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    Combate a roubos e furtos tem pior desempenho em índice de segurança

    MARINA ESTARQUE
    DE SÃO PAULO

    05/11/2017 02h00

    Cristina Carvalho, 46, não se esquece do olhar do assaltante, enquanto ele a ameaçava: "Eu vou te matar, eu vou te matar". Desde o último dia 13, a cena se repete na cabeça da advogada. O bandido entrou armado em uma padaria em Cerqueira César, zona oeste de São Paulo, enquanto ela comia um pedaço de pizza no fim do expediente.

    "Fico revendo o que aconteceu. Me abalou muito", conta Cristina, que precisou pedir licença de 15 dias do trabalho para se recuperar. "Agora estou melhor, fui a um psiquiatra. Muita coisa aconteceu comigo neste ano, mas o assalto foi a gota d'água", afirma ela, que já havia sido roubada antes na cidade.

    A advogada tem medo de que a agressão se repita e evita sair de casa. Situações e sensações como as dela ajudam a explicar o desempenho negativo do item roubos e furtos no novo Índice de Efetividade da Segurança Pública, que considera medo, risco e casos em que as pessoas foram vítimas dessas situações.

    Roubos e furtos tiveram a pior nota do levantamento –criado em parceria do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) com o Datafolha.

    O índice buscou radiografar a efetividade no combate a dez problemas ligados à segurança, a partir de pesquisa com a população brasileira.

    Keiny Andrade/Folhapress
    Assaltado, Matheus Bafume, 23, teve dificuldades para registrar a ocorrência na internet
    Assaltado, Matheus Bafume, 23, teve dificuldades para registrar a ocorrência na internet

    Além de roubos e furtos, os outros nove pontos avaliados, em ordem da pior para a melhor nota, foram: invasão de residência, parentes envolvidos com drogas, agressão física, vítima de violência da polícia, ter conteúdo pessoal divulgado na internet, sequestro-relâmpago, agressão sexual, ser acusado de crime e ter filhos presos injustamente.

    Os dez itens foram escolhidos com base em levantamentos anteriores do FBSP. "São preocupações dos brasileiros que identificamos nos últimos 10, 15 anos de pesquisas", diz o diretor-presidente do fórum, Renato Sérgio de Lima.

    O índice varia de 0 a 1 –quanto mais alto, mais efetiva a segurança pública para aquele problema. Roubos e furtos tiveram nota de 0,46 no Brasil –a média geral de todos os problemas foi de 0,59.

    Na pesquisa, os entrevistados respondem a três perguntas sobre cada variável. Por exemplo: Você tem medo de sofrer um sequestro-relâmpago? Quais são as chances de você ser sequestrado? E, nos últimos 12 meses, você foi vítima de um sequestro-relâmpago? O índice é uma média entre os três pontos.

    A pesquisa foi feita com 2.080 brasileiros de 16 anos ou mais, em 130 cidades, entre 4 e 15 de julho. A margem de erro é de dois pontos para mais ou para menos e incide sobre os percentuais que compõem o índice.

    Lima lembra que roubos e furtos são, em quantidade, os delitos mais comuns e, por isso, tendem a ter um desempenho negativo. "Ainda assim, o índice mostra que a população está profundamente amedrontada e não reconhece a capacidade do Estado de fazer frente a esses crimes",diz.

    Lima avalia que o baixo índice também está ligado à falta de resposta do poder público para roubos e furtos. "O cidadão tem a sensação de que não adianta registrar nem reclamar. Recorrer ao Estado nesses casos significa não ter retorno. É só dor de cabeça. A pessoa enfrenta fila e é mal atendida", explica.

    Esse é o caso do empresário Matheus Bafume, 23, que foi assaltado no último dia 24. Ele e a noiva foram abordados por dois homens de moto, um deles armado, em Osasco (Grande SP), às 20h. "Levaram celular, aliança e carteira", afirma Matheus.

    Pouco depois, o casal encontrou um carro da polícia e foi orientado a fazer o boletim de ocorrência pela internet. "Tentei fazer duas vezes, mas recebia um e-mail de que não tinha dado certo e deveria ir até uma delegacia", diz. Depois de quatro dias, Matheus conseguiu fazer o B.O., mas a experiência foi negativa.

    "Apesar dos três funcionários lá, só uma mulher estava atendendo e apenas um computador estava funcionando. Foi muito ruim", diz.

    Matheus não tem esperança de que o crime será investigado. "Fiz o B.O. só para ter um respaldo caso usassem meus documentos roubados. De resto, é uma perda de tempo. Você busca ajuda e ganha um chá de cadeira", reclama.

    Assim como Matheus, Cristina também teve dificuldades para registrar o crime. Ela chegou a ir até a delegacia, mas o computador do DP estava com defeito. "Me falaram para voltar no dia seguinte", diz ela, que desistiu de fazer o B.O.

    Índice de efetividade da segurança pública - Como brasileiros avaliam crimes, ameaças e quantos são vítimas

    DESIGUALDADES

    Além de apontar o baixo índice para roubos e furtos, a pesquisa mostra desigualdades regionais para todos os itens. O Nordeste tem o índice geral mais baixo, de 0,57, e o Sul, o mais alto, de 0,62. O Sudeste ficou na média nacional, com 0,59, e o Norte e o Centro-Oeste ficaram um pouco abaixo, com 0,58.

    Mesmo para o Sul, o resultado é visto como fraco. "Tudo que está longe de 1, que é considerado ideal, é ruim. O índice geral do Brasil, de 0,59, é baixíssimo. Há um espaço de insegurança tremendo entre 0,59 e 1", explica o diretor de pesquisas do instituto Datafolha, Alessandro Janoni.

    No caso do Nordeste, há um efeito combinado. "Houve um aumento da criminalidade na região na última década, o que provocou um medo exacerbado. O índice de medo no Nordeste é um pouco superior à média brasileira", afirma Lima, do FBSP.

    Ele menciona ainda uma falta de estrutura em segurança pública na região. "As polícias são pequenas e precisam de modernização." Para além dos resultados, a forma como o índice foi concebido, combinando vitimização e percepção, é um diferencial, segundo Janoni.

    "O medo no Rio, por exemplo, é universal, afeta pobres e ricos, mas a vitimização está em nichos. Nós juntamos isso em um único índice", diz.

    Janoni ressalta que pesquisas de vitimização são importantes para dar um panorama de crimes subnotificados, como violência contra a mulher ou furtos e roubos.

    Lima afirma ainda que o índice propõe uma reflexão mais ampla sobre segurança e políticas públicas. "O medo e o risco são dimensões fundamentais, que costumam ser negligenciadas. Segurança pública é controlar o crime, mas também gerir as expectativas da população. Não basta não ser vítima, é preciso se sentir seguro."

    A diretora executiva do FBSP, Samira Bueno, dá o exemplo de São Paulo: "Hoje a população se sente mais insegura do que há dez anos, embora a violência tenha caído. Então, a política pública foi efetiva? Do ponto de vista de redução de crimes, sim. Mas, na verdade, a sensação de segurança ficou de fora".

    Neste sentido, segundo os pesquisadores, o índice é uma boa ferramenta para monitorar ações do poder público. "Serve como um termômetro de como as políticas estão sendo implementadas", diz Lima.

    CUSTOS DO MEDO

    Os pesquisadores alertam que as políticas públicas precisam considerar o medo, porque ele tem altos custos sociais e econômicos. A sensação de insegurança limita direitos, como o de ir e vir, e restringe liberdades, ao impedir que os cidadãos ocupem e usufruam do espaço público plenamente.

    "Se não diminuir o medo, a população não vai ter qualidade de vida, lazer e desenvolvimento. A mulher vai deixar de usar saia curta por medo de assédio, por exemplo, e a economia vai continuar a perder 5,4% do PIB com a violência", afirma Lima.

    O pesquisador sugere apostar na investigação, e não apenas no enfrentamento do crime, além de aumentar a confiança nas instituições, como forma de reduzir o medo. Assim, o modelo de polícia comunitária, com laços de proximidade com a população, seria positivo.

    "A pessoa precisa saber para quem pedir ajuda e que vai ter um retorno. Quando a polícia é mais confiável, está presente e tem legitimidade, isso reduz o medo", diz.

    Outro ponto levantado pelo pesquisador diz respeito à gestão do espaço público. "Esgoto a céu aberto, ligação clandestina de TV, falta de iluminação, rua esburacada. Todas essas irregularidades e negligências afetam diretamente a sensação de segurança."

    MULHERES

    A agressão sexual é o item que apresentou a maior desigualdade no novo Índice de Efetividade da Segurança Pública, criado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Datafolha.

    O índice para esse crime foi de 0,56 para mulheres, 0,17 a menos do que para homens –a maior diferença verificada entre grupos separados por gênero, cor, renda e idade.

    Além da agressão sexual, a mulher tem mais medo, é mais vítima e corre mais riscos em todos os itens avaliados pela pesquisa. O índice geral para mulheres, de 0,56, é 0,05 pior do que para homens –também a maior diferença entre grupos demográficos do levantamento.

    A depiladora Debora Muniz, 31, diz que sente essa insegurança diariamente. "Mulher é muito vulnerável, falo por experiência própria", diz. Aos cinco anos, Debora foi estuprada pelo namorado da mãe. Quando fez nove anos, foi estuprada novamente, dessa vez por um tio.

    Os crimes tiveram impactos psicológicos graves, e hoje Debora se considera "paranoica" com segurança –ela tem muito medo de sofrer novas agressões sexuais.

    No último mês, deixou de usar aplicativos de transporte sozinha, após uma experiência negativa com um motorista. "Ele perguntou se eu era casada, disse que eu era bonita e falou: 'você não quer que eu te leve para algum outro lugar?' Fiquei com muito medo", conta ela, que mora em Interlagos (zona sul).

    Debora também não anda a pé de noite ou de manhã cedo sozinha e muda de trajeto toda semana, para evitar que alguém a siga na rua. "Uma vez estava caminhando perto de casa, por volta das 6h, e um carro parou perto de mim. Um homem tentou me arrastar para dentro, me puxando pelo braço. Lutei, gritei, e ele acabou desistindo", diz ela. "Foi horrível, fiquei muito assustada".

    Debora também relata assédios nos transportes públicos, mas diz que não denuncia por "medo e vergonha". "Fora que não adianta fazer registro, só funciona quando é flagrante. Mesmo assim não dá em nada, o cara é solto logo depois", afirma.

    Além das mulheres, a pesquisa mostra que negros, jovens e pobres também estão mais vulneráveis. O índice para pessoas entre 16 e 25 anos é 0,03 mais baixo do que para a faixa etária de 60 anos ou mais.

    O item com maior diferença, de acordo com a idade, é roubo e furto. Para os jovens, o índice para esses crimes é de 0,42 –0,11 a menos do que para os mais velhos. "Isso provavelmente está ligado à maior presença dos jovens no espaço público", diz o diretor presidente do fórum, Renato Sérgio de Lima.

    Via-crúcis depois do estupro

    NEGROS

    No caso dos negros, o índice, de 0,57, é 0,03 mais baixo do que para brancos. Os itens que apresentam maior desigualdade por cor são: ser acusado de crime, ser vítima de violência da polícia, ter filhos presos injustamente e ser vítima de agressão sexual. O índice é pior para negros em todas as variáveis, exceto em "sequestro-relâmpago".

    "O racismo fica explícito nesses resultados, como o medo de ser acusado de um crime injustamente ou da violência policial", explica o diretor de pesquisas do Datafolha, Alessandro Janoni.

    "De nada adianta a pessoa ter a polícia na porta se isso é uma ameaça para ela. Para o poder público pode ser eficaz, porque cumpriu uma meta, mas para a população não é efetivo, porque a polícia não trouxe uma sensação de segurança", afirma.

    MAIS POBRES

    Os mais pobres também são mais impactados pela insegurança. O índice para pessoas com renda familiar de até dois salários mínimos é de 0,58 –0,03 a menos do que para famílias com mais de dez salários mínimos.

    Os itens com maior desigualdade são: vítima de agressão sexual (0,1), ser acusado de crime injustamente (0,06) e parentes envolvidos com drogas (0,05).

    "A segurança pública é mais efetiva para quem já tem um conjunto de direitos conquistados, como o homem branco de classe alta. E é muito menos efetiva para os pobres e negros", afirma Lima.

    Para ele, as diferenças do índice mostram que é preciso investir em ações focalizadas. "Se não pensar a segurança de forma separada, levando em conta questões raciais, de gênero, de idade e por região, vamos só reforçar desigualdades. E não conseguiremos cumprir o que está previsto na Constituição: a segurança como um direito social universal."

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