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    Análise

    Gêneros textuais norteiam estudo da língua portuguesa

    THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
    CONSULTORA DE LÍNGUA PORTUGUESA DA FOLHA

    24/07/2016 02h00

    Uma das mais ruidosas críticas à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi a de que a gramática tinha sido negligenciada no documento. Diante do alarido, houve um esforço para incorporar na segunda versão alguns tópicos familiares aos não iniciados em linguística, além de algum espaço para o estudo da norma-padrão.

    Como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), o documento é norteado pelas pesquisas feitas na área da linguística (análise do discurso, teoria da argumentação, linguística textual etc.), que propõem novas abordagens do português brasileiro.

    O reconhecimento de que há diferenças suficientes entre a matriz lusitana e a língua que se fala no Brasil levará para a sala de aula o questionamento de algumas das regras consagradas na gramática tradicional. Ressalve-se, porém, que não há consenso, mesmo entre os estudiosos, sobre diversas dessas questões.

    Base Nacional Curricular

    Em seu livro "Língua e Sociedade Partidas", o professor Dante Lucchesi conclama os linguistas a chamar para si a tarefa de propor uma normatização da língua.

    O senso comum, por sua vez, tende a confundir a língua com a norma-padrão. Desfazer esse mito, distinguindo com precisão uma coisa da outra, parece ser uma das preocupações centrais do documento.

    Propõe-se que a norma-padrão seja ensinada não como modelo único de realização da língua, mas como uma das suas variantes, notadamente a de maior prestígio.

    Espera-se que o aluno tome conhecimento do problema da variação linguística e aja como cientista da língua, isto é, rechace qualquer julgamento de valor sobre uma ou outra forma de expressão.

    Sai de cena o estudo de caráter prescritivo, típico da gramática tradicional, para a qual os chamados "bons autores" são o eterno modelo a seguir. Do ponto de vista da sociolinguística, o maior defeito desse tipo de abordagem é o de promover o preconceito contra os usuários das outras variantes linguísticas.

    O estudante deverá adquirir a competência linguística por meio do trabalho com os gêneros textuais, que se definem nas situações e esferas de uso da língua. Parte-se do uso para a reflexão e desta de volta para o uso.

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    Os PCN já indicavam esse rumo para a elaboração dos currículos de língua portuguesa. Vale lembrar que o vestibular da Unicamp vem propondo essa abordagem em sua prova de redação.

    Isso não significa deixar de estudar a gramática, mas, sim, dar sentido ao estudo da língua, veículo privilegiado de atuação na sociedade. Nessa linha, valoriza-se também a produção oral.

    Ao estudar estratégias de argumentação, por exemplo, o jovem poderá perceber o uso de palavras de diferentes classes gramaticais que atuam para determinado fim. Em vez de memorizar conjunções, pronomes e advérbios separadamente, poderá estudar essas categorias sob outro tipo de agrupamento, de acordo com o uso mobilizado em cada gênero textual.

    Explicita-se que o professor não deve ensinar tópicos gramaticais sem demonstrar sua aplicação nos textos, o que é salutar, embora um pouco de sistematização de conteúdos possa dar segurança aos alunos.

    Sepulta-se em boa hora o empoeirado ensino apostilado que migrou das salas de cursinho pré-vestibular para os colégios de mesma marca e se espalhou por escolas privadas. Sepultem-se também certas provas de concursos públicos, ainda centradas na memorização de conteúdos.

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    É de esperar que, nesse contexto, a NGB (nomenclatura gramatical brasileira), cujo uso já vem sendo desestimulado pelos PCN, dê lugar a outra terminologia. O tema pede alguma discussão.

    Outra questão a lembrar é a avaliação do aprendizado, uma vez que o conteúdo descrito, em grande parte, semelha uma coletânea de estratégias de aula, sem indicação clara da progressão de complexidade dos textos, cuja seleção terá de ser cuidadosamente feita pelos professores.

    Para fazer funcionar esse programa, que, por vezes, dá a impressão de ser a descrição de uma situação ideal (alunos atentos, participativos e compreensivos envolvidos num processo lúdico de aprendizagem usando tecnologias para produzir blogs, vídeos etc.), é necessário considerar a opinião dos que estarão na linha de frente do processo, lecionando nas escolas públicas e privadas de todo o território nacional.

    Mais que isso, é preciso assegurar a educação continuada dos docentes, o que passa obrigatoriamente pela valorização salarial da profissão.

    Caso contrário, a BNCC, com toda a sua ambição de ser um vetor da construção da cidadania, será aplicada a contento só nas escolas de elite, cujos professores são doutores em linguística e cuja clientela carrega consigo a bagagem cultural da origem.

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    Calendário

    26.jun.2014 Plano Nacional de Educação é sancionado; lei prevê que o governo crie uma proposta de base curricular em até dois anos

    16.set.2015 MEC apresenta 1ª versão do documento e abre consulta pública; as áreas de história e gramática geraram polêmica

    15.dez.2015 Ministério inicia análise das contribuições recebidas na consulta pública, que acaba em 15.mar.2016

    3.mai.2016 MEC divulga 2ª versão da base e a envia ao Conselho Nacional de Educação e a representantes de Estados e municípios

    Jun. e jul.2016 Texto está sendo debatido em seminários nos Estados e deve ser devolvido ao MEC até agosto; o objetivo é ter a versão final até novembro, mas não há previsão de quando começa a valer

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