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    PMs de SP adotam intimação para conter flagrante com celular nas ruas

    CHICO FELITTI
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    08/10/2017 02h00

    Ronny Santos/Folhapress
    O vendedor, Adailton de Castro, 46 anos, teve o celular roubado pelo meliante, mas conseguiu recupera-lo. Criminalidade aumenta na regiao da praca Santa Isabel, onde fica a nova cracolandia
    Abordagem policial no centro de São Paulo

    Quando saiu para comemorar o aniversário de um amigo na rua Augusta, centro de SP, no último dia 22, o produtor cultural Jorge sabia que não poderia sacar o celular na festa open bar, que proibia fotos. Mas não sabia que o aparelho lhe causaria problemas antes de entrar.

    Na chegada à casa noturna, ele viu dois policiais revistando quatro pessoas, que ele desconfiou serem menores de idade. Sacou o celular e começou a filmar. Antes de os guardas terminarem a revista, um deles se virou para ele e disse: "Você vai com a gente, ô, cinegrafista".

    Jorge, que não quer ter o sobrenome divulgado, foi arrolado como testemunha, e levado para o 4º DP, na rua Marquês de Paranaguá.

    Quando foi liberado, quatro horas depois, a festa dos amigos já estava para acabar. "Perdi a noite, esperando para dizer nada ao delegado."

    Policiais adotaram uma nova tática para inibir que seus atos sejam filmados: elegem as pessoas que sacam celulares e as levam para a delegacia, onde têm de esperar horas para depor como testemunha da cena que registraram -uma abordagem ou um flagrante. A prática foi confirmada por três PMs à reportagem, que também teve que ser testemunha em um caso (leia abaixo).

    Advogados e especialistas ouvidos afirmam que a prática é o casamento de duas legalidades: é permitido filmar ou fotografar o que a polícia faz em lugar público, e os policiais têm direito de recrutar pessoas que estavam na cena como testemunhas.

    Mas eles ponderam que o arrolamento de testemunhas não deveria estar ligado à filmagem da ação.

    "Na Constituição você tem direito de ir e vir. Não existe na legislação a obrigação do comparecimento da testemunha na delegacia naquele momento", diz Ricardo Luiz de Toledo Santos Filho, diretor da OAB-SP. Para ele, "a polícia pode convidar e o cidadão pode recusar".

    No caso de recusa, a pessoa deve passar seus dados para a Polícia Civil procurá-lo e, se for o caso, testemunhar em outro momento.

    A estudante Mary Lô, 28, diz ter ouvido de um policial, a quem tinha filmado revistando uma amiga, na Barra Funda (zona oeste), que o celular seria confiscado. "Ele disse que a cena era prova."

    "É questionável se o celular é prova, ainda mais se ele só filmou uma revista ou uma prisão. Seria prova se tivesse o flagrante de crime", diz o advogado Pedro Dias.

    A tática virou até tema de discussão on-line entre homens da lei. Werlysson Volpi, bacharel em direito e guarda civil municipal em Minas, escreveu o artigo "Cidadão que filma ação policial pode ser arrolado como testemunha". Nele, ele escreve: "Boa parte destes cidadãos que registram estas ações não tem a intenção de mudar para melhor, e sim desmoralizar as instituições, postando ações incompletas de seus agentes, o que acaba fortalecendo o crime organizado e outras práticas delituosas". O GCM não respondeu a pedidos de entrevista feitos por e-mail.

    Procurada, a Secretaria da Segurança Pública do governo Geraldo Alckmin (PSDB) respondeu por nota que "as testemunhas são arroladas independentemente da profissão ou cargo que ocupam" e que "a Polícia Militar segue as diretrizes do Código de Processo Penal, em seu artigo 202, onde estabelece que 'toda pessoa poderá ser testemunha'."

    No texto, a pasta ainda "destaca que não há qualquer restrição a filmagens das ações policiais".

    TESTEMUNHA

    "Seus esquerdistas! Na hora de parar ele ninguém ajudou, e agora vêm me criticar?", gritava um PM no largo do Arouche (centro), na noite de 22 de setembro. Gritava também o homem algemado, sentado aos pés dele.

    Ao ouvir as frases que as pessoas diziam ("Não precisa pisar na mão dele" e "Você está machucando ele"), parei no canteiro central, onde estava o policial. Comecei a filmar com o celular.

    Logo, chegaram mais três carros de polícia. O primeiro PM se voltou para mim e disse: "Você vai como testemunha para a delegacia, não queria filmar?".

    Dois outros homens de farda me colocaram no banco de trás do carro. Tomaram meu celular. O carro saiu, furando sinais vermelhos e costurando o trânsito. Cinco minutos depois, estávamos no 2º DP (Bom Retiro).

    O homem autuado, um senegalês de 30 anos, foi liberado. Não houve flagrante de que os três celulares ou os R$ 3.000 que levava fossem fruto de ilícito. Fui ouvido após uma hora, às 22h30. A delegada perguntou se eu havia visto o homem fugindo, como relataram os policiais. Havia visto ele furtando? Não. Presenciei resistência? Nada. "Então o que você está fazendo aqui?". Perguntei se a delegada poderia repetir a frase aos PMs.

    Às 23h30, assinei meu testemunho impresso, que consistia em "A testemunha afirma ter visto o suspeito já algemado", e fui liberado.

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