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    Di Stéfano liderou luta sindical para defender jogadores argentinos

    MIGUEL ADAN
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    08/07/2014 02h00

    Em 2 de agosto de 2004, o jornal para o qual eu trabalho, "Marca", me enviou a Mônaco para cobrir o momento em que Alfredo di Stéfano deixaria a marca de seus pés na calçada da fama do futebol. Encontrei-me com Don Alfredo no aeroporto de Barajas; ele faria a viagem sozinho. Estava com 78 anos e tinha fama de ranzinza e de pouco amistoso com a imprensa. Ainda não o conhecia, e cheguei preparado para ouvi-lo me mandar para aquele lugar. Pelo contrário. Quando me apresentei, começou uma incrível jornada de dois dias, quase uma viagem de avô e neto.

    Don Alfredo viajava sozinho e pediu que eu me sentasse ao seu lado. Ele tinha o assento 3E no voo 8748 da Iberia, e eu fiquei com o 3F. Os 90 minutos do voo, o tempo de uma partida, foram o tempo de escutar e aprender. Falamos de seu nascimento em La Boca, de seu amado River, de como ele havia deixado o futebol argentino, abalado por problemas sindicais, para formar parte do "balé azul" do Millonarios de Bogotá. De sua chegada ao Real Madrid, de suas Eurocopas, daquela histórica final em Glasgow com a apresentação de Gento ("sim, sim, jogou bem, mas se cansou de perder gols"), das excursões daquela época, com viagens infernais -"diferente de agora, quando as pessoas viajam em aviões de luxo e se queixam de tudo". E do que era então o presente - o interesse do Real por Viera, de Zidane, de Ronaldinho, da necessidade de o Real Madrid jogar mais como time...

    Na manhã seguinte, quando desci para o café, Di Stéfano estava à mesa com Jules Fontaine, o jogador que mais marcou gols em uma única Copa do Mundo (13, em 1958). Eu estava me encaminhando a outra mesa mas Don Alfredo me viu. "Está maluco ou o quê? Faça o favor de se sentar conosco para o café da manhã". Foi outra hora e tanto de aventuras, de futebol em branco e preto, de histórias maravilhosas. E à noite, depois do jantar oficial com o príncipe Alberto, Don Alfredo estava cansado e me chamou. "Acompanhe-me ao hotel". Na porta do cassino de Mônaco, um carro oficial aguardava os convidados. Não me deixaram entrar. "Se ele não pode ir comigo, chamem um táxi para nós dois". Obviamente me deixaram entrar no carro.

    Ontem terminou a vida daquele que para muitos foi o maior jogador de todos os tempos, o futebolista que jogava por toda a parte, percorria o campo de lado a lado e marcava gols de todas as maneiras possíveis. Fez história na seleção argentina, com a qual conquistou a Copa América de 1947, e com a espanhola. Pela Espanha, ele foi à Copa do Mundo de 1962 como grande astro do time, mas sofreu uma lesão de joelho que não permitiu que jogasse e, como nesta Copa, a equipe foi desclassificada na fase de grupos.

    Muito se escreve sobre Di Stéfano agora, mas há uma coisa que merece registro por seu valor histórico: a luta sindical que ele travou à frente dos futebolistas argentinos.

    O ano de 1948 começou com muito de atraente para Di Stéfano. Era o melhor jogador da Argentina, havia sido campeão com o River, e artilheiro da competição com 27 gols; no ano anterior, havia estreado pela seleção de seu país na Copa América disputada entre 30 de novembro e 31 de dezembro no Equador, levando o país ao título e se tornando o maior artilheiro da seleção com seis gols. No novo ano, conheceria Sara Alicia, portenha filha de imigrantes galegos que mais tarde se tornaria sua mulher. Ainda assim, em 1º de janeiro de 1948, o "Saeta Rubia" não imaginava que estivesse começando o ano que o afastaria de seu país.

    A presidência da Argentina estava desde 4 de junho de 1946 nas mãos de Juan Domingo Perón, que havia feito do esporte, especialmente o futebol, uma das bases de sua política populista. Por isso, o general se sentiu incrivelmente ofendido e atraiçoado quando os jogadores profissionais argentinos em novembro de 1948 desafiaram o país e decretaram greve. O primeiro episódio de greve no futebol argentino datava de 1931, quando os jogadores pararam em protesto contra a "lei del candado", que restringia a liberdade de transferência.

    Em 1948, os profissionais do futebol argentino decidiram parar diante da desproporção entre os salários que recebiam e o faturamento dos clubes. Ao final da 25ª rodada do campeonato, que tinha o Racing na liderança, o sindicato dos jogadores (Futbolistas Agremiados Argentinos, ou FAA) se converteu na primeira categoria profissional a decretar uma greve contra Perón. A FAA, fundada em 1944 com Fernando Bello (do Independiente) e Adolfo Pedernera (que no ano da criação do sindicato estava no River) na liderança, decidiu interromper o campeonato a cinco rodadas do final em protesto contra uma decisão do tribunal arbitral com relação aos salários atrasados dos jogadores. Além disso, eles pediam condições melhores nos contratos, o estabelecimento de um salário mínimo e reconhecimento oficial ao sindicato.

    A reivindicação tinha por objetivo melhorar a situação dos jogadores mais modestos, mas o apoio dos astros foi total. A federação argentina de futebol (AFA) apelou que o campeonato fosse concluído "em respeito ao torcedor", mas os profissionais, excetuados alguns estrangeiros, se recusaram a continuar jogando. O campeonato foi concluído com juvenis em campo, o Independiente ficou com o título e o Racing, líder no momento da paralisação, terminou em quarto lugar depois de uma punição de quatro pontos por não colocar nem os juvenis em campo nas duas últimas rodadas. O espetáculo visto naquelas partidas beirava o grotesco. A AFA recorreu a árbitros ingleses que apitavam de paletó e gravata e com a ajuda de um intérprete (ver "Perón y Su Tiempo", de Félix Luna).

    E no comando da reivindicação sindical apareceu Alfredo di Stéfano. O assunto não afetava especialmente o astro do River Plate, que ganhava salário muito superior à média. Convencido de que o esforço era justo e tinha por objetivo um futebol no qual o esportista seria o dono de seu esporte, não hesitou em liderar os protestos. As condições da segunda divisão, que na época era mais um último passo para a aposentadoria do que uma escada para chegar à elite, eram indignas, e muitos jogadores viviam à beira da miséria.

    A paralisação foi se estendendo e Di Stéfano terminou se convertendo em líder do movimento. A greve dos futebolistas se havia transformado na "greve de Di Stéfano". O conflito durou meses e levou Perón a temer que o campeonato seguinte também fosse afetado, e com ele o seu governo. Da Casa Rosada partiu ao ministro das Comunicações, Oscar Nicolini, a ordem de que assumisse o comando das negociações. Eva Perón também interveio no processo para ajudar a resolver o impasse. Naquele ano, 1948, foram abertas as inscrições para o primeiro campeonato Evita y Juan Perón de futebol juvenil, que hoje leva mais de 200 mil meninos argentinos aos gramados a cada ano.

    Em 4 de maio de 1949, o Ministério do Trabalho aceitou as reclamações trabalhistas dos jogadores, mas também estabeleceu um salário limite de 1,5 mil pesos, o que provocaria um êxodo maciço dos melhores futebolistas, entre os quais Di Stéfano.

    A postura dura que ele assumiu durante a disputa causou problemas no relacionamento entre o astro e a diretoria do River. A tensão se agravou na volta de Turim, para onde o River, um time com profundas raízes italianas, havia viajado para um jogo em homenagem aos jogadores da grande equipe do Torino mortos no acidente aéreo de Superga, em 1947. Recebidos pelo Papa Pio 12, os jogadores do River enfrentaram o juvenil do Torino (não havia sobreviventes do time principal), cedendo um cavalheiresco empate por dois gols (Labruna e Di Stéfano). O River, que a partir daquele jogo adotou como segundo uniforme o grená do Torino, deixou sua equipe reserva em Buenos Aires para disputar uma partida chave do campeonato argentino. E apesar da vitória do time B do River sobre o Racing, o troféu foi parar na galeria do rival.

    No retorno da Itália, explodiu a guerra final entre o River e Di Stéfano. Era julho de 1949. O River estava zangado com o acordo assinado para pôr fim à greve e, diante da perplexidade de Di Stéfano, comunicou a ele que a intenção era vendê-lo à Roma ou ao Torino em uma operação milionária que praticamente não propiciaria benefícios ao atacante nascido em Barracas. Foi um rude golpe para "La Saeta Rubia", que não conseguia entender como sua equipe, sua casa, podia tratá-lo assim.

    Furioso por conta do tratamento recebido, Di Stéfano recebeu uma carta de Pedernera, o qual, informado do que estava acontecendo em seu antigo clube, convidava-o a se juntar a ele na Colômbia, para onde se havia transferido o antigo atacante da equipe do River que ganhou o apelido de "La Maquina". Na Colômbia, com o estímulo de prêmios que envolviam até o Senado (10 mil pesos para o campeão), estava nascendo uma liga profissional que surgia em conflito aberto com a Fifa. A Dimayor, organização criadora da nova liga, estava em conflito aberto com a Adefútbol, a federação reconhecida pela Fifa, que dirigia o futebol colombiano de sua sede em Barranquilla. Pedernera liderou uma ideia que colocaria o futebol sul-americano em xeque. A nova liga profissional colombiana receberia 109 jogadores estrangeiros (total que mais tarde passou dos 300), entre os quais 57 argentinos.

    A opção de partir para a Colômbia, por mais dinheiro que estivesse envolvido, não era muito convincente para Di Stéfano. Por isso, se reuniu com os dirigentes do River para renegociar a situação, mas os dirigentes tentaram distorcer sua posição em detrimento do jogador. O insulto final ao atacante da "banda sangre" foi ser chamado de mercenário e traidor pelos torcedores em uma partida na qual não pôde jogar por lesão.

    Isso serviu para que ele tomasse sua decisão final. Na noite de 8 de agosto de 1949, com o colega de time Néstor Rossi, Di Stéfano voou de Ezeiza a Bogotá como se estivesse saindo ilegalmente do país. O River viu desaparecer a perspectiva de uma transferência milionária para a Europa, que não causaria prejuízos ao clube diante da torcida porque os dirigentes haviam manipulado a situação de tal forma que Di Stéfano é que posaria como vilão na história. E assim começou a aventura do Millonarios de Bogotá, a ponte que levaria Di Stéfano ao Real Madrid. Ele não estava sujeito às normas de transferência internacional porque até o dia 26 de outubro de 1951, quando foi selado o "Pacto de Lima", o campeonato colombiano estava fora do controle da Fifa, o que impedia todos os jogadores que disputavam o certame de participar de competições por suas seleções nacionais.

    Di Stéfano chegou a Madri em meio a uma enorme polêmica entre o Real Madrid e o Barcelona, e seu nome estará para sempre ligado ao do melhor clube do século 20. Ganhou todos os títulos, mas também sofreu críticas. E não por seu futebol. Uma delas aconteceu em 6 de janeiro de 1963, quando estava voltando ao gramado depois de um mês parado por uma lesão. Di Stéfano havia posado para um anúncio no qual aparecia vestido de futebolista da cintura para cima; da cintura para baixo, via-se pernas de mulher com meias de nylon. O texto dizia: "estamos com Alfredo di Stéfano, o melhor jogador de futebol do mundo, e ele vai fazer uma importante declaração: 'Querem saber? Se eu fosse mulher, usaria meias Berkshire'". O anúncio era demais para a Espanha na era da ditadura franquista, e levou Di Stéfano a receber uma enorme vaia ao entrar em campo. No final do primeiro tempo, ele já havia marcado dois gols e acabado com os apupos.

    O mundo se despede hoje de uma figura única, de uma vida repleta de aventuras, que incluem um sequestro, e que resultou em filme na Espanha - "Saeta Rubia", de 1956, com Alfredo di Stéfano interpretando a si mesmo.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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