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    Doria não fala, e secretário estima recolhimento forçado de cem usuários

    ARTUR RODRIGUES
    DE SÃO PAULO

    27/05/2017 10h59 - Atualizado às 15h27

    A gestão João Doria (PSDB) prevê que pode recolher compulsoriamente até 100 usuários de crack. A estimativa foi feita pelo secretário municipal da Saúde, Wilson Pollara, na manhã deste sábado (27), um dia depois da Justiça autorizar a prática de condução coercitiva.

    "Se consideramos que lá [na cracolândia] tem 600 pessoas, estou falando de 200 com problemas psiquiátricos, das quais de 80 a 100 vão precisar de uma condução coercitiva", disse Pollara.

    Artur Rodrigues/Folhapress
    Prefeito João Doria em evento do programa Cidade Linda, na manhã deste sábado (27)
    Prefeito João Doria em evento do programa Cidade Linda, na manhã deste sábado (27)

    A solicitação da gestão Doria à Justiça foi feita às pressas nesta semana. Ela ocorreu após a desarticulada ação no último domingo (21), quando policiais civis e militares, ligados ao governo do Estado, prenderam traficantes e desobstruíram três vias tomadas havia anos por viciados.

    O novo programa anticrack de Doria, porém, não estava pronto. Uma das promessas era o cadastramento prévio dos usuários, para que recebessem encaminhamentos corretos, como tratamento médico.

    Sem isso, em meio a ações atabalhoadas e discursos oficiais dissonantes, o que se viu foram viciados espalhados pelas ruas e a formação de uma grande concentração deles na praça Princesa Isabel.

    O prefeito, no entanto, se recusou a falar sobre o assunto durante evento do programa de zeladores Cidade Linda, na Pompeia (zona oeste de SP).

    A estimativa do secretário é feita com base em avaliação da prefeitura que mostra que apenas metade das pessoas com problema psiquiátrico aceita tratamento.

    Pollara afirma que a avaliação inicial será feita por agentes de saúde com base em um protocolo estabelecido por psiquiatras. Caso se julgue necessário o recolhimento, isso será feito com uma ambulância. A pessoa será levada a um centro psicossocial, onde um psiquiatra vai avaliar se pede ou não à Justiça a internação compulsória.

    Uma reunião neste sábado na prefeitura irá definir quais os critérios para retirar à força uma pessoa da região da cracolândia. Isso somente poderá ser feito em ação conjunta de agentes de saúde, agentes sociais e integrantes da GCM, a Guarda Civil Metropolitana. Não se sabe ainda, por exemplo: haverá abordagem individual em meio a um grupo de dependentes, o que poderia provocar um confronto? O dependente químico que estiver em condições de ao menos dizer que não quer ser levado poderá ainda assim ser arrastado à força pelos guardas?

    A decisão favorável à retirada de dependentes das ruas à força contraria parecer do Ministério Público e da Defensoria Pública, que entraram com pedidos na Justiça contra a solicitação do prefeito. Na última terça (23), quando a prefeitura encaminhou o pedido à Justiça, Anderson Pomini, secretário de Negócios Jurídicos, afirmou que a utilização da força seria a "última alternativa" para casos graves de dependência.

    PARA ONDE FORAM OS USUÁRIOS

    Advogados consultados pela Folha apontam que a medida de Doria não tem amparo legal.

    Segundo Roberto Dias, professor de direito constitucional da Fundação Getulio Vargas, a internação compulsória é uma prisão disfarçada de tratamento clínico. "A pessoa só pode ser presa se cometer um crime. O usuário de drogas não é criminoso e está causando um mal só para si mesmo", diz.

    Ainda de acordo com Dias, privar o usuário de liberdade em razão do vício poderia gerar outras implicações jurídicas no futuro. "A vítima teria todo o direito de entrar na Justiça com ações de reparação moral e financeira por conta de uma violação muita clara de seus direitos."

    A saída, segundo o advogado, seria construir uma nova política articulada entre os órgãos responsáveis por autorizar o melhor tipo de tratamento para os viciados em drogas, como Ministério Público e a Justiça.

    Duas das três clínicas indicadas à Justiça para receber os dependentes internados compulsoriamente nem oferecem o serviço de internação de usuários de drogas, segundo reportagem do jornal "O Estado de S. Paulo". Uma delas estaria fechada há pelo menos três meses.

    Antes de a decisão judicial sair, Geraldo Alckmin (PSDB), parceiro de Doria na operação da cracolândia, afirmou que não mudaria a estratégia de convencimento dos usuários a entrar no tratamento por vontade própria. O programa estadual de reabilitação, Recomeço, só faz internações à força com mandados judiciais acordados também com a Promotoria.

    "O Recomeço tem quatro anos e meio, internamos 13 mil pessoas. Só 28 foram compulsórios, com ponto de vista psiquiatra, aval do Ministério Público e da Defensoria. Não há nenhuma possibilidade do Recomeço sair desse rumo, que é traçado cientificamente", disse David Uip, secretário de Saúde de Alckmin.

    Descaminhos da cracolândia

    CÓDIGO DE ÉTICA

    O Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) já havia dito que o médico que realizasse o tipo de internação compulsória planejada por Doria poderia responder a procedimento no órgão.

    Na noite desta sexta, o conselho reiterou sua posição em uma nota divulgada com orientações aos psiquiatras sobre internações compulsórias, que, segundo o órgão, deve ser fundamentada minuciosa e individualmente e submetida à decisão judicial. "É absolutamente necessário que se observe que o ato médico da consulta psiquiátrica deve preceder a todo procedimento de hospitalização forçada", afirma.

    "O Código de Ética Médica contém as normas que devem ser seguidas pelos médicos no exercício de sua profissão. A legislação garante ao profissional autonomia suficiente que lhe permita recusar-se a realizar atos médicos que sejam contrários aos ditames de sua consciência e ao melhor interesse da saúde de seu paciente", destaca.

    O conselho diz que isso fere dois artigos do Código de Ética Médica. Um diz que é proibido "deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal". Outro veta "deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo".

    Para o psiquiatra da Escola Paulista de Medicina Dartiu Xavier, que trata dependentes químicos há 28 anos, a intenção da prefeitura é uma "loucura do ponto de vista médico, para não falar na afronta aos direitos humanos".

    O médico diz que 75% dos usuários de crack não são viciados e, dentre os que são, só 1% está psicótico, sem noção da realidade. Apenas nesses casos é recomendada a internação compulsória.

    Segundo Xavier, a forma mais eficaz de tratamento são modelos ambulatoriais como Centros de Atenção Psicossocial. "A dependência não é indicação de internação compulsória, que é uma ação médica excepcional, nunca uma política de saúde", afirmou.

    Editoria de Arte/Folhapress

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