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    Boa arquitetura não é incompatível com tempos de crise, afirma crítico

    RAUL JUSTE LORES
    DE SÃO PAULO

    19/08/2017 02h00

    Gustavo Ferreira/MRE
    Data: 17/05/2012 Briefing a Imprensa sobreâ€Diálogos para o Desenvolvimento Sustentável†(Rio +20) Briefing à Imprensa do Embaixador Andre Correa do Lago, negociador-chefe da Delegação Brasileira para a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio +20) Foto: Gustavo Ferreira / MRE ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    O embaixador André Corrêa do Lago foi o primeiro brasileiro jurado do prêmio Pritzker de arquitetura

    Primeiro brasileiro a fazer parte do júri do mais importante prêmio de arquitetura do mundo, o Pritzker, o embaixador André Correa do Lago, 58, elenca uma série de razões que fazem o Brasil "ter algumas das cidades mais feias do mundo."

    Da ruptura da escala à falta de mecanismos para impedir a construção de aberrações, do desprezo por calçadas aos aparelhos de ar condicionado até em fachadas tombadas. Na lei de licitações, "que só pensa no valor da construção, ignorando o custo de um projeto ruim no futuro", ao desinteresse da iniciativa privada.

    Crítico de arquitetura e diplomata, ele também foi negociador-chefe do Brasil na conferência do clima Rio+20, e atualmente é o embaixador do Brasil no Japão.

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    Preço da arquitetura
    A boa arquitetura pode ser cara, barata ou ter um custo médio. A péssima também, pode ser muito cara ou barata. Não é incompatível produzir boa arquitetura em tempos de crise. Com menos projetos e orçamentos menores, pode haver mais pesquisa para usar outros materiais.

    As cidades melhoram quando bons arquitetos, infelizmente, uma minoria, são incentivados, e se controlam os abusos dos maus arquitetos, que existem em grande número.

    Cálculo errado
    A lei 8.666, das licitações, tem uma obsessão com o custo da obra, é o único elemento levado em conta. Ela impede a função civilizatória da qualidade e da estética das obras públicas. Há diversos outros custos que uma obra ruim implica anos depois, mas isso não é calculado.

    Cadê o privado?
    A iniciativa privada não ocupou o lugar do Estado no Brasil, por isso não temos mais muita arquitetura de qualidade. Na França, o Estado é o grande mecenas da arquitetura. Nos Estados Unidos, a grande arquitetura é privada. Em tempos em que o Estado não pode fazer esse investimento, cabe às grandes empresas assumir sua responsabilidade arquitetônica.

    Igualdade impressionava
    Um aspecto glorioso da arquitetura moderna brasileira é que suas melhores construções não indicavam se a residência era para classe alta ou baixa. Você vê fotos do Parque Guinle e do Pedregulho, no Rio, ou do Louveira, em São Paulo, e não dá para saber a renda dos ocupantes.

    Para os europeus, conjunto habitacional moderno era sempre para a baixa renda. Mas a elite brasileira adotou a arquitetura moderna como sua estética nos anos 40 e 50. Isso impressiona.

    Progresso arquitetônico
    Até o regime militar, os símbolos do progresso eram arquitetônicos, do Ibirapuera a Brasília. Durante a ditadura, foram as grandes obras de engenharia, da Ponte Rio-Niterói a Itaipu. Em democracia, a arquitetura se encarregou de projetos baratos e de interesse social, dos CIEPS no Rio aos hospitais do [arquiteto] Lelé, dos CIACS aos projetos habitacionais da gestão da Elisabete França na prefeitura de São Paulo.

    Calçada cuidada
    A calçada é muito importante. Quando é cuidada, faz uma diferença enorme. Especialmente, quando a iluminação pública não é branca, você pode usar luz amarela, quente, e mais econômica. Também precisamos ter mais árvores. As cidades brasileiras precisam de mais árvores, especialmente nos bairros mais modestos. Rua arborizada é comum em bairro rico.

    A calçada precisa de árvores que façam sombra. Temos uma mania de palmeira, que não faz sombra, pensam apenas como função estética.

    Contra calçadão
    Calçadão é um erro, mata a vida da rua. Vem de um urbanismo que acreditava na setorização da vida. Esta rua é só de comércio, está é só residencial. É uma ideia boa para o dia, mas que desestimula a habitação. A rua fica inviável para quem chega carregado de compras, de táxi, para quem tem mais idade, mobilidade reduzida ou tem medo por sua segurança. No Brasil, a vida de setores matou as cidades. O Centro seria um lugar maravilhoso para morar. Mas ninguém quer morar sozinho.

    Manhattan conseguiu reinventar bairros onde ninguém morava, criando usos mistos. Wall Street teve diversos prédios comerciais transformados em residenciais. Chelsea, Tribeca. Sem moradores, só com comércio, seriam mortos.

    Anestesia da feiura
    Diversos edifícios históricos têm sua fachada arruinada por aparelhos de ar condicionado pendurados. É feio, mas estamos anestesiados pela feiura. Esses novos aparelhos split podem ser instalados no teto, nos pátios internos dos prédios, têm mais flexibilidade. É uma decisão que condomínios e síndicos precisam ter liderança para aprovar. Tem que fazer estudos e mostrar que é possível, que tem sentido econômico para os moradores.

    Cidade segura
    Um elemento essencial para a vida nas cidades é a diminuição da violência, esse tema que nos faz sofrer tanto, mas que pouco estudamos ou falamos. A partir do momento em que uma cidade é segura, podemos incentivar a vida de rua em qualquer lugar. É não ter um bairro considerado "ruim". Aqui em Tóquio, apesar da região metropolitana ter 35 milhões de habitantes, não se fala de áreas que ninguém queira morar. Quando se tem segurança e um transporte público maravilhoso, as pessoas escolhem a moradia pela proximidade com o estudo, com o trabalho, com a mãe, com o parque.

    Zoneamento e respeito
    Tóquio é uma cidade com pouquíssimas restrições de zoneamento. Há comércio, restaurantes por todos os lados, edifícios residenciais e comerciais misturados. E se caminha de dia e à noite. As crianças de seis anos vão sozinhas ao colégio. Onde as pessoas moram em apartamentos de 30, 40 m², sempre se pode estar na rua. Mas a cultura do respeito ao vizinho, seja no barulho, seja no espaço alheio, é fundamental.

    Público de fora
    A ruptura da escala é uma das maiores violências que são cometidas nas nossas cidades. Não é bem planejada, e só obras de arquitetura excepcional merecem o sacrifício da escala tradicional.

    Mas existe um desejo muito mal disfarçado de governos, arquitetos e construtoras de evitar que o público entre nas discussões da qualidade das cidades e da arquitetura. Onde o público perdeu a timidez e se informou melhor e exigiu mais, a qualidade melhorou.

    No Brasil, ainda engatinhamos, por isso temos algumas das cidades mais feias do mundo. Somos bons na defesa do patrimônio, mas ainda atrasados na luta contra a construção de horrores.

    Responsabilidade estatal
    A marca da melhor arquitetura brasileira foi de responsabilidade do Estado. Federal, como o Ministério da Educação, no Rio, municipal, como a Pampulha, em Belo Horizonte. Ou estadual, como no Aterro do Flamengo. Nossa grande arquitetura privada é de casas. A pública era muito superior.

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    Raio-x

    ANDRÉ CORRÊA DO LAGO, 58

    Formação: economia na UFRJ
    Carreira: é diplomata desde 1983. Hoje é embaixador do Brasil no Japão
    Na arquitetura: foi membro do comitê de arquitetura do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) de 2005 a 2016 e é membro do Conselho Internacional do MoMa desde o ano passado
    Livros: "Private Rio", "Ainda moderno?" e "Oscar Niemeyer: uma arquitetura da sedução"

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