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    Usuário precisa de chance, não de internação à força, diz ex-viciada

    EMILIO SANT'ANNA
    EDITOR-ASSISTENTE DE "COTIDIANO"

    30/05/2017 02h00

    Janaína Xavier, 37, conhece como poucos a cracolândia. Há nove anos, vive o cotidiano da região mais degradada de São Paulo. Entre moradores, usuários e ações policiais, pouca coisa escapou de seus olhos nesse período.

    Ela não pesquisa o vício em drogas, nem investiga as implicações do tráfico. É uma líder comunitária acostumada a, desde a gestão Fernando Haddad (PT), incomodar autoridades municipais com sua briga por melhores condições para os moradores.

    Ao contrário do anúncio do prefeito João Doria (PSDB) nas redes sociais –"a cracolândia acabou"– ela não acredita que isso seja verdade. Não precisou de muito esforço para concluir isso.

    O antigo fluxo, local de venda e uso da droga, ficava a um quarteirão do quarto/cozinha que divide com o marido e quatro de seus oito filhos. O novo, na praça Princesa Isabel, um pouco mais distante: a duas quadras.

    Janaína é uma ex-usuária de drogas que traficava e se prostituía para manter o vício. Recuperada há cinco anos, diz que a ação da polícia que espalhou os usuários pela cidade –e que ela atribui a Doria– foi um fracasso.

    Para ela, que passou a semana ajudando os moradores desalojados, a pior violência é a do Estado, que "não deixa a gente progredir na vida".

    "No pouco estudo e entendimento que tenho, é isso."

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    Marlene Bergamo/Folhapress
    Para Janaína Xavier, 37, líder comunitária, sempre haverá uma cracolândia em SP
    Para Janaína Xavier, 37, líder comunitária, sempre haverá uma cracolândia em SP

    RAIO-X

    Nascimento: 5.mai.1980

    Local: Além Paraíba (MG)

    Atividade: Líder comunitária na cracolândia, onde mora há nove anos

    Trajetória: ex-usuária de drogas, tornou-se referência entre os moradores desde sua reabilitação

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    *

    Folha - Quantas ações policiais você já presenciou desde que vive nessa região?
    Janaína Xavier - Mais de dez. Essa última foi a pior de todas. A gente nunca sabe o que o governo planeja, mas pegou tantos usuários de surpresa como moradores e comerciantes. Chegaram de surpresa e acharam que era um bando de cachorros, de lixo, sabe? Eles não pensaram nos moradores daqui.

    Mas não houve feridos.
    É brincadeira o que eles falam, né? Lá na Dino Bueno mesmo eles foram demolir um prédio, a proprietária paga R$ 4.000 para a imobiliária. Eles entraram e estavam três pessoas dormindo. A parede caiu em cima delas.

    Sim, mais isso foi na terça-feira, dois dias depois, não durante a ação da polícia.
    Teve gente que saiu ferida, sim. Eles estão dizendo isso porque não vão botar a cara. Eu acordei às 6h com o helicóptero por cima da minha casa, sem saber o que estava acontecendo. Quando desci era bomba para cima e para baixo. Isso foi o domingo todo.
    Foi uma coisa horrível, teve casa que as portas foram arrebentadas, com criança dentro, a polícia foi entrando em casa de família achando que elas eram traficantes. Essa ação do Doria foi péssima.

    Teve algum lado positivo? O fluxo não está mais aqui.
    Teve sim, a rua está mais limpa, a gente pode ir e vir. Não quando a polícia "embaça" e para a gente mesmo sabendo que é morador, mas a população gostou, as crianças podem brincar mais, a gente pode andar mais livremente sem correr o risco de uma hora ter um tiroteio. Mas eu fiquei triste por meus irmãos.

    Quem são seus irmãos?
    Os usuários. Um dia eu fui como eles, então tenho eles como irmãos.

    Assista ao vídeo

    Apesar da rua estar limpa, mesmo assim acha que essa ação foi pior do que as outras?
    Eles não pensaram nos moradores que estão ao redor, nas crianças, eles já entraram quebrando sem diferenciar quem era ou quem não era.

    No dia da ação, o prefeito gravou e publicou um vídeo nas redes sociais afirmando que a cracolândia havia acabado.
    Ele só limpou a rua. Tirou da Dino Bueno e eles foram para a praça Princesa Isabel. Mas ele esquece que quando a cracolândia estava ali, tinha famílias em volta. Então ele quer chegar e derrubar aqueles imóveis todos sem saber onde vai colocar as famílias?
    Essas pessoas que não têm moradia, que estão dormindo de favor na casa dos outros, vão pra onde? Os comerciantes que estão com as portas fechadas, vão fazer o que?

    Mas esses hotéis e pensões que estavam no fluxo, na alameda Dino Bueno, não são locais em que ocorriam crimes?
    Não estava lá dentro do fluxo para saber. Só posso falar o que eu vejo.

    A polícia e a prefeitura dizem que eram.
    A gente ouve rumores. Mas aí uma pergunta eu faço para o Doria: por que antes de ele fazer essa ação não mandou um subordinado dele, ou porque ele mesmo não veio aqui, para saber o que era ou não?
    Ele veio [no dia da ação da polícia] falou, fez, passou na TV, mas antes de mudar para a Princesa Isabel ninguém vinha aqui. Usuário não tinha atenção, moradores, comerciantes não tinham atenção.

    O que você achou do pedido de Doria à Justiça para internar usuários à força?
    Não adianta nada. Vai internar, a pessoa vai ficar um tempo determinado, depois vai voltar para a droga. O que elas precisam é de uma chance, uma porta aberta, um emprego. Eles querem uma chance.
    Tem gente ali carente de um abraço, de uma palavra amiga, vai ajudar mais que uma internação à força.

    Você não acha que está sendo inocente?
    Não! Sei muito bem o que estou dizendo. Não é passar a mão [na cabeça] do errado. O errado tem que ser corrigido. Para você que não passou por essa vida, como eu passei, pode não entender.

    Qual o perfil do traficante que atua aqui na cracolândia?
    Esses traficantes que as pessoas dizem que têm casa, têm isso, têm aquilo, têm tudo, eu não conheço nenhum. Que eu saiba os traficantes estão dentro do governo.

    Como assim?
    Porque eles mesmos [governantes] roubam a população e não ajudam a gente em nada, não dão chance de a gente seguir [progredir] na vida. Quem vende a droga são os próprios usuários que compram para poder revender e consumir. Se o governo investisse na saúde, na educação, no povo, não estava acontecendo o que está acontecendo hoje no país. No pouco estudo e entendimento das coisas que tenho, é isso.

    Há relatos de que nos últimos meses a situação estava se agravando, que técnicos de saúde já não podiam entrar mais no fluxo. A cracolândia estava ficando mais violenta?
    Estou sempre perto de agentes de saúde, nunca me relataram. Eles viviam lá dentro, como não podiam entrar? Uma ação gera reação. Se você é tratado com violência, vai reagir com violência.

    Quantas vezes já ouviu um político dizer que a cracolândia iria acabar? Você acha que isso é possível acontecer?
    Quando o Doria entrou, foi o lobo vestido de ovelha, deu um bote muito grande. Sempre, em qualquer lugar, vai ter uma cracolândia. Pode ter limpado a rua, mas os usuários vão estar sempre em algum lugar. O Doria tirou da alameda Dino Bueno, e eles estão na praça. Se agora tirarem da lá, ele vai colocar onde, na casa dele?

    Quem é mais presente aqui, o Estado ou as ONGs?
    A igreja.

    Como você se tornou líder comunitária na cracolândia?
    Incomodei muito [a gestão Haddad]. Gosto de ir pelo certo e muitas coisas que a gente ia procurar saber não nos davam atenção. Desde o começo do programa Braços Abertos [ação baseada na redução de danos criada por Haddad], quando tinha algum problema com usuários, a polícia estava tratando mal, eu ia lá. Não queria que essas pessoas passassem o que eu já tinha passado. Por isso que o pessoal aqui me tem, não sei, como um braço forte.

    Vocês já sabem o que vai acontecer com quem faz parte do programa Braços Abertos?
    Não. A gestão Doria não falou nada. Nem eu nem as pessoas que estão morando [nos hotéis que em foram criadas vagas fora da cracolândia] da Freguesia do Ó, ou do Parque Dom Pedro 2º.

    Os moradores já sabem qual o plano da atual gestão para esta região?
    Ainda não, não nos disseram nada.

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