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    Algoz de brasileira, judoca vence técnico pedófilo e leva EUA ao topo

    CAMPELL ROBERTSON
    DO 'NEW YORK TIMES', EM LONDRES

    03/08/2012 17h50

    Em novembro de 2007, em um tribunal federal norte-americano em Ohio, um homem se admitiu culpado de conduta sexual ilícita em relação a uma menina de 13 anos. Ele era treinador de judô e a menina era uma discípula que ele havia treinado intensamente e conduzido a torneios internacionais. Nos documentos do processo, as referências à menina eram feitas apenas por meio das iniciais "K. H.".

    K. H. era Kayla Harrison, que hoje tem 22 anos e na quinta-feira conquistou a primeira medalha de ouro olímpica do judô norte-americano. Foi uma notável vitória para uma mulher que, apesar da juventude, já teve de enfrentar dificuldades enormes em um esporte que é popular no restante do mundo, mas se manteve obscuro nos Estados Unidos.

    Kim Kyung-Hoon - 02.AGO.12/Reuters
    A judoca americana Kayla Harrison comemora o ouro após vencer a britânica Gemma Gibbons
    A judoca americana Kayla Harrison comemora o ouro após vencer a britânica Gemma Gibbons

    Dos integrantes da equipe norte-americana de judô em Londres, Harrison era a favorita, ainda que nas provas classificatórias da quinta-feira ela tivesse como oponente a brasileira (Mayra Aguiar) que ocupa a primeira posição no ranking mundial de judô e, na luta pelo título, tenha enfrentado a britânica Gemma Gibbons, que chegou como azarão, mas contava com todo o apoio da torcida. Harrison derrotou algumas de suas rivais na categoria até 78 Kg por ippon, ou seja, por um golpe perfeito durante a luta, e outras pela pontuação acumulada ao final do combate.

    Mas o judô norte-americano teve outras vitórias esta semana além da conquistada por Harrison. Em uma das categorias mais leves, Marti Malloy, recepcionista em um consultório médico, ficou com a medalha de bronze, a segunda na história para o judô feminino do país.

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    Travis Stevens, um judoca combativo, chegou à semifinal em sua categoria, derrotando o número um do ranking mundial ao longo do caminho, e outro norte-americano, Nick Delpopolo, que garantiu lugar na equipe derrotando um colega norte-americano em uma disputa eliminatória, chegou às quartas de final.

    "Esta semana, tivemos o melhor desempenho da história de nosso judô", disse Jimmy Pedro, o técnico da equipe norte-americana, ganhador de dois bronzes olímpicos. Ele reconheceu que os Estados Unidos jamais estiveram entre as potências do judô.

    Harrison é simplesmente a melhor da equipe. Seu bom gênio também ajuda, bem como o fato de que tem uma história que não tem medo de contar, uma história chocante até mesmo para uma imprensa esportiva que perde as estribeiras em sua busca por novas histórias inspiradoras. As questões que ela respondeu no dia de sua luta, sobre o que estava pensando no pódio, sobre o significado da medalha para ela, sobre a sensação de vencer depois de suas dificuldades, eram certamente desagradáveis, por tratar de um tópico tão doloroso. Mas Harrison as respondeu com a mesma compostura que demonstrou contra as adversárias no tatame.

    "Não é segredo", ela disse, depois de uma longa pausa, quando um repórter pediu que ela falasse sobre o pior momento de sua carreira, "que sofri abusos sexuais da parte de meu antigo treinador. E essa foi definitivamente a coisa mais difícil que tive de superar". Harrison já havia contado sua história, primeiro ao jornal "USA Today", apenas dias depois do indiciamento de Jerry Sandusky, quando as primeiras páginas dos jornais estavam repletas de histórias sobre o escândalo de abuso sexual na Universidade Estadual da Pensilvânia e técnicos que exploram sua posição de autoridade.

    Ela disse que havia sentido a necessidade de se manifestar para encorajar outras atletas que vivessem situação semelhante. Harrison contou a jornais e revistas como seu treinador havia conquistado a confiança da família, e como contatos sexuais haviam resultado em intercurso sexual por um período de anos, em viagens à Venezuela, Rússia e Estônia, até que ela completou 16 anos. Ela contou sobre enfim ter revelado a história a um amigo (um bombeiro de quem posteriormente ficou noiva), e depois para sua mãe, que quebrou os vidros do carro do treinador com um bastão de beisebol (o ex-treinador, Daniel Doyle, foi sentenciado a dez anos de prisão e banido do esporte).

    E também contou sobre seu sofrimento, sobre o desespero, infelicidade e vontade de desistir que sentiu, até que sua mãe, Jeannie Yazell, a levou de Ohio a fim de treinar judô com Jimmy Pedro e seu pai, Jim Pedro, no Pedro's Judo Center, em Wakefield, Massachusetts. "Sentimos que era preciso levá-la a voltar para aquilo que sabia fazer", diz Yazell. "Ela tinha controle sobre o que acontecia no tatame."

    Jimmy Pedro havia sido apresentado a ela apenas semanas antes, em um torneio na Itália do qual Harrison participou sem treinador. Ela tinha boa reputação no esporte, mas sofreu quatro derrotas na competição italiana. "Você tem 16 anos", disse Pedro. "O caminho a percorrer é longo. Se quiser trabalhar de verdade para melhorar sua técnica, minha porta está aberta a qualquer hora."

    Algumas semanas depois, quando o ex-técnico de Harrison foi preso e o pequeno mundo do judô tentava aprender a conviver com uma notícia tão horrível, ela procurou Pedro.

    "Estava arrasada", diz Corinne Shigemoto, diretora de operações da USA Judo, a federação nacional do esporte. "Precisava mesmo de orientação - não só em sua vida pessoal, mas em sua vida como judoca. E eles lhe ofereceram um plano. De certa forma, foi fácil. Bastou ela aceitar que era aquilo que queria para que nem precisasse pensar demais a respeito."

    O momento era propício, coincidentemente. Em 2005, um ano depois da Olimpíada de Atenas, o Comitê Olímpico dos Estados Unidos se reuniu com a federação de judô para determinar por que o esporte enfrentava problemas no país. O sistema de fomento a novos talentos era eficiente, mas depois disso nada acontecia e os jovens judocas que obtinham resultados promissores nas competições das categorias menores perdiam sua vantagem competitiva nos anos posteriores. A reunião resultou em um novo programa para identificar e treinar especialmente os jovens valores como Harrison.

    Assim, com verbas e um programa especial, ela se via forçada a sair da cama a cada manhã, a seguir um regime especial de nutrição, e era incentivada a levantar peso. Com isso, começou a vencer. Conquistou o ouro no mundial juvenil de 2008, venceu o mundial de 2010 e chegou à Olimpíada como número quatro do ranking mundial.

    Cerca de uma hora depois que ela desceu do pódio, os jornalistas norte-americanos já haviam ido embora e os repórteres britânicos concentravam suas atenções em Gibbons, que ficou com a prata. Harrison estava sentada em uma mesa respondendo a algumas perguntas e falando sobre sua agenda nos dias seguintes. Ela talvez faça o teste necessário a continuar o processo de treinamento como bombeira. Também quer fazer uma faculdade e levar uma vida normal, já que não pôde curtir a juventude normal dos norte-americanos porque estava ocupada derrotando oponentes no tatame. "Acho que seria ótimo ser uma jovem normal", diz.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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