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    'Sobrevivi', diz vítima de operação da polícia de caça a travestis há 31 anos

    FERNANDA CANOFRE
    CLEDIVÂNIA PEREIRA
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    17/01/2018 02h00

    Marcus Leoni - 1º.nov.2017/Folhapress
    Patrícia, vítima da Operação Tarântula, que prendeu travestis e trans sob pretexto de combate à Aids
    Patrícia, vítima da Operação Tarântula, que prendeu travestis e trans sob pretexto de combate à Aids

    Em 1987, Patricia Vieira Nascimento não podia ficar tranquila quando estava na rua. E, aos 19 anos, ela dependia disso para sobreviver.

    Há quase 31 anos, ao mesmo tempo em que ela e um grupo de amigas –todas travestis– ganhavam nas esquinas o dinheiro para pagar por teto e comida, a Polícia Civil de São Paulo criava, por iniciativa própria, uma operação que legalizou a prisão arbitrária de travestis na capital.

    A ação usava o "combate à Aids" como justificativa. "Sou uma sobrevivente. A gente era caçada, literalmente. É esse nome, não tem outro. Éramos vistas como bichos", lembra Patricia, hoje aos 49 anos.

    Hoje, trabalhando numa ONG com a reinserção social e profissional de mulheres trans e travestis, ela sabe que ainda falta muito. A expectativa de vida da população trans segue baixa: 35 anos.

    Muitas trabalham com prostituição, como era o caso de Patrícia. "Aos 17, tentei me matar porque minha família não me aceitava. Quando completei 18 anos, saí de vez de casa e fui morar e trabalhar no centro", diz.

    A OPERAÇÃO

    A operação da Polícia Civil foi denominada Tarântula e teve vida curta. Iniciada no dia 27 de fevereiro de 1987, foi suspensa em 10 de março do mesmo ano, depois que grupos em defesa dos direitos LGBT encaminharam nota de repúdio à Secretaria Estadual da Segurança Pública, contra prisões arbitrárias.

    Cerca de 300 travestis e mulheres trans foram perseguidas na ação.

    O início da operação foi registrado em matéria publicada na Folha, em 1º de março de 1987. A manchete: "Polícia Civil 'combate' a Aids prendendo travestis". No primeiro dia, 56 pessoas foram presas.

    Márcio Cruz, delegado-chefe na época, dizia que a cidade estava vivendo "um período pré-apocalíptico" e que as travestis responderiam por "ultraje ao pudor público e crime de contágio venéreo". O nome da operação fora escolhido porque, como uma aranha, ela teria "vários braços, braços longos".

    "Colocavam as travestis dentro do camburão e elas se debatiam. O carro ia em alta velocidade. Quando parava, tinha menina de braço quebrado, uma com o salto enfiado na perna da outra. Era horroroso", diz Renata Peron, presidente do Cais (Centro de Apoio e Inclusão Social de Travestis e Transexuais), que ouviu relatos de vítimas da operação, anos depois.

    A operação terminou graças à intervenção do então secretário da Segurança, Eduardo Muylaert, depois de um encontro com ativistas, que denunciaram a ação.

    Questionado sobre a operação, Muylaert, que é advogado, disse não lembrar do caso. A única coisa que recorda é "de uma época que estavam matando travestis".

    Segundo ele, sua relação com a Polícia Civil era "difícil". "Eles vinham de uma tradição da ditadura, de dar porrada. Foi uma época de repressão muito pesada. Uma repressão ideológica."

    Ainda que ataques não sejam raros hoje, Patrícia vê diferenças. "Naquela época, o preconceito era muito maior. Tinha lugares que a gente não entrava. Hoje, ele ainda existe, mas já avançamos muito."

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