O promotor da área da saúde, Arthur Pinto Filho, vinha conversando com a gestão João Doria (PSDB) nos últimos dois meses sobre a formatação do atendimento aos viciados da cracolândia. Ele ele diz ter sido surpreendido no domingo (21) com uma operação totalmente diferente do combinado.
O membro do Ministério Público classificou a ação como uma "tragédia" e "selvageria". Leia abaixo a entrevista com o promotor.
Rivaldo Gomes - 25.jun.2014/Folhapress | ||
O promotor de justiça da área da saúde, Arthur Pinto Filho |
Folha - Como o senhor vê a operação na cracolândia?
Arthur Pinto Filho - Como uma tragédia. Um equívoco do começo ao fim. Uma ação que não tem nenhuma vírgula do que foi tratado com a prefeitura. Discutimos durante dois meses a elaboração do projeto chamado Redenção. Projeto foi feito, escrito e nos encaminhou projeto para última discussão na quinta-feira. O projeto em nenhum momento traz qualquer coisa que aconteceu.
Qual era o plano?
Iniciar o trabalho com equipes de saúde na região, verificando a situação de cada pessoa. Equipes que trabalhariam por setores de quarteirão. Teriam que trabalhar 24 horas, dia 7 dias por semana.
Há sentido na construção de um centro psicossocial 7 dias após a operação?
Nenhum, porque as pessoas se dissolveram pela região. Os grupos de apoio não tem mais contato com as pessoas. Elas estão vagando. A ideia era, um projeto civilizatório com começo, meio e fim, que daria resultado a médio prazo.
E em relação aos hotéis?
O que se previa era o seguinte: conforme a prefeitura fosse arrumando outros locais longe da cracolândia, as pessoas sairiam tranquilamente dos hotéis já com locais de moradia. O que estão fazendo é uma selvageria. Eles deram duas horas para as pessoas saírem dos hotéis. Estão derrubando tudo. Isso não tem a menor previsão. Fico surpreso e indignado como prefeitura conversa com Ministério Público, Cremesp, Defensoria, com ONGs durante dois meses... Apresenta um projeto e 3 dias antes do projeto entrar em vigor colocam em pauta uma situação que não tem nada a ver com o projeto.
A prefeitura diz que não avisou sua própria estrutura por medo de vazamento da ação policial. O Ministério Público também não foi avisado. Como avalia a tática?
É uma tática que não deu certo. Tenho informação que vários órgãos de imprensa sabiam da operação desde sábado à noite. Já era da conhecimento de várias pessoas que ou trabalham ou residem na cracolândia. Agora, nós não sabíamos. Nem a defensoria. Fomos pegos de surpresa.
A Promotoria vai investigar a GCM por fazer revistas na área. Agora, os agentes também estão fazendo vistoria para verificar situação de pensões? A corporação pode fazer isso?
Poderia ser Defesa Civil ou qualquer outra entidade, menos a Guarda. A Guarda foi criada pela Constituição pra cuidar dos próprios municipais. E ela cuida muito mal. Você for em qualquer hospital de periferia, UBS de periferia ou escola de periferia, você vê que a Guarda não está lá. A GCM está sendo desviada de função para coisa que não sabe fazer e não deve fazer.
Que atitudes o Ministério Público vai tomar?
Estamos absolutamente estupefatos. O que está acontecendo agora naquela região é uma coisa absurda. Não tem paralelo você destruir casas com pessoas dentro. Temos informação que deram duas horas para pessoas saírem de casa sem saber para onde iam. Então nós vamos nos reunir agora porque o que nos parecia uma coisa que poderia até ter um encaminhamento razoável daqui para frente ficou impossível. O que aconteceu ali é uma selvageria que não tem paralelo naquela região. Vamos nos reunir e vamos ver o que vamos fazer.
O governador e a prefeitura adotam discursos dissonantes sobre a operação. Há um descompasso também na na realização operação?
Se não há descompasso não consigo entender com nitidez. Consigo perceber que a prefeitura não se organizou para essa operação. Não tinha um equipamento necessário aberto para colocar essas pessoas. Colocou no Complexo Prates, que já estava super adensado. Você pega a UBS Sé que é importante, está fechada. Não reforçaram nenhum equipamento de saúde. Não reforçaram o CAPs Sé. Então, fica evidente que a prefeitura não estava aparelhada. E não deveria estar mesmo, porque se a ideia era fazer o que aprovaram no projeto, não era para fazer nada disso. Então, é normal que não estivessem. A ideia era progressivamente resolvendo o problema da região. Que não havia um preparo para operação, isso está evidente.
O prefeito pode ser responsabilizado por essas medidas?
Não há dúvida nenhuma. A impressão que me dá é que o comando é dele. Eu posso errar. Portanto, nós vamos instaurar o inquérito de quem foi o comando disso. Quem deu a ordem para derrubar. Com base em quê? Com que técnica? Com motoescavadeira? Essa é a maneira de derrubar um prédio? Com gente do lado?
Ele responderia civilmente ou criminalmente?
É improbidade administrativa [área cível]. Mas para demolir um hotel que não é da prefeitura tem uma série de procedimentos que ele deve adotar. Desapropria, tem que ter alvará de demolição. O objetivo é verificar se cumpriu a lei. Se demoliu de forma ilegal é improbidade administrativa.
E em relação ao governo do Estado, que promoveu a ação policial?
A ação policial não tem avaliação da nossa parte, porque quem está avaliando são os colegas [promotores] criminais. Não tenho nem atribuição para avaliar a ação policial. O problema nosso, que a gente avalia, é o imediatamente depois da operação.
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PLANEJAMENTO
A gestão João Doria (PSDB) afirma que, após a ação policial, está colocando em práticas as medidas de acolhimento e tratamento previstas no programa Redenção. A prefeitura afirmou que a ação foi da polícia "de acordo com critérios de inteligência". "Cabe aos responsáveis pela ação avisar os órgãos competentes e a Promotoria, se for o caso", afirma em nota.
A administração nega que a Guarda Civil tenha feito vistorias em imóveis, o que foi presenciado pela Folha. "A GCM tem a função de acompanhar e proteger os funcionários públicos no exercício de suas funções", diz. O município afirmou ainda que a GCM atua "estritamente" de acordo com a lei que estabelece a conduta das guardas municipais.
Sobre as demolições, a prefeitura afirmou que os imóveis que sofreram intervenções estão vazios e que foram publicados decretos de utilidade pública em relação a eles. "Nos locais onde há moradores, as famílias serão cadastradas pela Secretaria de Assistência Social", afirmou.
O secretário de Obras, Marcos Penido, afirmou que o isolamento deveria ter sido mantido durante a demolição. Segundo a prefeitura, as pessoas que estavam no local haviam sido retiradas antes e chegaram lá por uma entrada clandestina. Os moradores desmentem essa versão. A prefeitura afirma que vai esclarecer todas as solicitações sobre o assunto feitas pelo Ministério Público.
ESTADO
O governo Geraldo Alckmin (PSDB), que faz ação conjunta com a prefeitura, afirma que reforçou o policiamento com 80 policiais da cavalaria e do Choque e Rocam. O Estado afirmou também que a ação integrada com o município já acolheu mais de 500 pessoas e atendeu 219 dependentes químicos no programa Recomeço.
O governo afirmou que também está à disposição do Ministério Público para esclarecimentos, se necessário.
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Programas sociais na cracolândia
RECOMEÇO
Criação: Governo do Estado (jan.2013, sob Alckmin)
Objetivos: Tratar o usuário com medidas ambulatoriais, inclusive internações compulsórias
O que oferece: Acesso a tratamento, internação se preciso, encaminhamento a capacitação e recolocação profissional
Orçamento anual: R$ 80 milhões
Gasto por usuário: R$ 1.350 por mês (internação)
BRAÇOS ABERTOS
Criação: Prefeitura de SP (jan.2014, sob Haddad) - Foi extinto por Doria
Objetivos: Reinserir o dependente na sociedade e estimular a diminuição do consumo de drogas
O que oferece: Moradia em hotéis, 3 refeições por dia, apoio em tratamentos, profissionalização e emprego
Orçamento anual: R$ 12 milhões
Gasto por usuário: R$ 1.320 por mês
REDENÇÃO
Criação: Prefeitura de SP (mai.2017, sob Doria)
Objetivos: Unir os dois programas, visando tanto a reinserção do usuário como o tratamento clínico
O que oferece: Moradia distante do "fluxo", trabalho em empresas privadas e encaminhamento a tratamento
Orçamento anual: Ainda não estimado
Gasto por usuário: Ainda não estimado
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Cronologia
Operações e projetos na região que não deram certo
Set.2005
A gestão Serra-Kassab dá início ao projeto Nova Luz, que pretendia recuperar a área com investimento público e privado, mas o modelo não vingou
Fev.2008
O então prefeito Gilberto Kassab (PSD) afirma que a cracolândia não existe mais. "Não, não existe mais a cracolândia. Hoje é uma nova realidade", declarou. O consumo de drogas, no entanto, continuou explícito
Jan.2012
Polícia Militar intensifica a Operação Centro Legal e ocupa as principais ruas da Luz com cerca de 300 homens. Dependentes que se concentravam na rua Helvétia se dispersam para outros pontos da região
15.jan.2014
Assistentes sociais e funcionários da prefeitura retiram usuários e limpam a rua. Segundo a prefeitura, 300 pessoas foram cadastradas no programa Braços Abertos, da gestão Haddad (PT). O tráfico, porém, persistiu
23.jan.2014
Três policiais civis à paisana vão ao local para prender um traficante e usuários reagem com paus e pedras. A confusão aumentou com chegada de reforços e terminou com cerca de 30 detidos
29.abr.2015
Operação desarticulada da prefeitura e do governo do Estado transforma o centro em uma praça de guerra, com bombas de gás, furtos a pedestres e depredação de ônibus. Dois dias depois, fluxo retornou. Haddad chamou ação de 'sucesso'
5.ago.2016
Polícia realiza operação com 500 homens na cracolândia e ocupação do Cine Marrocos, no centro, e prende ao menos 32 pessoas