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    Condenado por homicídio passa anos na cadeia e agora tem a pena anulada

    MARIANA ZYLBERKAN
    ENVIADA ESPECIAL A JUIZ DE FORA (MG)

    16/11/2017 02h00

    Há quase 30 anos, um apelido foi suficiente para levar um homem à cadeia. A polícia ouviu de uma testemunha que um certo Português havia matado um traficante e cometido um latrocínio em São Roque (a 60 km de SP).

    Mesmo sem provas, o apelido ganhou nome e sobrenome: Alexandre Fernandes Costa, 52. Ele acabou sendo condenado a 16 anos de prisão por um crime que afirma nunca ter cometido; ficou cinco anos em regime fechado.

    Neto de imigrantes portugueses, Alexandre nasceu no Rio de Janeiro, mas se mudou com a família ainda criança para São Roque, depois que o tio comprou um terreno para cultivar um parreiral e fabricar vinho. Por esse motivo, ele costumava ser chamado de Português por vizinhos e pelos cunhados.

    A ligação entre o apelido e a identidade de Alexandre nunca ficou clara nos autos. Por isso, em julho deste ano, quase dez anos depois de ter sido preso, sua versão da história acabou corroborada pela Justiça, que reconheceu ter dúvidas quanto à autoria do crime pelo qual ele passou cinco anos na cadeia, até 2010, quando ganhou direito ao regime semiaberto. "Foi condenado pela alcunha 'Português'", protestou o desembargador Ruy Alberto Leme Cavalheiro, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na sentença que o absolveu pelo princípio jurídico "in dubio pro reo" (na dúvida, o veredito deve ser a favor do réu).

    A mesma indignação do desembargador pontua o pedido de revisão criminal redigido pelo próprio Alexandre. "Fui condenado, à revelia, por um crime que não cometi Ao que parece e, no mínimo, o verdadeiro culpado também tinha o mesmo apelido que o meu", escreveu no pedido representado pela Defensoria Pública de São Paulo.

    Para o defensor público Paulo Arthur Araújo de Lima Ramos, que representou Alexandre no pedido de revisão criminal, a condenação por meio de provas frágeis é motivo de preocupação. "Em um processo que tramitou sem a sua presença, Alexandre não foi visto por seus acusadores nem ouvido por seu julgador, mas acabou responsabilizado pela remota possibilidade de ter um apelido."

    Pessoalmente, Alexandre é comedido ao relatar sua história. Atualmente funcionário público em um colégio estadual em Juiz de Fora (MG), ele cita uma a uma as falhas no processo que o condenou. Ao lado da pilha de páginas que formam o processo, ele não as consulta uma só vez -sabe nomes, datas e termos jurídicos de cabeça. A fala calma quase nunca se altera, nem diante dos destemperos de sua mulher provocados pelas memórias dos tempos em que ele esteve preso.

    A concentração no caráter técnico do processo é tanta que, muitas vezes, o drama de ter sido culpado pelo crime que se diz inocente fica em segundo plano. "Ficamos muito tristes", disse, ao lembrar do dia em que foi preso.

    Alexandre morava com a mulher e a filha adolescente na pequena Rio Pomba, cidade mineira com 18 mil habitantes (a 168 km de Belo Horizonte). Ele lembra com perplexidade desse dia, já que de repente foi levado para atrás das grades. "Quando vi que era o processo de São Paulo, pensei: 'Minha Nossa Senhora, o que é isso?'."

    A impessoalidade sai de cena para lembrar dos quase dois anos em que ficou preso na cadeia pública da cidade. "Era uma situação degradante. Tinha banho de sol apenas uma vez por semana, por duas horas. Quando chovia, a gente até ficava meio agoniado porque sabia que ia sair da cela só na outra semana. A cela era escura, comecei a ter problema de visão."

    FIM DA PROCURA

    A prisão de Alexandre deu fim a uma procura de 18 anos da Justiça. Em janeiro de 1988 foi a primeira vez que o tal Português se tornou formalmente acusado de um crime.

    O apelido foi enfileirado ao lado de outros igualmente genéricos, Alemão e Cai-Cai, no depoimento à polícia da mulher de um traficante, morto dias antes em São Roque. Ela disse que os três mataram seu marido e também os acusou pela morte de um imigrante japonês, dono de uma fábrica de gelo na vizinha Mairinque. Cai-Cai foi preso logo depois do crime, quando Alexandre já vivia no interior de Minas Gerais. Alemão se tornou fugitivo da polícia.

    Seis meses antes, o comerciante nascido em Kagoshima, no Japão, havia sido encontrado morto com dois tiros, em uma estrada de terra perto de onde morava. Sua casa havia sido revirada. Segundo a polícia, a vítima teria reconhecido os assaltantes e, por isso, foi assassinada próximo ao seu Maverick vermelho, encontrado incendiado a poucos metros do corpo.

    O caso era investigado sem pistas até a declaração da mulher do traficante. Ela disse ter presenciado em frente à sua casa uma conversa do marido com Português e Cai-Cai na qual teriam confessado o assassinato do japonês. Essa é a única prova no processo que liga o apelido ao crime. A testemunha e Alexandre, porém, só foram colocados frente a frente pela primeira vez 22 anos depois do primeiro depoimento, durante julgamento sobre a morte de seu marido.

    Em 2010, ao ser questionada, ela disse que nunca tinha visto o homem algemado, com uniforme de detento, presente no tribunal. Fazia quase dois anos que Alexandre estava preso, quando foi inocentado pela morte do traficante.Ao júri a mulher disse que não chegou a ver Português e Cai-Cai, apenas ouviu a conversa e, por isso, não tinha como reconhecê-lo.

    O investigador de polícia também foi ouvido e afirmou não se lembrar como tinha ligado o apelido a Alexandre. "Estava tateando no escuro", disse. Apesar da primeira vitória no tribunal do júri, Alexandre saiu do julgamento de volta para a penitenciária de Iperó, para onde foi transferido em junho de 2009, e lá ficou até cumprir um sexto da pena de 16 anos.

    Como a condenação pela morte do imigrante japonês havia transitado de forma definitiva, somente uma revisão criminal poderia livrá-lo de vez da cadeia. Por causa da gravidade do crime, Alexandre foi encaminhado para ala do presídio reservado a criminosos de alta periculosidade e integrantes de facções criminosas.

    Assim que chegou ao presídio, ele tentou dizer aos agentes que era inocente, mas não deu certo. "O diretor de disciplina já disse de cara: 'Você é perigoso, hein! Cheio de crimes. Você gosta de matar os outros'. Eu respondi que era um engano, que não era autor daqueles crimes. Ele riu da minha cara."

    OUTRAS PASSAGENS

    Uma vez citado pela mulher como o assassino de seu marido, o tal Português precisava ser identificado pela polícia. A identidade de Alexandre constava nos arquivos da delegacia de São Roque por ter sido indiciado em duas suspeitas de roubo, em 1983 e 1984.

    Na primeira, foi absolvido e, na segunda, condenado a dois anos de prisão, pena que prescreveu em 1998. Esses dois registros fizeram o investigador atrelar, pela primeira vez, o nome dele ao apelido Português, em abril de 1988. Alexandre nega todos os delitos, argumenta ter sido vítima da imprudência da polícia que teria usado seu nome de má-fé para buscar resolver crimes em aberto.

    Na sua ficha criminal, aos dois roubos registrados no início dos anos 1980 se seguem outros quatro indiciamentos pelo mesmo crime, registrados em dezembro de 1987. O delegado Wagner Giudice citou as passagens por roubo para defender sua condenação durante as investigações pelo assassinato.

    Junto com outros dois acusados, ele "foi autor de vários roubos na região de São Roque na época do crime em apuração. Assim, creio que [fica] comprovado o vínculo entre o crime e os marginais", escreveu o delegado.

    Alexandre diz que todos os indiciamentos lhe foram imputados incorretamente e, mais uma vez, acusa a polícia de lhe atribuir o apelido de um criminoso sem nenhuma prova. "O trabalho porco da polícia fez com que meu nome fosse envolvido. Não tem mistério nenhum", diz ele sobre as acusações -foi condenado em apenas uma, mas a pena prescreveu antes de ter sido preso.

    O longo caminho entre a prisão e a absolvição pela Justiça o fez tomar gosto pelo direito e, agora, tem planos de cursar faculdade para colocar em prática o conhecimento adquirido tentando provar sua inocência. "É justo que a pessoa pague pelo crime que cometeu, mas, quando não se tem certeza, é melhor absolver do que condenar."

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