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    Greve na USP faz professor dar aula secreta, e diretor questiona violência

    PAULO SALDAÑA
    DE SÃO PAULO

    22/06/2016 17h00

    Fernando Donasci - 16.jan.2014/Folhapress
    Vista aérea da USP (Universidade de São Paulo)
    Vista aérea da USP (Universidade de São Paulo)

    A ocupação promovida por estudantes grevistas em prédios das universidades estaduais de São Paulo tem motivado professores a organizarem aulas em locais secretos para driblar piquetes.

    Na FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) da USP, as aulas e as atividades administrativas estão interrompidas desde 12 de maio por causa de ocupações. Na semana passada, uma professora da faculdade convocou uma aula de Projetos de Pesquisa em um restaurante dentro da própria universidade.

    A convocação de encontros secretos tem se repetido em outras unidades da USP e também na Unicamp e Unesp. A prática já provocou conflitos entre alunos favoráveis à paralisação total, conforme reportagem publicada nesta quarta (22) pelo jornal "O Estado de S. Paulo".

    Estudantes da USP reivindicam, entre outros pontos, a aprovação de cotas nas universidades e a contratação de professores. O movimento apoia a greve dos professores e servidores técnico-administrativos, deflagrada em maio.

    Em entrevista à Folha, o diretor da FFLCH, professor Sergio Adorno, defende que "o apelo cada vez mais frequente à violência" tem preocupado a direção.

    Zé Carlos Barreta/Folhapress
    SAO PAULO, SP, BRASIL, 28-06-2013, 10h00: O cientista politico Sergio Adorno fala a Folha sobre as manifestacoes. (Foto: Ze Carlos Barretta/Folhapress COTIDIANO)
    Sérgio Adorno é diretor da FFLCH da USP

    "A violência intimida, ameaça, dissemina sentimentos de medo, incerteza e insegurança e, além do mais, interrompe a possibilidade de diálogo e de negociação", diz. Segundo Adorno, a greve atual rompeu uma tradição de manter o acesso ao prédio administrativo da faculdade em movimentos de ocupação, preservando atividades como a pós-graduação.

    *

    Folha - Como o senhor vê a greve que atinge a FFLCH, com aulas totalmente paralisadas?
    Sergio Adorno - A greve das categoriais profissionais –docentes e funcionários técnico-administrativos– é um direito assegurado pela Constituição brasileira, pelas Convenções de proteção ao trabalho e ao trabalhador bem como pela legislação trabalhista.

    Suas pautas estão, em geral, relacionadas ao reajuste salarial, às condições de trabalho e à defesa da instituição universitária. Não cabe à Direção se manifestar contra um direito consagrado.

    Greves tem por objetivo interromper o ciclo regular das atividades, o que consequentemente gera ônus e prejuízos em face dos objetivos institucionais planejados anualmente, como cursos, pesquisa e atividades de cultura e extensão.

    Dois aspectos preocupam a Direção. A regularidade e alongamento das greves de categorias profissionais e as paralisações envolvendo alunos, desde o início desta década.

    Em segundo lugar, o apelo cada vez mais frequente à violência, como as ocupações e bloqueios de prédios que comprometem o direito de ir e vir, igualmente protegido pela Constituição e –o que é mais importante– previsto na Convenção da OIT [Organização Internacional do Trabalho].

    A violência intimida, ameaça, dissemina sentimentos de medo, incerteza e insegurança e, além do mais, interrompe a possibilidade de diálogo e de negociação. A violência retira docentes, funcionários e discentes de seu espaço de convivência, afasta a todos uns dos outros. Impede ainda o direito de escolha, porque a greve não é obrigatória numa democracia.

    A direção da faculdade tem a dimensão de adesão à greve entre professores e servidores?
    Não. Não temos esse controle, até porque –assim creio– todo movimento dessa ordem tem um ciclo de deflagração, crescimento e declínio. Com o acesso aos prédios bloqueados, não há como avaliar a dimensão da greve.

    Ademais, como a greve é um direito, aqueles que aderem o fazem por sua livre escolha. Do mesmo, é preciso assegurar os direitos daqueles que não querem aderir. Por isso, para muitos segmentos da comunidade acadêmica o emprego de métodos como 'cadeiraços', piquetes e invasões não são legítimos porque justamente impedem a manifestação daqueles que não querem aderir.

    É sempre difícil reconhecer, mas uma sociedade pluralista e democrática deve lidar com suas diferenças internas, aprender a respeitá-las, não hierarquizá-las, e manter padrões elevados de civilidade nas relações sociais e interpessoais.

    Forçoso também é admitir que, se aqueles que aderem estão protegidos por direitos, nem por isso estão isentos de responsabilidade por seus atos ou deixam de estar sujeitos a medidas drásticas como suspensão temporária do pagamento de salários.

    Estamos no limiar de uma cultura política em gestação que relativiza a extensão das perdas, como a suspensão das aulas.

    O senhor poderia mensurar quais prejuízos foram somados até agora com essa paralisação?
    Somente é possível estimar prejuízos após o encerramento do movimento. Não tenho como prever sua duração e os efeitos cumulativos do tempo.

    Há prejuízos materiais decorrentes do não cumprimento de metas e objetivos, como o não encerramento, como planejado originalmente, de cursos semestrais, tanto na graduação quanto na pós-graduação, o que impede um número considerável de alunos de se formarem, concluírem suas dissertações e teses e buscarem inserção no mercado de trabalho.

    Outros prejuízos podem estar relacionados à interrupção, também temporária, de convênios de pesquisa e de intercâmbios docentes e discentes, inclusive visitas, estágios, participação em seminários e realização de cursos em universidades e centros de pesquisa no exterior ou mesmo em outras instituições acadêmicas do país.

    Paralisações longas comprometem processo em curso de internacionalização das humanidades produzidas no Brasil. Corre-se mesmo o risco de convênios com instituições de ponta e altamente privilegiadas não serem renovados, ou pior, serem interrompidos.

    Congressos, seminários, simpósios planejados com muita antecedência, com uso de dinheiro público, com convidados nacionais e internacionais, são abortados ou transferidos até mesmo para faculdades privadas ou centros particulares de cultura.

    Mas há também os prejuízos, por assim dizer, imateriais, aqueles que incidem na qualidade das relações entre docentes e discentes que é construída dia-a-dia em sala de aula, nos corredores, por meios eletrônicos, pela convivência em seminários e eventos acadêmicos. Esses prejuízos dizem respeito a uma espécie de –a palavra talvez seja forte de mais– empobrecimento de nossa vida acadêmica.

    A adesão à greve é uma decisão individual dos profissionais, mas a direção fez alguma orientação de tentativa de manutenção de atividades para aqueles que não aderiram?
    Até há pouco, havia uma espécie de acordo entre grevistas e dirigentes no sentido de preservar um elenco de atividades consideradas essenciais na Faculdade, como a pós-graduação cuja dinâmica está presentemente muito marcada por prazos e financiamentos.

    Paradoxalmente, nessas paralisações os cursos de graduação nunca são considerados essenciais, embora presentemente recebamos 50% de alunos oriundos de escolas públicas e estejamos comprometidos com nossa missão de promover formação e qualificação para aqueles menos protegidos pela justiça social.

    Nessa espécie de acordo, alguns prédios, em especial o da Administração da Faculdade de Filosofia, permaneciam com acesso liberado, sem bloqueios, o que não acontecia necessariamente com os prédios do conjunto didático.

    Esse acordo foi recentemente quebrado, por razões diversas, cuja gestação não é recente e tem a ver com mudanças profundas em curso na sociedade brasileira que afetam a dinâmica dos movimentos sociais.

    É tradição da Faculdade –e esta Direção buscou respeitar– não obrigar quem quer que seja a trabalhar em períodos de greve. A despeito de poderosas pressões do movimento grevista, alguns decidem continuar o trabalho. As dificuldades são imensas, principalmente quando estão deslocados de seus locais originais de ocupação.

    A Direção tem buscado atender situações emergenciais. Mas a grande maioria das demandas permanece em suspenso, aguardando o desfecho das greves e paralisações.

    O semestre está em risco por causa da greve?
    Ainda não é possível avaliar. Mas, períodos de paralisação longa sempre colocam essa possibilidade no horizonte político-institucional.

    Suas consequências podem ser desastrosas como o acúmulo de semestres em um mesmo semestre, em um cenário de carência de docentes e funcionários técnico-administrativos, de precariedade da infraestrutura disponível, em especial salas para acomodar tantos alunos –cerca de 14000.

    Para se ter uma ideia, no curso de Letras são oferecidas anualmente 840 vagas. É um único curso com mais de vinte especialidades, o que requer professores altamente especializados e qualificados para a cobertura de amplo leque de saberes.

    Embora nas demais áreas –Antropologia, Sociologia, Ciência Política, Filosofia, História e Geografia– o número de vagas seja menor, os problemas não são diferentes, pois tal como em Letras há disciplinas básicas e optativas que compõem os currículos e devem ser ministradas necessariamente.

    Manter padrões de qualidade, nestas circunstâncias completamente adversas, é um desafio quase impossível de ser enfrentado e superado. Com o cancelamento do semestre, pode-se levar, por exemplo, dois anos para reposição da normalidade, isso se não houver novas paralisações.

    A FFLCH tem um histórico de vanguarda em movimentos reivindicatórios na USP, muitos dos quais envolvem greves. A que o senhor atribui isso? Qual reflexo desse engajamento?
    Em várias outras universidades, do Brasil e do mundo, as áreas de humanidades são mais sensíveis aos movimentos reivindicatórios? Não tenho uma reflexão detida sobre essa questão. Não saberia de fato dizer.

    Desconheço a existência de investigações comparativas entre as humanidades e outras áreas do conhecimento que me habilitassem melhor responder à pergunta. Possivelmente, essa sorte de vanguardismo e mesmo radicalismo, presente nas humanidades, depende de tradições locais, da influência hegemônica de determinadas escolas de pensamento e de uma história de lutas locais e nacionais.

    Certamente, o cenário da USP pode ser comparado com outras universidades latinoamericanas, mas dificilmente se pode compará-lo com a força dos movimentos em universidades americanas, canadenses e europeias cujas tradições são outras. Por exemplo, em algumas destas universidades os piquetes existem, porém se restringem ao convencimento.

    Raramente bloqueiam o acesso aos prédios. As greves são de um ou dois dias, como acabou de acontecer na Inglaterra –em duas ou três instituições. E há corte de salário, mesmo em países como a França.

    A direção sugeriu uma alternativa de conciliação para a situação atual para alunos, funcionários e professores?
    Há uma pauta extensa de reivindicações formuladas pelos alunos. Estranhamente, parte delas é pauta do movimento grevista dos funcionários técnico-administrativos.

    Tem-se que fazer um esforço para encontrar caminhos de mediação para o encaminhamento de, senão no todo –pois muitas das demandas não dependem da Unidade– ao menos em grande parte. Quanto à questão da greve dos funcionários técnico-administrativos, a questão é de outra natureza. Ou, ao menos parece ser.

    Trata-se de conflito laboral, entre os trabalhadores e o patrão que é a USP, cujo representante é o Reitor. Nenhum diretor de unidade é o representante da USP.

    Em virtude das disputas em torno do controle da frequência durante a greve, regulamentada por meio de documento oficial, esse conflito foi transferido indevidamente para dentro das Unidades. Não temos como negociar reajuste salarial ou reivindicações congêneres.

    Essa espécie de patologia institucional está extraindo das Direções toda a energia necessária para enfrentar e oferecer respostas consensuais para os problemas decorrentes da paralisação das atividades acadêmicas.

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