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    'Melhor lugar de SP para mim é aqui', diz dono de casarão da cracolândia

    ARTUR RODRIGUES
    DE SÃO PAULO

    27/05/2017 02h00

    Marlene Bergamo/Folhapress
    Flávio Gomes Torres, dono de casarão do século 19 na região da cracolândia, centro de SP
    Flávio Gomes Torres, dono de casarão do século 19 na região da cracolândia, centro de SP

    Quando o engenheiro Flávio Gomes Torres, 56, ia com o pai nos anos 60 ao casarão da família do largo Sagrado Coração de Jesus, no centro de São Paulo, o crack ainda estava longe de ser inventado.

    Era uma vizinhança bonita e cheia de casarões remanescentes da época de ouro do café. Meio século depois, os detalhes arquitetônicos das construções antigas ficam escondidos no cenário de devastação da cracolândia.

    O amor de Torres pela região e pelo conjunto de casarões do século 19 tombados que herdou do pai, no entanto, continua o mesmo.

    A ação realizada pelos governos tucanos de Geraldo Alckmin e João Doria (PSDB) para tirar usuários de droga desse local, "fluxo" de concentração de tráfico até uma semana atrás, provocou a dispersão de dependentes pelo centro e a migração da antiga cracolândia para a praça Princesa Isabel, a 400 metros.

    PARA ONDE FORAM OS USUÁRIOS

    Mas, para o engenheiro, que estava no centro do problema, trouxe a expectativa de que seu endereço volte ao glamour da época em que o bairro era moradia dos barões da cafeicultura paulista. Só espera que seu conjunto de imóveis, onde funciona um condomínio em que vivem dezenas de famílias, não esteja no plano de desapropriações.

    "Meu pai chegou com 31 anos aqui. Não tinha nada. Veio só com vontade de trabalhar. Quando já estava ruim, mantinha firme. Eu vou manter igual. A vida a gente leva por exemplos", diz. "Me perguntam se vou vender para comprar em outro lugar. Eu digo: 'para comprar onde? O melhor lugar de São Paulo para mim é esse aqui'."

    O prefeito pretende desapropriar imóveis na região para a construção de equipamentos públicos e habitação social. Torres argumenta, no entanto, que essa função já é cumprida pelo conjunto de quatro sobrados, onde vivem cerca de 40 pessoas.

    Para evitar que o local vire ocupação de viciados em crack como ocorre em hotéis da região, os inquilinos passam por uma espécie de entrevista. Possuir emprego fixo é uma das exigências.

    A regra foi criada pelo pai do engenheiro, um imigrante português que comprou o primeiro imóvel ali em 1959. Ele ia todo dia ao prédio até morrer, em 2015, aos 82 anos.

    Os filhos assumiram o local e, desde então, Torres vive entre dois extremos. Mora num arborizado bairro de classe média e trabalha no lugar onde se reúnem os mais miseráveis da cidade.

    "Eu ligo a TV e vejo a Síria. Eu sofro, mas não posso fazer nada, mudo de canal e esqueço. Eu moro na Pompeia [zona oeste]. Para os meus vizinhos, a cracolândia é como se fosse a Síria [para mim]", diz. "É diferente de eu abrir essa janela e vir um cheiro de crack que parece um churrasco."

    A proximidade com o tráfico de drogas incluía cuidados especiais, como evitar usar celular próximo das janelas, para evitar que alguém do lado de fora achasse que estava sendo filmado.

    "Um domingo eu estava andando aqui, tinha um encostado na porta com uma arma desse tamanho, no colo, uma arma preta. Eu olhei, ele olhou para mim, eu fiz que nem vi. É o acordo, a gente não mexia com ninguém, eles deixavam a gente na paz. E a gente sobrevivia dessa forma."

    No domingo (21), na operação policial na cracolândia, os policiais entraram chutando e arrombando portas. Mesmo assim, ele apoia a ação.

    "As fechaduras, as portas eu posso consertar. O que eu não posso consertar é o tráfico que tinha aqui na frente", diz ele, que agora já faz planos de reformar a construção.

    Torres sonha com o casarão como o das fotos antigas que ele guarda. Uma das imagens, em preto e branco, mostra a construção pintada de uma cor clara, um descampado que hoje é uma praça cercada e a igreja Sagrado Coração de Jesus. Outra, já colorida, com Fuscas e Brasílias estacionadas em frente ao lugar.

    "Olha que praça que eu tenho aqui na porta. Essa igreja é uma das mais bonitas da cidade, não fica nada a dever para aquela famosa, da Nossa Senhora do Brasil", diz.

    Apesar do medo de que tudo volte a ser como antes, dias após a ação Torres parecia curtir a frágil calmaria que se formou no perímetro original da cracolândia, com crianças jogando bola no largo Coração de Jesus. Já na praça Princesa Isabel, a nova cracolândia crescia, passando de 300 para 600 dependentes entre quarta (24) e sexta (26).

    Colaborou MARLENE BERGAMO

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