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    Delegada dá aula gratuita de dança do ventre e muda a vida de alunas em SP

    MARINA ESTARQUE
    DE SÃO PAULO

    16/08/2017 02h00

    Silvana Sentieri Françolin, delegada, 32 anos de carreira, titular do 56° DP, na Vila Alpina, e chefe de 52 policiais, começa o ritual: uma canção árabe, lânguida, depois rápida, invade a sala. "Que música linda", se derrete uma aluna. As mulheres movem os quadris, desencadeando um agradável chacoalhar de moedas e canutilhos que adornam as roupas de dançarinas.

    Todas as segundas e sextas-feiras de manhã, Silvana, 57, dá aulas gratuitas de dança do ventre para moradoras do seu bairro, Sumaré, na zona oeste de São Paulo. Nos últimos 12 anos, acredita ter ensinado os movimentos orientais para cerca de 200 alunas, a maioria delas idosas.

    Nesta segunda (14), a delegada mostrava os passos de uma nova coreografia, que será apresentada em uma festa anual para familiares. A sala, ampla e bem cuidada, cheia de detalhes em lilás, foi alugada e reformada por Silvana. "Gastei uns R$ 20 mil para fazer banheiros, colocar espelhos, ventiladores e refletores, mas ficou bonitinho", conta, orgulhosa.

    Para pagar o aluguel e as contas, ela subloca o espaço para professores de yoga e desembolsa cerca de R$ 800 por mês. "Faço com muito amor, então eu pago mesmo. Quem pode contribui com uma taxa de manutenção, de R$ 70. Mas muitas são aposentadas e não podem pagar", explica. "Isso não importa. Considero um presente do universo poder fazer algo para melhorar a vida das pessoas."

    A delegada –que atuou em casos de repercussão, como o do assassinato da menina Isabella Nardoni– nunca tinha pensado em ser professora de dança. Começou "meio na brincadeira", lembra. Caminhava sempre pelo parque Sabesp, no seu bairro, e conversava com os vizinhos. Algumas senhoras descobriram que ela fazia dança do ventre desde os 35 anos e quiseram aprender.

    "Mostrei uns passinhos para meia dúzia de senhorinhas. Depois pensei: 'Ah, quer saber? Vou levar música'. Liguei o som no parque e foi juntando gente. O pessoal passava e perguntava: 'Que horas é a aula?' Eu ficava sem graça: 'Ai, gente, não é aula'".

    AUTOESTIMA

    Aos poucos as reuniões viraram rotina, e Silvana se aprofundou no tema para "poder ensinar melhor". Foram dez anos de dança no parque, até que o frio e a chuva a levaram a alugar a sala. "Também queria ter um espelho. É importante se olhar. As mulheres mais velhas e da minha geração não tinham um contato consigo mesmas. E quando dançam com o espelho, parece que enchem o peito. É emocionante", diz.

    Na aula, a professora ensina um movimento dos braços: "Faz como se estivesse tirando a blusa". Uma das alunas completa: "E joga aquele olhar fulminante". Elas riem.

    Segundo Silvana, a dança ajuda na autoestima. "A mulher mais madura sente que perdeu a sensualidade. E a dança do ventre recupera isso", afirma a empresária Fátima Fernandez, 62, aprendiz da delegada.

    A aposentada Elba Sanhueza, 79, faz parte das primeiras integrantes do grupo. Para ela, a dança e as colegas a ajudaram a superar a morte do marido. "Me libertou de todos os pensamentos negativos", resume.

    A rede de apoio também foi importante para a arquiteta Lourdes Bauab, 57. "Tive câncer, operei, fiz quimioterapia, radioterapia. A alegria do grupo e a dança me fizeram passar pelo tratamento como se fosse um avião por nuvens brancas". Com a dança, Lourdes recuperou a sensibilidade na barriga, perdida após uma cirurgia.

    Silvana afirma que a dança do ventre melhora o equilíbrio e fortalece a musculatura. "Uma das alunas tinha incontinência urinária, agora não tem mais. Isso é muito gratificante para mim". Casada e com dois filhos, Silvana transmitiu o amor pela dança para a família. "Eu levava o meu caçula para as aulas e hoje ele é professor de derbake, um instrumento de percussão árabe", conta.

    POLICIAL

    Além de uma paixão, para Silvana, a dança do ventre é um "alicerce, uma fonte de equilíbrio". A delegada diz que isso a torna uma chefe e policial mais justa.

    "Policial é um trabalho sofrido, estressante. Você é mal remunerado e não tem as condições ideais. Eu fiquei 22 anos no plantão, de madrugada, chegava muito desgastada em casa do calor das ocorrências. E antes tinha cadeia na delegacia. Era uma centena de presos me chamando, aquele desespero, a miséria. Comecei a fazer dança para lidar com isso."

    A postura parece ter reflexos positivos no trabalho. Apelidada por seus colegas de "mestre Jedi", em referência à saga "Star Wars", Silvana é muito procurada para orientações profissionais. "Ela é tipo o nosso oráculo de Delfos, todo o conhecimento a gente vem aqui consultar: doutora, quais são os números da Mega-Sena?", brinca um delegado.

    Além da dança, Silvana pratica meditação e yoga, inclusive dentro da delegacia. "As pessoas assumem um papel profissional e esquecem da humanidade delas. Quanto mais humano o policial for, melhor", afirma.

    Ela abre uma porta lateral do escritório e, em tom de confidência, mostra uma salinha com colchonetes. Silvana paga do próprio bolso um professor de yoga, que dá aulas após o expediente. Infelizmente, diz ela, apenas cinco policiais participam.

    Mesmo os que não aderem à yoga parecem nutrir certa admiração pela chefe. Ao chegar no 56° DP e perguntar por Silvana, um funcionário orienta: "Sobe a escada, vira à direita e procura a pessoa mais linda da delegacia".

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