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    Após 16 anos no cativeiro, Lucinha agora tem cama, espelho e 'nova mãe'

    MARCEL RIZZO
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM URUBURETAMA (CE)

    03/09/2017 02h00

    Avener Prado/Folhapress
    URUBURETAMA, CE, BRASIL, 23-08-2017: Maria Lúcia de Almeida Braga, 36 anos, passou 16 anos em cárcere privado em Uruburetama, no Ceará. Ela tem problemas psiquiátricos e após engravidar foi mantida presa na casa onde vivia com a familia durante esse período pelos pais e pelo irmãos, que foi preso. Hoje, Lúcia vive sob a tutela de Maria de Fátima Araújo, 57, na zona rural de Uruburetama. (Foto: Avener Prado/Folhapress, COTIDIANO)
    Maria Lúcia de Almeida Braga, a Lucinha, 36, passou 16 anos em cárcere privado em Uruburetama (CE)

    Lucinha ganhou um espelho. Foram 16 anos sem ver a própria imagem. Ela se olha, mas não gosta do que vê. "Feia, gorda!", são as poucas palavras que sabe dizer.

    As roupas não lhe cabem mais. Ganhou 10 kg desde que foi libertada do cativeiro: um cômodo de 12 metros quadrados onde viveu sem espelho, sem cama e sem vaso sanitário por quase duas décadas.

    Maria Lúcia de Almeida Braga, 36, a Lucinha, foi encontrada em março por policiais. Pesava em torno de 50 kg e estava nua, em meio a fezes e urina, em um quarto trancado com cadeado na casa da família, na zona rural de Uruburetama, município do interior do Ceará com cerca de 20 mil habitantes e a 115 km de Fortaleza.

    Uma denúncia anônima deu fim ao cativeiro. O irmão, apontado como responsável por alimentá-la, foi preso, mas acabou solto um mês depois e ainda irá a julgamento.

    Lucinha foi encarcerada pela família quando deu à luz Pablo. Hoje adolescente, o filho foi entregue para adoção a um casal da cidade e algumas vezes visita a mãe biológica. "Ele a chama de mãe, pede a bênção. Veio aqui no Dia das Mães, é carinhoso com ela", conta Maria de Fátima Araujo, 57, vizinha da família que decidiu abrigar Lucinha –atualmente, ela é sua responsável legal.

    Fora do cárcere, ela foi diagnosticada com esquizofrenia simples, doença que pode ter se agravado com os anos de prisão e a falta de medicamentos.

    Agora em liberdade, ela se olha no espelho por longos minutos. É uma das pequenas conquistas para Lucinha. Assim como ir à casa da vizinha comer pão, pintar as unhas e desenhar flores e corações em um caderno –logo que saiu do cativeiro, eram só rabiscos.

    Na nova casa, tudo tem sido um aprendizado. Como no cativeiro era sempre alimentada por alguém, tem dificuldades com talheres e, por vezes, come com as mãos –gosta de macarrão e carne.

    Acostumada por anos a usar o chão como banheiro, ainda custa a "acertar" o vaso sanitário. Se quando presa não tinha acesso a TV ou rádio, hoje se diverte com desenhos do Pica-Pau e chora ao ouvir a música "É o Amor", de Zezé di Camargo e Luciano.

    Sorri o tempo todo. Fala pouco. Dispara palavrões –que escutava da mãe, contam os moradores. Gosta de acariciar o gato da casa. Lucinha dorme muito –prefere a rede, sua cúmplice durante todos os anos de cárcere.

    O ISOLAMENTO

    A rede era o único "móvel" a compor o quarto onde foi aprisionada –grosso modo, um espaço resumido a três passadas para frente e quatro para o lado. Cupins atacaram o forro do teto –não se sabe como não desabou, dizem moradores do bairro. O banho, quando recebia, era de balde.

    O quarto da jovem somente ganhou uma janela depois –sugestão de uma vizinha, para arejar o ambiente.

    A casa dos Braga, família de Lucinha, é a mais isolada do já distante Serra do Retiro, distrito rural de Uruburetama com cerca de 300 moradores.

    Para se chegar ao Retiro é preciso subir. Subir muito. A comunidade está encravada numa montanha a aproximadamente 30 minutos de carro do centro do município.

    A estrada, na maior parte de terra, não é ruim, e a paisagem é bonita em meio a bananais. Por alguns quilômetros não se veem casas ou pessoas e o primeiro sinal de que se chegou à comunidade é a igreja, à direita, que chama a atenção por ficar alguns metros acima do nível da estrada.

    Mais à frente se vê uma unidade dos Correios, um posto de saúde, uma escola. E casas coloridas. Não só no Retiro, mas também no centro de Uruburetama as pessoas gostam de pintar suas casas com cores fortes –tradição antiga, explicam os moradores, para achar determinadas residências na época em que endereço certinho era só um privilégio da capital.

    A casa pintada de vermelho é onde Lucinha passa a maior parte do tempo –ela vive em uma outra, mais afastada, com Fátima. Um comerciante do distrito cedeu o imóvel vermelho por ser mais bem localizado, para que ela interaja mais com os vizinhos durante o dia. A orientação é para que ela conviva com pessoas. Muitas pessoas.

    OF Uruburetama

    CADEADOS

    A residência dos Braga, palco do cárcere, sintetiza um isolamento não só social, mas físico. Acessar o sítio Sobradinho, da família, é complicado. Não se chega de carro. É preciso estacionar ladeira abaixo cerca de 200 metros e passar por uma trilha esburacada para dar de cara no portão com arame farpado.

    A quantidade de arame farpado, por sinal, foi o que assustou os policiais ao chegarem ao local, em março. Para encontrar Lucinha, quebraram quatro cadeados, o último deles o do quarto dela.

    Numa casa mais acima, vivia ela, trancada, e a mãe, Maria Lídia, em outro cômodo sem móveis ou eletrodomésticos. Mas destrancado.

    Uns 50 metros abaixo, à direita, está a casa principal. Não é muito maior do que a de cima, com quatro cômodos, mas melhor equipada: geladeira e fogão, TV de 32 polegadas. Foi nela onde a reportagem encontrou dormindo Antônio Rodrigues Braga, o pai de Lucinha.

    Na percepção de policiais e assistentes sociais, os homens viviam na casa de baixo, com algum conforto, enquanto as mulheres, na de cima. A mãe, na maior parte do tempo, com liberdade, e Lucinha, o tempo todo presa.

    Aos 84 anos, Antônio aparenta boa saúde, apesar de reclamar de dores na coluna. "Ela não ficava presa, tinha liberdade", disse.

    João de Almeida Braga, irmão de Lucinha que foi preso, é tímido, e muitas vezes é difícil entender o que diz assim como os pais, é analfabeto. Ele acompanha a obra que está sendo feita na casa onde Lucinha ficou por anos.

    A revelação do cativeiro de Lucinha, com repercussão nacional, dividiu Retiro. É que ninguém entendia a vida dela trancada com cadeado como um cárcere, e havia até morador que escalava os 200 metros para lhe visitar e doar algum tipo de mantimento.

    "É um absurdo o que fizeram com essa família. Que luxo você viu aqui? O João viveu a vida para cuidar dos pais e da irmã, como ele podia. São pessoas simples. Nunca jogou bola, nunca saiu", disse o vizinho Francisco Braga, o Chiquinho, com lágrimas nos olhos.

    ESCOLA E NAMORO

    A vida de Lucinha nem sempre foi semelhante a de um bicho enjaulado. Estudou até a quarta ou quinta série, ninguém sabe precisar exatamente, inclusive com uma das filhas de Fátima. Todos a consideravam retraída. Mas ela estava aprendendo a escrever e convivia normalmente com os demais na comunidade.

    Namorou um rapaz, aos 15 anos. Romperam quando ele se mudou para São Paulo. A partir daí, contam os vizinhos, a retração de Lucinha aumentou, até abandonar a escola. A família conta que ela tentou fugir algumas vezes. A comunicação então se tornou escassa.

    A situação se agravou com a notícia da gravidez. A história que passou a se propagar no distrito foi a de que Lucinha estava presa dentro de casa porque engravidara de um rapaz de outra comunidade.

    Uma explicação é que os pais a deixaram presa no quarto para evitar que ela fugisse grávida. O hábito, entretanto, foi mantido pelo irmão, depois da velhice dos pais e quando ele se tornou o arrimo da família.

    A renda dos Braga vem ainda da venda de batatas, ovos e hortaliças, mas atualmente também da aposentadoria rural dos idosos.

    Em depoimento à polícia, Pablo, o filho adolescente de Lucinha, disse que sempre a visita, desde criança, e que ela gostava de fazer carinho na mãe adotiva do adolescente durante esses encontros.

    Ele percebia a situação insalubre da mãe, mas avós e tio diziam que algum outro homem poderia se aproveitar dela caso voltasse a circular livre pelo município.

    DEPOIS DO CÁRCERE

    "Vamos comer pão na casa da Tetê?", diz Fátima, a protetora de Lucinha. É o sinal para ela deixar de lado o que estiver fazendo e sair em disparada pelo centrinho do Retiro. Rapidamente ela chega ao outro lado da rua de terra batida na casa de Teresa Vasconcelos, 42, conhecida como Tetê.

    Tetê foi a primeira a recebê-la quando deixou o quartinho onde ficou presa.

    "Se ficasse um minuto longe, ela já pegava o desinfetante e tentava tomar. Ou comia lixo. No hospital, ela pegou o cocô com a mão e jogou no ventilador. Voou para todos os lados", conta Tetê.

    Neste mês, Lucinha voltou ao sítio Sobradinho. A mãe, doente acamada, havia pedido que a visitasse. Lucinha reagiu mal. "Não parou de chorar o tempo inteiro. Acho que pensou que voltaria a ficar presa, talvez", contou Fátima.

    Ela é acompanhada por médico, psicólogo e terapeuta ocupacional do município. Uma fonoaudióloga tenta recuperar a fluidez da fala.

    Em Fortaleza, na ida a um psiquiatra, o diagnóstico foi de esquizofrenia simples, que tem como sintomas principais o isolamento social, ausência de relações afetivas e mudança de personalidade.

    Hoje é medicada com haloperidol, um antipsicótico. Fátima conta que, antes de ser medicada, Lucinha tinha pesadelos, ficava muito agitada à noite. "Ela gritava que o Satanás estava vindo. Agora dorme bem mais tranquila."

    Membro da Associação Brasileira de Psiquiatria, Itiro Shirakawa diz que a esquizofrenia é uma doença com tendência genética, que se manifesta no final da adolescência, como ocorreu com Lucinha.

    "Se reconhecida precocemente, há medicamentos hoje que dão uma vida razoável ao paciente. No caso [de Lucinha], como ela ficou 16 anos presa, é como se tivesse sido internada naqueles asilos antigos, ficando sem tratamento e sem atenção social." Além de Lucinha, todos os membros da família, como o irmão Joãozinho, recebem acompanhamento psicológico.

    Nas próximas semanas, Lucinha fará uma perícia para tentar receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC), por meio da Previdência Social. É pago um salário mínimo (R$ 937) para idosos e deficientes que não possam se manter ou serem mantidos pela família.

    A possibilidade de ganhar dinheiro já fez surgir até parente distante para Lucinha. "Apareceu uma aqui dizendo que era prima, que ficaria com ela. Botamos para correr", disse Tetê.

    Enquanto a ajuda financeira não vem, recebe do município leite e cesta básica. ONGs ajudam com doações de roupas. As duas "irmãs" que ganhou, filhas de Fátima, ajudam a escolher as roupas que lhe servem.

    Lucinha só observa as peças doadas. Não parece satisfeita. Ainda se queixa da aparência. Quer fazer as pazes com o espelho.

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