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    Restrição a gay doador de sangue não tem consenso entre médicos

    NATÁLIA CANCIAN
    DE BRASÍLIA

    12/11/2017 02h00

    Carla Carniel/Codigo19/Folhapress
    LGBTs protestam na região da rua Augusta, em setembro, contra liberação da chamada 'cura gay
    LGBTs protestam na região da rua Augusta, em setembro, contra liberação da chamada 'cura gay'

    Alvo de polêmica no Supremo Tribunal Federal, onde passa por análise, a restrição à doação de sangue por homens gays também não encontra consenso entre especialistas ouvidos pela Folha.

    No centro da discussão, estão duas portarias do Ministério da Saúde e da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que consideram "homens que fazem sexo com homens" inaptos a doarem por até 12 meses após as relações sexuais. Quem questionou as medidas foi o PSB.

    De um lado, parte dos médicos avalia que o Brasil já possui testes eficazes para identificar infecções no sangue -o que não ocorria na época em que a medida foi adotada. Dessa forma, manter a restrição seria uma medida discriminatória.

    De outro, especialistas acreditam que um risco ainda que residual de transmissão de HIV, cuja taxa é maior entre esse grupo, não deve ser desconsiderado. O alto custo da ampliação da oferta de testes também seria um impasse, afirmam.

    ALTERNATIVA

    Proposta alternativa, como a defendida no STF por Alexandre de Moraes, não seria plausível, segundo eles.

    Na última semana, o ministro sugeriu que o sangue resultado da doação por gays fosse "devidamente identificado, separado, armazenado e submetido a testes sorológicos somente após o período da janela imunológica".

    O termo se refere ao intervalo entre a suspeita de infecção pelo vírus e sua possível detecção em exames. Para verificar uma possível contaminação, porém, seria necessária nova coleta de sangue, dizem os médicos.

    Além de Moraes, que abriu uma divergência, outros quatro ministros já votaram -todos a favor da derrubada das portarias. Antes do julgamento ser suspenso, ao menos três deles, no entanto, indicaram tendência a seguir caminho diverso, com questionamentos sobre os impactos da mudança.

    Para os especialistas, não se trata de decisão fácil. "Graças a Deus está na mão do Supremo e não na minha", afirma o infectologista e secretário de Saúde do Estado de São Paulo, David Uip.

    Editoria de Arte/Folhapress

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    A FAVOR DA DOAÇÃO POR GAYS

    Para médicas, veto deixou de fazer sentido e se tornou discriminatório

    Para a médica Valdiléia Veloso, pesquisadora do Instituto Nacional de Infectologia da Fiocruz, a restrição à doação de sangue por gays já fez sentido no passado, quando o Brasil vivia o avanço do HIV e havia limitações na oferta de testes capazes de identificar infecções -o que não ocorre hoje.

    "A qualidade do sangue no Brasil hoje é alta e temos tecnologia para detectar doenças infecciosas que não tínhamos no passado. Hoje se detecta até o material genético do HIV, de hepatite e outras infecções que podem ser transmitidas pelo sangue."

    Ela defende que o cuidado para evitar a exposição a doenças sexualmente transmissíveis por transfusões deve ser um "cuidado geral", e não relacionado a um grupo.

    "Limitar a doação por um grupo de pessoas já não faz sentido e termina atuando como forma de discriminação."

    Para ela, o argumento de incidência maior de HIV entre gays não se justifica. "É justamente pela epidemia [de Aids] ser concentrada que se colocou o teste NAT na rotina", diz, sobre o teste usado pelo Ministério da Saúde que diminuiu a janela imunológica para 12 dias -para outros testes esse período era de um mês.

    A médica defende, contudo, que a entrevista feita durante a etapa de triagem do sangue doado seja feita com cautela para verificar casos de comportamento de risco.

    Para Magda Almeida, do grupo de trabalho de gênero e sexualidade do SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade), a portaria atual aumenta o estigma contra gays. "Esse dado não é valorizado quando são feitas as perguntas a mulheres, porque mulheres que fazem sexo anal também podem aumentar o risco", diz.

    A regra também desconsidera homossexual com parceiro fixo. "Estamos levando um risco que tem que ser avaliado individualmente para um risco coletivo."

    "Os testes têm a mesma sensibilidade para qualquer grupo. Isso não depende da orientação sexual. Não é a questão de ser gay ou não, mas de ter comportamento de risco e fazer sexo sem preservativo", diz Magda. (NC)

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    CONTRA A DOAÇÃO POR GAYS

    Portaria é resultado de estatísticas, e não de preconceito, diz infectologista

    Defensor de demandas de grupos LGBT na saúde, como o acesso a medicamentos preventivos contra o HIV, o infectologista Esper Kallas abre uma única exceção: a discussão que está no STF.

    Para ele, a restrição atual nas normas do ministério e da Organização Mundial de Saúde não é preconceito, mas de questão estatística.

    "São dados que mostram que a chance de escapulir uma infecção inaparente na janela imunológica nessa população é maior. Se isso vai mudar no futuro, não sabemos. Mas, nesse momento, é 16 vezes maior [o ministério diz que é até 19 vezes maior]."

    Ele lembra que a seleção de doadores tem outras restrições. "Hoje, até 30% dos doadores são excluídos por diversas razões, como baixo peso, idade, pressão alta. Doar sangue não é um direito civil. A responsabilidade civil de riscos tanto para doador quanto receptor cai sobre o banco de sangue, e não sobre o doador."

    Outro impasse, segundo Kallas, é o fato de que não há testes 100% eficazes, deixando um "risco residual". "Pode ser até de 0,01%. Mas se você considera isso numa pessoa que está suspeitando de HIV e fez o teste, esse 0,01% começa a se transformar em um número mais significativo na conta final", diz.

    Já para o infectologista David Uip, o alto custo de testes é outro impeditivo. Citado por ao menos três ministros durante o julgamento, o secretário de Saúde de São Paulo diz que uma eventual mudança nas regras teria que ser acompanhada de maior oferta de exames, o que seria inviável.

    "Qual é o limite? O custo. Uma coisa é fazer um exame individualmente, outra é incluir esse exame na triagem de todo o sangue doado no país inteiro", diz Uip, para quem seria necessário buscar novos testes que diminuam o período da janela imunológica -hoje estimada entre 12 a 30 dias.

    "Tenho dúvidas se o local certo para essa discussão é o Supremo. Se para quem faz isso o dia inteiro é difícil decidir, imagina para eles. É uma discussão que tem que estar no nível técnico", completa o secretário.

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