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    30 anos após morte de Pixote, viúva de ator quer deixar passado para trás

    EMILIO SANT'ANNA
    EDITOR-ASSISTENTE DO NÚCLEO DE CIDADES

    25/08/2017 02h00

    Marlene Bergamo/Folhapress
    Cida Venâncio, 49, viúva de Fernando Ramos da Silva, o Pixote
    Cida Venâncio, 49, viúva de Fernando Ramos da Silva, o Pixote

    No fundo do extenso corredor onde cinco casas geminadas dividem o mesmo terreno, o isqueiro nervoso ilumina o rosto marcado. Sentada em um sofá, cabelos presos, olhos cansados, as mãos de Cida se entrelaçam com um cigarro em meio aos dedos.

    O frio da noite de uma sexta-feira de agosto na Vila Guarani, periferia na zona sul de São Paulo, é o mesmo que cerca o encontro. A mulher deixa claro que não tem mais a menor vontade de voltar ao mesmo ponto. Nem fotos. "Já falei, avisei que não quero."

    Não é só isso que ela não quer. Se pudesse, renunciaria ao pacote completo. Nos últimos trinta anos, no entanto, não teve como se livrar.

    Em vez dos 49 que carrega no corpo e na identidade, é como se fosse esse o tempo de sua vida: 30 anos, completados nesta sexta-feira.

    Vinte e cinco de agosto de 1987, no mesmo dia em que oito tiros da Polícia Militar mataram Fernando Ramos da Silva, o Pixote, nasceu Cida Venâncio, a viúva.

    Autora de seis livros, entre eles "Pixote Nunca Mais", que originou o filme "Quem Matou Pixote", de José Joffily, ela diz estar cansada do papel.

    "Para vocês eu sou a mulher do Pixote, viúva; minha filha é a filha do Pixote; meu marido é o marido da viúva do Pixote." Essa será a penúltima vez na noite em que ela vai chamar dessa forma o menino que alcançou fama repentina no cinema sem ter conseguido deixar de vez a periferia de Diadema. Em todas as outras, só Fernando.

    Foi na cidade da Grande São Paulo, aos 13 anos, que Cida conheceu o pai de sua primeira filha. "Achei ele lindo e pedi para uma amiga nos apresentar." A princípio, não deu em nada. Pixote já era Pixote, ator famoso, badalado no bairro, filho de uma família pobre e que começava a ficar conhecido também por se envolver em pequenos crimes.

    Meses depois, daria certo. "Meu pai tinha mania de escutar o Gil Gomes no rádio. Naquele dia, eu estava deitada e ouvi ele falando que o Fernando havia sido preso."

    Em dois pulos, a menina saltou da cama e se postou em frente à delegacia de Diadema. Em meio à pequena multidão de curiosos que se formava na rua, um amigo da família a avistou e ameaçou contar para os pais onde ela estava. Deu de ombros e, determinada como se pudesse passar pelas grades, juntou uns trocados para subornar um policial civil e entrar no cárcere.

    Cara a cara com Pixote, Fernando lhe devolveu ao chão. "Ele perguntou o que eu estava fazendo ali, foi muito estúpido. Falou que ele era um lixo e pediu para eu ir embora dali na hora."

    Dias depois, livre, o rapaz a procurou. Após cerca de um ano, em 1985, viraria "a mãe da filha de Pixote".

    A segunda de oito filhos de um casal de migrantes mineiros, que até então tinha apenas um barraco de madeira como casa, Cida se acostumou a cuidar. Primeiro dos irmãos, depois de Fernando e, por fim, dos cinco filhos, de suas pequenas tragédias e conquistas pessoais.

    BABENCO, MARÍLIA

    Ainda que cercada de amigas -uma vizinha de uma favela próxima a sua casa, uma manicure que trata como filha e uma jovem travesti-, Cida não é do tipo que relaxa. Controla horários e rotinas dos filhos, quer saber onde estão, para onde vão, como, com quem, enfim, quer ser mãe -de todos. "É um 'mal' de família, a mulher domina a casa", diz, abrindo um sorriso que corta o frio.

    Aos poucos, mergulha nas lembranças e dá de cara com Babenco. "Foi um pai para mim, acho que ele se sentia responsável pelo Fernando."

    Foi Hector Babenco, diretor de "Pixote, a Lei do Mais Fraco", que levou Fernando ao cinema, em 1981. Foram dele também as inúmeras tentativas de resgatá-lo da eterna expectativa em que sua vida havia se transformado.

    Até um caminhão para que o rapaz pudesse trabalhar com o irmão de Cida, ele ajudou a comprar. "Hector foi tudo na minha vida e na dos meus filhos. Quando ele morreu... não tira foto de mim chorando, não. Por favor."

    Por Marília Pêra não sentia o mesmo. Segundo ela, a atriz, morta em 2015, com quem Pixote contracenou, não estendeu a mão ao rapaz. "Admirava como artista, só. Ele a procurou e ela não quis receber ele na casa dela."

    As mágoas se amontoam. Vai mais fundo e relembra as reações por estar ao lado de Fernando. Ele já não era mais o ator, era a lembrança da criança que estourou no cinema, pingou de trabalho em trabalho, mas crescera e perdera a imagem de "menor abandonado" que cabia nas telas. Era então um jovem da periferia, envolvido em assaltos. "Nunca fui mulher de bandido, nunca aceitei nada roubado dentro de casa."

    Ao 25 de agosto em que a viúva nasceu, Cida não quer mais voltar. "Eu senti que alguma coisa errada ia acontecer. Falei para ele." Apenas há alguns anos, tomou coragem e foi à casa em que ele foi morto por policiais militares, desarmado. Assim viveu Pixote, assim morreu Fernando.

    De repente, ela emerge. "Tive dois amores na minha vida, o Fernando e o pai dos meus outros filhos. É estranho. Amo muito Fernando até hoje. É como se meu amor por ele fosse o daquela menina inocente, e pelo Nego, da mulher que sou hoje", afirma. "Às vezes acordo no meio da noite pensando nele, como se nossa filha estivesse triste."

    É o que a move, evitar que mais do passado chegue à família. Mas não é tarefa fácil. Ela e a filha devem receber do Estado uma indenização pela morte de Fernando, executado. Cida não fala em valores, nem parece acreditar que o dinheiro, transformado em precatório, chegue algum dia. Apenas espera. "Esse dinheiro é o sangue do Fernando."
    Não há nada a comemorar. É o último laço que a prende a essa história. "Já não sou mais a viúva do Pixote."

    FERNANDO E PIXOTE

    Fernando Ramos da Silva tinha 10 anos e morava na periferia de Diadema (Grande São Paulo), quando foi escolhido entre mais de mil garotos de sua idade para protagonizar "Pixote, a Lei do Mais Fraco", de Hector Babenco.

    Bem recebido pela crítica no Brasil e no exterior, o filme foi indicado para o Globo de Ouro, em 1982. Para Fernando, mais do que isso, transformou-o em estrela instantânea. A partir desse ponto, as trajetórias de Fernando e Pixote se confundiram.

    Contratado para fazer novela, Fernando não se firmou na televisão. Voltou para Diadema, onde se envolveu com o crime e viu sua carreira desandar.

    Aos 19 anos, foi perseguido após um suposto assalto e morto com oito tiros por policiais militares, que alegaram que o rapaz fora morto em um tiroteio.

    Fernando estava escondido embaixo de uma cama e desarmado quando morreu. Expulsos da corporação, os policiais nunca foram presos.

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