• Educação

    Friday, 19-Apr-2024 14:51:42 -03

    Comissão federal para avaliar negros cotistas é questionada por advogados

    MACHADO DA COSTA
    DE BRASÍLIA
    PAULO SALDAÑA
    FELIPE MAIA
    DE SÃO PAULO

    03/08/2016 02h00

    Rogério Padula/Futura Press/Folhapress
    SÃO PAULO,SP,24.06.2016:ROTESTO ESTUDANTES E COLETIVOS NEGROS USP - Estudantes da USP de e coletivos negros da USP, realizam na noite desta sexta-feira (24), ato reivindicando cotas no vestibular FUVEST, em São Paulo (SP). (Foto: Rogério Padula/Futura Press/Folhapress) *** PARCEIRO FOLHAPRESS - FOTO COM CUSTO EXTRA E CRÉDITOS OBRIGATÓRIOS ***
    Ato em São Paulo reivindicava cotas para negros no vestibular da USP

    O governo federal passará a verificar se os candidatos que se declaram negros para disputar concursos públicos para cargos federais por meio do sistema de cotas são realmente pretos ou pardos.

    A norma, fixada pelo Ministério do Planejamento do governo Temer (PMDB), estabelece a criação de comissões para verificar a autodeclaração. A medida é questionada por especialistas em direito.

    Lei de junho de 2014 define que 20% das vagas de concursos sejam destinadas a pretos e pardos (negros). Pela lei, podem concorrer a essas vagas aqueles que se autodeclararem dessa forma –mesmo critério adotado pelo IBGE e por universidades públicas que adotam cotas.

    Agora, essas comissões (que precisarão ter integrantes distribuídos por gênero, cor e naturalidade) deverão fazer essa análise antes da homologação do resultado final. A presença do candidato será obrigatória. Ele será eliminado na hipótese de declaração considerada falsa.

    Os critérios para verificar a autodeclaração, segundo a nova regra, devem considerar só a aparência do candidato. A reserva vale para concursos com mais de três vagas. Editais em andamento deverão incluir a verificação.

    A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, do Ministério da Justiça, diz que a medida foi tomada porque são "recorrentes as denúncias de fraudes e/ou de apropriação da prerrogativa que é de indivíduos negros".

    O diretor da ONG Educafro, frei David Santos, diz que o movimento negro defende desde 2014 algum método contra fraude. "Anos atrás éramos uníssonos no apoio à autodeclaração. É grande o número de negros com vergonha de assumir a negritude, então seria um bom instrumento para fazê-los acordar. Mas notamos que brancos espertos acordaram antes."

    O governo afirma ter seguido tratativas do Ministério Público Federal e da AGU (Advocacia-Geral da União), mas as contestações judiciais podem ser esperadas, segundo Marcelo Figueiredo, especialista em direito constitucional e professor da PUC. "Com a norma, há uma inversão da lógica da lei. Cria uma etapa de aferição não prevista."

    "A regra cria restrição a mais do que prevê a lei, e a regulação não pode ampliar condições", diz Oscar Vilhena, da FGV. "A lei permite aferição só no caso de denúncia."

    Embora não veja ilegalidade, Floriano de Azevedo Marques, professor de direito da USP, aponta "risco de racismo, ao criar um padrão de quem é negro, além de expor as pessoas ao constrangimento."

    CASO UNB

    A existência de comissão que analisa a veracidade da autodeclaração de negros já causou bastante polêmica no ensino superior. A UnB (Universidade de Brasília) adotou o sistema entre 2004 e 2012.

    Uma das primeiras instituições de ensino superior a adotar cotas raciais, em 2004, a UnB contava com uma comissão que analisava a foto dos candidatos para essa comprovação. Em 2007, a instituição decidiu mudar o modelo para entrevistas após um caso de grande polêmica.

    Naquele ano, dois estudantes gêmeos tentaram ingressar pelas cotas. Após análise da comissão (que foi chamada de "Tribunal Racial"), um passou e o outro, não.

    O professor Mauro Rabelo, decano de ensino de graduação da UnB, defende o modelo e diz que, naquele momento, houve aperfeiçoamento das regras. "Estatisticamente, eliminávamos na entrevista cerca de 15% dos candidatos com o critério 'fenótipo'."

    O modelo de entrevista, adotado naquele momento, foi abandonado em 2012 após a aprovação da lei de cotas –que definiu a reserva de vagas em todas as instituições federais de ensino superior.

    Rabelo explica que a nova lei deixava claro os critérios para seleção. "A lei estabeleceu que o critério era autodeclaração. Não está explicitado em nenhum momento que seria 'fenotípico', como era definido em nossos editais de vestibular", afirma. "Para garantir similaridade, abortamos as entrevistas."

    DECISÃO DO STF

    Quando o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu pela constitucionalidade das cotas, em 2012, o objeto da ação era o sistema da UnB. As comissões de análise de veracidade também foram debatidas na ação. "É difícil justificar essa ideia do denominado 'tribunal racial'", declarou, então, o ministro Gilmar Mendes.

    Já o ministro Ricardo Lewandowski ponderou a favor da instância. "Tanto a autoidentificação, quanto a heteroidentificação, ou ambos os sistemas de seleção combinados, desde que observem, o tanto quanto possível, os critérios acima explicitados e jamais deixem de respeitar a dignidade pessoal dos candidatos, são, a meu ver, plenamente aceitáveis do ponto de vista constitucional", diz.

    Após a decisão do STF, a lei de cotas passou pelo Congresso e foi sancionada. Além da reserva de 50% vagas para alunos de escola pública, as instituições deveriam respeitar porcentuais de negros registrados pelo IBGE em cada Estado. Em São Paulo, por exemplo, a proporção de negros na população é de 35%. No país, essa taxa é de 51%.

    A lei vale para as 63 universidades e 38 institutos e centros federais de educação, ciência e tecnologia. Algumas universidades estaduais também adotam o sistema.

    Em São Paulo, a Unesp reserva vagas em seu vestibular desde 2014. A USP vai reservar para o próximo vestibular 5% das vagas para pretos, pardos e indígenas, com seleção realizada pelo Enem (Exame Nacional do Ensino Médio).

    ANÁLISE

    No caso das universidades, o critério é sempre por autodeclaração. Com a nova regra para o funcionalismo federal, os critérios de verificação deverão considerar só aspectos fenotípicos –a aparência. Casos dúbios, como candidatos brancos com cabelos crespos, por exemplo, serão analisados individualmente. Haverá possibilidade de recurso após parecer da comissão.

    Humberto Adami, do Instituto de Advocacia Racial e Ambiental, afirma que definir esse tipo de regra é importante porque opositores das cotas "se aproveitam dos casos de fraude para fazer críticas". "Quem tem que ficar preocupado são os fraudadores".

    Após a lei de cotas para concursos, o governo analisou 108 editais (de setembro de 2014 a dezembro de 2015). Ao todo, 17% das 19.621 vagas ofertadas foram destinadas para negros. O número fica abaixo dos 20% previstos.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024