulância, do hospital da cidade ao porto. De lá, deixa terras paraenses e segue de lancha até a capital do vizinho Amapá.

    Na tarde do mesmo dia, três policiais patrulhavam de "magrela" o bairro do Capim Marinho, um dos mais violentos do município. No dia seguinte, por volta das 20h, pilotos de "bicitáxis" se aglomeram em torno do cais esperando a chegada dos passageiros do Amapá.

    No lado noroeste do arquipélago marajoara, formado por milhares de ilhas, Afuá é a cidade do pedal. Em linha reta, ela fica a 256 km de Belém e a 79 km de Macapá.

    Erguido sobre palafitas (estacas que sustentam habitações construídas sobre a água) para escapar dos efeitos das marés, o município paraense faz da bicicleta o principal meio de transporte. Lá, é proibido por lei o tráfego de carros e veículos motorizados.

    As estreitas ruas convivem com o vaivém diário de ciclistas. Chamada de Veneza do Marajó, a cidade de quase 40 mil habitantes tem quase uma bicicleta por pessoa na área urbanizada, onde vive metade da população. O restante mora em áreas ribeirinhas e usa os barcos para se locomover. Na sede, até a polícia faz a sua ronda de bicicleta. As perseguições também são feitas no pedal.

    Os moradores são habilidosos. Quase todos conseguem guiar e segurar uma sombrinha para se proteger do sol forte ou das chuvas. As crianças também cruzam a cidade pedalando.

    "Não queremos o carro aqui. Nossa ruas não suportariam o peso deles. A opção pelo pedal foi acertada. Além disso, a bike nos obriga a fazer um exercício e manter a saúde", afirma Valdinei Garcia, 20, que trabalha como "bicitaxista" na cidade.

    O "bicitáxi" foi criado por um morador nos anos 90. Começou como um triciclo. Hoje, os donos juntaram duas bicicletas e criam um quadriciclo, usado para transportar idosos com dificuldade para locomoção, moradores com malas e visitantes. O posto médico local também tem a sua "bicilância" para socorrer os pacientes.

    PONTES

    Construída em cima de uma área de várzea, a cidade tem palafitas para evitar ficar com ruas e casas alagadas por causa da maré, que oscila durante o dia inteiro. As residências são quase todas de madeira. Como as ruas não têm calçadas, os moradores levantam "pontes" para entrar nas suas casas.

    "Essa foi a solução criativa encontrada pelos moradores para habitar aquela região, que tem uma cota baixa, quase quatro metros abaixo do nível do mar. A cidade está sempre desafiando a água", diz o professor Ronaldo Marques de Carvalho, da faculdade de arquitetura da Universidade Federal do Pará.

    Distante cerca de quatro horas de barco de Macapá e um dos 16 municípios do arquipélago do Marajó, Afuá tem índices sociais baixos –46% da população em pobreza extrema, segundo a Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas. Não há rede de esgoto, e os dejetos das casas são despejados no solo e no rio.

    Açaí (base da culinária local), palmito, camarão e peixes são as principais fontes de renda da população. Apenas seis PMs são responsáveis pela segurança do município. Com a escala, só três trabalham por dia. Furtos de casas e bicicletas são diários. Na cidade há até um desmanche do veículo.

    FERRARI DE MADEIRA

    Pela manhã e no final da tarde, o trânsito chega a ficar intenso nas ruas principais.

    A prefeitura já até tentou ordenar o tráfego nos cerca de 30 km de ciclovias, mas desistiu da ideia. Os acidentes são raros. A agitação fica ainda maior no centro com a trilha sonora de sucessos do carimbó saindo dos alto-falantes espalhados pela rádio comunitária local.

    Os moradores também gostam de enfeitar as bicicletas e os quadriciclos. Alguns chegam a gastar R$ 10 mil para construir seus "carros".

    O vendedor Orderdey Monteiro Lobato, 36, é o dono da "única Ferrari" da cidade. Ele demorou um ano para fazer um quadriciclo de madeira inspirado nos carros da montadora italiana.

    "Sempre quis ter um carro, mas aqui é impossível. Por isso, dei o meu jeito. Posso dizer que sou um dos poucos que têm carro em Afuá", brinca Lobato, que costuma pedalar com o veículo pelas palafitas da cidade nos finais de semana com a mulher.

    Durante o período das cheias do rio Amazonas e de seus afluentes, a água chega a tomar conta das ruas da cidade por horas em março. O fenômeno chamado de lançante é comemorado pela maioria da população.

    "É uma festa para as crianças. Quem mora aqui considera que a água é vida. Então, teremos vida pra sempre. Basta olhar em volta", disse o batedor de açaí Arlindo Batista Pureza Júnior, 44, antes de subir na sua bicicleta.

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