Na véspera do seu aniversário deste ano, Clara caprichou no visual para ir à Disney ver a sua princesa preferida, a sereia Ariel.
No dia seguinte, 11 de setembro, a garota nascida no Recife (PE) completava 9 anos, na mesma data em que o mundo rememorava os 15 anos dos atentados às Torres Gêmeas, em 2001.
"Nosso 11 de Setembro pessoal também mudou a nossa história", diz o analista de sistemas, Carlos Pereira, 38, sobre o dia do nascimento da filha, que sofreu uma paralisia cerebral durante o parto.
A família pernambucana viu parte do seu mundo ruir diante do diagnóstico de que Clara não ia andar nem falar em razão de sequelas da falta de oxigenação no cérebro.
Começava uma história de dedicação, superação e empreendedorismo. "Conviver com a deficiência de Clara me fez entender as necessidades de quem não se comunica oralmente e me levou a transformar isso em um software", reconhece o pai.
Nascia o Livox, aplicativo para tablets e smartphones que permite que pessoas com deficiências se comuniquem e aprendam. "Criamos diversos algoritmos inteligentes que se ajustam à deficiência motora, cognitiva ou visual."
Clara inspirou e testou cada avanço da tecnologia brasileira que ganhou a chancela da ONU (Organização das Nações Unidas) em 2015 como a melhor ferramenta de comunicação alternativa do mundo. "Tenho em casa um exemplo 24 horas por dia, 7 dias por semana", diz Pereira, sobre um dos diferenciais do produto inovador.
O aplicativo custa R$ 1.350, mas passou a ser vendido com desconto de 74% pelas Apaes (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) de São Paulo para democratizar o software no Brasil.
FALTOU OXIGÊNIO
O drama pessoal foi ponto de partida para que Carlos e a mulher, Aline, 36, transformassem "a tristeza em força para procurar meios para desenvolver as potencialidades da filha". A mãe viu a gravidez saudável virar pesadelo. "Fui ter um parto normal, mas a médica decidiu fazer cesárea. Com a demora, faltou oxigênio para Clara."
O casal soube da extensão do dano três meses depois. E foi à luta com a campanha "Um Real por um Sonho". Arrecadaram US$ 40 mil para custear um tratamento com células-tronco na China, entre 2007 e 2008. "A melhora foi considerável. Ela recuperou a capacidade de deglutir alimentos, um ganho fabuloso. Não comia nada sólido. Após o tratamento, come até pipoca", diz o pai.
Carlos se tornou sócio de um centro de reabilitação para difundir a metodologia chinesa na América Latina.
"Convenci investidores estrangeiros a vir para o Recife." Com US$ 200 mil e duas toneladas de equipamentos abriram a clínica em 2011, da qual Carlos se desfez este ano para se mudar para os EUA e se dedicar apenas ao aplicativo que ganhou o mundo.
Uma história que tem início numa start-up ancorada desde 2011 no Porto Digital do Recife, um dos principais parques tecnológicos do país.
"A Livox trabalha com alma para criar tecnologia que muda de forma radical a vida de pessoas, famílias e grupos que, sem ela, tinham pouca ou nenhuma conexão entre si e com o mundo ao redor", avalia Sílvio Meira, cientista-chefe do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife até 2014.
Foi dali que saíram alguns dos engenheiros que ajudaram no desenvolvimento de um software diferenciado.
"A qualidade do aplicativo começou a mudar a vida de pessoas Brasil afora", diz Pereira. Ele cita Ronaldo Correia, 52, de Curitiba (PR), também com paralisa cerebral. "Com Livox, ele começou a ir para a balada, conheceu uma moça, casou-se e teve uma filha, a quem deu o nome de Clara."
Casos que chamaram a atenção do Google, que investiu R$ 2,2 milhões este ano para tornar o aplicativo dez vezes mais veloz. A empreitada levou a família Pereira para Orlando (EUA). Em setembro, Pereira obteve o visto nos EUA em uma categoria destinada a postulantes "com extraordinária habilidade no campo da ciência, da educação".
Instalaram-se em Orange County, confortável subúrbio a poucos quilômetros do Florida Hospital, que fará o primeiro estudo clínico do Livox. Nove pacientes usam a tecnologia brasileira, que tem versões em inglês, espanhol, alemão e árabe.
Depois de ser alfabetizada em português com o auxílio da ferramenta criada por Pereira, Clara foi matriculada na Sand Lake Elementary School. Faz o dever de casa com o auxílio dos pais. Aponta na tela do Livox a resposta certa do exercício de matemática: 30 x 4 = 120, falando em inglês com a voz do aplicativo.
"Aqui não precisamos falar de inclusão. Na escola, fizeram um teste para saber o nível de Clara e até se ela era superdotada", diz Aline. "O Brasil precisa achar que criança com deficiência pode ser muito mais."
Carlos cita Stephen Hawking. O físico tem esclerose lateral amiotrófica e se comunica com dispositivo similar ao Livox. "Uma mente brilhante que colocou a genialidade dele para fora por meio desse tipo de comunicação. Quantos Stephens não temos perdidos por aí?"
UMA BONECA
A motivação maior do pai empreendedor está no sorriso largo de Clara, que mostra inteligência e personalidade no olhar. Ela usa o Livox para expressar o que deseja comer e vestir, arrastando o bracinho frágil e as mãos sem coordenação pelo tablet.
Clara contou ao pai que se identifica com a princesa Ariel pelo fato de a sereia, assim como ela, não andar nem falar na maior parte do seu filme preferido. "Sou uma boneca que gosta de brincar e de jogar dado com meus pais", escreveu, usando o Livox.
Ela levou levou três dias para finalizar o texto eternizado no livreto de formatura da 1ª série. Para emoção e orgulho dos pais, as frases são um milagre da tecnologia e da persistência de pais que nunca duvidaram do potencial de Clara.