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    Traumas cerebrais se estendem para os campos de futebol

    DO "NEW YORK TIMES"

    03/03/2014 12h02

    A encefalopatia traumática crônica (CTE, chronic traumatic encephalopathy), doença degenerativa do cérebro ligada a repetidos golpes na cabeça, foi encontrada postumamente em um ex-jogador de futebol de 29 anos. É a mais forte indicação de que a doença não se limita a atletas de esportes conhecidos por colisões violentas, como o futebol americano e o boxe.

    Pesquisadores da Universidade de Boston e da VA Boston Healthcare System, que já diagnosticaram muitos casos de CTE, disseram que Patrick Grange, de Albuquerque, no Novo México, foi o primeiro jogador de futebol diagnosticado com a doença. Numa escala de 4 pontos de severidade, a dele estava no estágio 2.

    O futebol é um jogo físico, mas, raramente, violento. Jogadores sofrem colisões e quedas, mas os golpes mais repetidos em jogos e treinos podem ser justamente as cabeçadas em bolas aéreas.

    Grange, que morreu em abril de 2012, após ser diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica (ELA), tinha orgulho de sua capacidade de cabeceio, disseram seus pais, Mike e Michele.

    Os dois lembram do filho aos três anos de idade, incansável, jogando a bola para cima e a cabeceando para a rede, uma habilidade que ele continuou treinando e exibindo na faculdade e nas ligas amadoras e semiprofissionais, em sua caminhada para jogar na MLS, liga profissional americana, o que nunca chegou a se concretizar.

    Os pais do jogador lembram também que ele sofrera contusões memoráveis. No ensino médio, ele foi nocauteado durante um jogo. Na faculdade, recebeu 17 pontos na cabeça depois de uma colisão em campo.

    "Ele tinha muitas lesões no lobo frontal", disse Ann McKee, a neuropatologista que realizou o exame do cérebro de Grange. "Já vimos outros atletas na faixa dos 20 anos com problemas do mesmo nível, mas, normalmente, eles são jogadores de futebol americano", completou a médica.

    O dano no cérebro de Grange, segundo ela, corresponde à parte da cabeça que ele usava para fazer os cabeceios. Mas adverte: "neste caso, não podemos dizer com certeza que os cabeceios tenham sido os causadores do problema. Mas vale ressaltar que ele usava a cabeça frequentemente, e desenvolveu a doença."

    Além dos boxeadores

    Acredita-se que a CTE é causada por batidas repetitivas na cabeça –mesmo as pancadas menores, que nem são notadas. Antes, considerada exclusividade de boxeadores, a doença foi diagnosticada em dezenas de jogadores de futebol americano mortos na última década e em vários jogadores de hóquei. Em dezembro de 2013, foi encontrado o primeiro caso em um jogador de basebol.

    Os sintomas podem incluir depressão, perda de memória, distúrbio do controle dos impulsos e, eventualmente, demência progressiva, afirmam os cientistas.

    Pesquisadores da Universidade de Boston também descobriram um caso grave de CTE em um ex-jogador de rugby, o australiano Barry Taylor "Tizza", que morreu em abril do ano passado, aos 77 anos. Ele competiu por 19 anos, incluindo 235 jogos pelo Manly Rugby Union, uma equipe profissional sediada perto de Sidney.

    Enquanto as pesquisas envolvendo jogadores de rugby ainda estão começando –em parte pelo fato de a modalidade não ser tão popular nos Estados Unidos, onde grande parte da pesquisa ocorre no esporte– a condição de Taylor pode ser um indicador. Apesar de jogadores de rugby não usarem capacete, seus jogos, como os de futebol americano, são cheios de trombadas, muitas envolvendo a cabeça.

    A família de Taylor começou a notar cada vez mais problemas cognitivos quando ele estava na faixa dos 50 anos. Em uma década, ele tinha demência grave.

    "Uma vez, eu o levei para um passeio e ele dava um monte de respostas monossilábicas", disse Steven, filho de Taylor. "Eu perguntei, 'Qual é o seu nome, cara?' Ele olhou para mim e apenas deu de ombros. Não sabia mais nem quem ele era."

    McKee achou o cérebro de Taylor extraordinariamente murcho e deteriorado. Sua doença foi diagnosticada como grave: estágio 4 CTE. "Foi, de muitas maneiras, um caso clássico –rompimento do septo pelúcido, revestimento dos ventrículos e atrofia das estruturas centrais do cérebro", disse McKee. "Microscopicamente, ele teve um tremendo e anormal acúmulo da proteína tau [o que indica o mal] e nenhuma evidência de qualquer outra doença. Foi um caso de CTE pura", disse ela.

    O diagnóstico foi um alívio para a família de Taylor, incluindo a sua filha, Jennifer, e seu filho. "O problema dele não é genético. Mas ficou uma grande tristeza por sabermos que era evitável", disse Steven Taylor.

    Devo cabecear?

    Dr. Erin Bigler, professor de psicologia e neurociência e diretor da Magnetic Resonance Imaging Research Facility at Brigham Young, não ficou surpreso ao saber que a CTE fora encontrada em um jogador de futebol.

    "O cérebro é um órgão muito delicado, e provavelmente pode resistir a alguma lesão. Mas é muito diferente quando quando a lesão repetida é uma circunstância", disse ele.

    "Quando o cérebro está se movendo, ele está se movendo com seus 200 bilhões de células. E essas células estão sendo, de alguma forma, deformadas mecanicamente, mais do que ocorre com outros órgãos, o que dá para imaginar o que acontece nessas colisões".

    Bigler disse que não recomendaria que os jogadores, especialmente os mais jovens, usassem a cabeça rotineiramente para cabecear. Segundo ele, o cérebro não está totalmente desenvolvido até cerca de 25 anos, o que o torna mais suscetível a lesões.

    Algumas organizações de futebol juvenil têm advertido contra a prática do cabaceio até jogadores atingirem uma certa idade, geralmente entre 10 e 14 anos.

    Para alguns cientistas, essas idades são um tanto arbitrárias, mas eles entendem que os pais querem saber se seus filhos devem ser autorizados a cabecear bolas de futebol.

    "A realidade nua e crua é que não existem os dados para resolver essa questão", disse o Dr. Michael L. Lipton, um neurocientista e neurorradiologista do Albert Einstein College of Medicine da Universidade de Yeshiva, que estuda os efeitos das cabeceadas.

    "Estamos realmente em território muito inexplorado. Então, o que devo fazer com meu filho? Isso, basicamente, torna-se o tipo de avaliação risco-benefício que temos que fazer o tempo todo na vida", afirma.

    No ano passado, a revista Radiology publicou os resultados de um estudo realizado por Lipton e outros estudiosos. Nele, foram analisados 39 adultos jogadores de futebol amador, com idade média de 31 anos, que jogaram desde a infância. Ele concluiu que "o ato de cabecear está associado a anomalias na microestrutura da substância branca e a desempenho neurocognitivo mais pobre."

    Lipton disse haver, provavelmente, um limite razoável, abaixo do qual as cabeceadas podem causar alguns problemas. "Acima de um certo nível, cabecear provavelmente não é bom para ninguém", disse ele.

    Grange atuou ao longo da vida na escola e jogou futebol colegial em Illinois e no Novo México. Ele chegou a atuar por Chicago na Premier Development League, a prova para os futuros jogadores profissionais. Além disso, treinou e jogou futebol de salão em Albuquerque, sua cidade natal.

    Ele tinha 27 anos quando foi diagnosticada a sua esclerose lateral amiotrófica (ELA), uma doença degenerativa do sistema nervoso que às vezes é referida como doença de Lou Gehrig. A maioria das pessoas com a doença está com cerca de 55 no momento do diagnóstico, de acordo com a Associação ALS (Amyotrophic lateral sclerosis).

    Os sintomas de Grange começaram com dores no corpo e ele logo tinha que se esforçar para andar. O diagnóstico veio em seguida. Em seis meses, ele já estava na cadeira de rodas. A paralisia logo fez com que ele parasse de se alimentar. Ele morreu 17 meses após o diagnóstico.

    McKee acredita que os danos ao cérebro de Grange estão no cerne de sua esclerose. "Achamos que o fator precipitante no seu caso foi o trauma", disse McKee. "Ele era absurdamente jovem quando desenvolveu esta doença e tinha evidências consideráveis de CTE".

    Quando ele morreu, os Granges receberam um telefonema da Universidade de Boston, que solicitara o cérebro do filho. Ao saber que ele filho tinha CTE, foi doloroso, mas a notícia trouxe alívio e paz. Assim como os médicos, a família não pode ter certeza de que a morte de Grange foi precipitada pelo futebol, mas gostariam de ter desencorajado o hábito de cabecear do filho.

    "Cada parque que você passa, as crianças estão jogando futebol", disse Michele Grange. "E eles estão dando cabeceadas. Isso realmente me incomoda. Quando eu vejo as crianças pequenas jogar futebol, mesmo o meu neto, por um lado penso em dias melhores. Mas, por outro, me faz pensar nas consequências. Espero que essas crianças e seus pais cuidam de suas cabeças."

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