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    Rio de Janeiro

    Tema de redação do Enem surpreende e emociona alunos de escola de surdos

    LUIZA FRANCO
    DO RIO

    06/11/2017 19h35

    Leonardo Wen/Folhapress
    Ricardo Boaretto, 34, e Isabelle Barboza, 27, no Rio; os dois fizeram a prova do Enem em libras
    Ricardo Boaretto, 34, e Isabelle Barboza, 27, no Rio; os dois fizeram a prova do Enem em Libras

    Para Ricardo Boaretto, 34, o Enem deste ano representou a superação de um trauma. Para Isabelle Maia, 27, que já havia feito o exame três vezes antes, "foi outra prova, totalmente diferente".

    Os dois são surdos. Pela primeira vez, puderam fazer o Enem na língua deles, pois este foi o primeiro no qual o conteúdo das perguntas foi traduzido para Libras (língua brasileira de sinais).

    Ricardo e Isabelle participavam, nesta segunda, de um congresso internacional do Ines (Instituto Nacional de Educação de Surdos), a mais antiga escola de deficientes auditivos do país.

    O assunto do dia nos corredores era, claro, o Enem, principalmente a redação, cujo tema foi "desafios para a formação educacional de surdos". Surpresa foi a reação mais citada. Na preparação para a prova, os alunos do Ines haviam discutido vários temas, mas nunca esse, que já é assunto de conversas cotidianas.

    "Pensei que, finalmente, estão entendendo que tem um grande número de surdos", disse Glória Dorneles, 52, em mensagem de texto à Folha.

    Segundo o Censo de 2010, 9,7 milhões de pessoas têm deficiência auditiva no país. Glória acha que se saiu "mais ou menos" na redação, não por causa do conteúdo, mas porque ela tinha que ser escrita em português, o que Glória acha difícil.

    Ela trabalha em um supermercado e pretende fazer faculdade um dia, "se Deus quiser."

    Na redação, escreveu que acha necessário que haja mais professores formados e mais escolas realmente bilíngues. Inclusão, para ela, significaria "mais oportunidades e respeito com as pessoas que têm deficiência".

    Já no restante da prova, acha que foi bem em inglês e mal em português. "Eu gosto de inglês", diz. Coordenador do colégio do Ines, Fabrício Migon, 42, diz que isso é natural, já que tanto inglês quanto português são línguas estrangeiras para os surdos.

    Ele diz que o que ainda torna o Enem difícil é o vocabulário –há termos em português que não têm uma tradução precisa em Libras. Textos muito longos também são desafiadores, pois surdos estão mais habituados a exercitar a memória visual. Não há uma disciplina que seja mais ou menos complicada, isso varia de acordo com a pessoa. Neste domingo (12), os candidatos fizeram prova de ciências humanas e de linguagens.

    Até este ano, Ricardo nunca havia tentado fazer a prova do Enem. "Eu só observava", disse à Folha, por meio de um intérprete. "Eu tinha medo de provas em português porque fiz vestibular e me saí muito mal. Fiquei inseguro, me sentindo culpado por não entender a língua. Depois fiz processos seletivos em Libras e fui bem. Então, quando soube do Enem, achei que teria chance", diz ele, que ajudou a organizar o congresso do Ines e pensa em tentar fazer teatro.

    Seu desempenho, diz, foi bom em algumas disciplinas, ruim em outras. "Tinha muita coisa que eu não via desde o ensino médio."

    Surdez

    Quando viu o tema da redação, não acreditou. "Foi como a volta de Jesus. Foi como se o surdo ganhasse visibilidade de repente." Assim como outros surdos ouvidos pela reportagem, o grande obstáculo nessa etapa não foi o tema, mas sim o português. Ricardo gostaria que fosse possível fazê-la também em Libras.

    Isabelle fez a prova pela quarta vez e diz que parecia outro exame. "Finalmente pude fazer a prova na minha língua, como os ouvintes fazem em português. Tive muito mais clareza sobre o que diziam as perguntas. Foi outra coisa", contou ela, por meio de um intérprete.

    Ela disse que chorou ao ver o tema da redação. Ao contar a experiência, chorou de novo. "Me senti respeitada. É um reconhecimento nacional. Foi um desafio para os ouvintes, tiveram que imaginar como é ser surdo, praticar empatia. Vi gente entregando o texto sem nem terminar de escrever." Já ela, que é professora da Libras, não sentiu falta de argumentos.

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