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    Baleada há um ano, menina de 11 anos tem recuperação 'de outro mundo'

    JAIRO MARQUES
    DE SÃO PAULO

    25/12/2017 02h00

    Há um ano, Jenifer Santos de Freitas, 11, não teve condições de abraçar Papai Noel ou mesmo de se encantar com as luzes de pisca-pisca. Estava internada na UTI do Hospital das Clínicas de São Paulo tentando sobreviver após ser atingida por um dos 24 tiros disparados contra o carro em que estava com a família, às vésperas do Natal.

    Mesmo o veículo sendo atravessado por balas calibre 380, somente ela ficou ferida com gravidade. O pai, Luciano dos Santos Silva, 38, que trabalha em uma distribuidora de gás, levou apenas um tiro de raspão na perna.

    A força do projétil causou em Jenifer uma lesão medular, o que imediatamente tirou seus movimentos dos membros inferiores, o controle de tronco e outras funções do organismo, como a capacidade de controle urinário.

    "Sempre ia no banco da frente para que minha mãe e minha irmã mais nova [Sofia, 2] pudessem ir atrás, com mais espaço. Naquele dia, insisti ao máximo com meu pai para mudar de lugar e ele acabou deixando. Não senti dor quando a bala entrou. A sensação era a de que eu estava flutuando. Já não sentia mais minhas pernas", diz Jenifer.

    Até hoje, a família, que mora em Parelheiros, no extremo sul paulistano, mesmo local onde houve o crime, não sabe a razão de ter sido vítima do ataque. O pai pensa que criminosos devem ter confundido o carro, com películas escuras nos vidros, com o de algum grupo rival.

    O luto de Jenifer diante de sua nova condição física durou um mês. "Não falava com ninguém, não queria conversar, não queria nada. Nem o Natal eu vi passar. Não era sofrimento. Era um nada. Só quando comecei a fazer reabilitação fui voltando a ter vontade das coisas."

    MUDANÇAS

    Após quase 90 dias em hospitais e três procedimentos cirúrgicos complexos –um deles para uma meticulosa retirada da bala e controle de suas consequências, como queimaduras internas–, Jenifer foi mandada para casa, mas, agora, tendo que usar uma cadeira de rodas para seus deslocamentos.

    Antes, porém, os médicos descobriram que a lesão medular da menina tinha sido incompleta, o que significava que ela tinha potencial de recuperação de movimentos e de sensibilidade.

    Foi encaminhada, assim, para a Rede de Reabilitação Lucy Montoro, onde teve uma internação para receber tratamentos intensos para tentar reativar habilidades perdidas, num processo multiprofissional, que envolve fisioterapia, terapia ocupacional, médicos fisiatras e muito esforço pessoal.

    Jenifer afirma que não estranhou a cadeira de rodas nem teve receio de não poder mais caminhar como antes. "Ser cadeirante é normal. É difícil com escada, degrau, essas coisas, mas sempre tem alguém que ajuda. Na minha escola, fizeram adaptações para eu conseguir estudar."

    Mãe de Jenifer, a diarista Andreia Helena de Freitas arrisca uma explicação que ajuda a entender a naturalidade da filha diante de sua nova realidade física.

    "Quando ela tinha seis anos, foi a única menina da classe que se propôs a ser par, na festa junina, de um aluno cadeirante. Foi lindo e emocionante. Hoje ela está cadeirante... O mais importante para nós é a nossa filha estar viva, alegre. O resto a gente aprende a lidar. Deficiência não é coisa de outro mundo, não", diz a mãe.

    A capacidade de recuperação da garota, esta sim, foi coisa de "outro mundo". Em poucos meses, ela retomou levemente o movimento e a sensação tátil do pé esquerdo. Com menos de um ano de treino e ajuda de órteses, fica em pé e já experimenta passos em um andador.

    A médica fisiatra Fernanda Martins, que atende Jenifer na Rede Lucy, conta que diversos fatores são responsáveis pela recuperação da garota e que procedimentos médicos ágeis e bem administrados, como o cuidado com a preservação de fibras nervosas da medula, fizeram a diferença.

    "A Jenifer tem uma maturidade emocional diferenciada e conta com um importante engajamento da família, que não demonstra ansiedade e dá muito apoio a ela. Ela tem conseguido progredir com objetividade, em um tempo menor que o previsto."

    Na mesma linha vai a fisioterapeuta Danieli Marconi, que participa de sessões semanais com a menina.

    "Ela tem tido ganhos progressivos. A capacidade de resiliência que ela tem e a sustentação familiar fazem os resultados serem melhores."

    SONHOS

    Neste Natal, Jenifer não pediu nenhum presente em especial aos pais, que viveram praticamente de favores durante o ano porque deixaram os trabalhos para cuidar integralmente da filha mais velha. A caçula ficou sob os cuidados da avó.

    "Ia começar em um novo emprego, com carteira assinada, em janeiro, mas com o acidente deixei tudo de lado para cuidar dela. Depois, meu marido a acompanhou na reabilitação e eu fui fazer faxina. Aos poucos a vida está voltando para os eixos."

    Luciano acabou ficando bem conhecido no centro de reabilitação, pois não é comum que pais acompanhem os filhos em processos de recuperação. O mais comum é a missão recair sobre as mães.

    "Choro quando lembro tudo o que ela passou, choro por não ter sido eu quem se feriu em vez dela. Foi a fé o que sustentou nossa família e me deu forças. Acompanhar minha filha na reabilitação, ver as melhoras dela, me ajudou a seguir em frente."

    Quando questionada a respeito de seus sonhos, a menina não titubeia e diz que pretende estudar para ser fisioterapeuta. Em seguida, com a voz embargada, pensa e diz baixinho: "Também queria voltar a andar".

    Segundo a médica Fernanda Martins, o desejo da garota pode não ser sonho, pois uma melhoria do andar para ela é uma realidade.

    "Ela já está em treino com o andador. Estamos controlando espasmos com aplicação da toxina botulínica e há bastante chance de tornar a marcha dela mais funcional. Não é uma expectativa irreal, é algo em que vamos trabalhar para atingir o objetivo."

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