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    Juízes deveriam parar jogo e expulsar torcedores por ato racista, diz professor

    ELEONORA DE LUCENA
    DE SÃO PAULO

    10/08/2014 02h00

    Manifestações racistas e homofóbicas em estádios não deveriam ser toleradas e mereceriam punição radical e inflexível. Juízes deveriam parar o jogo e expulsar toda a torcida responsável pelos atos condenáveis.

    É o que defende Adilson José Moreira, 41, professor de direito da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo. Para ele, "o insulto racial procura afirmar a inferioridade essencial de atletas negros, mesmo quando desempenham uma função socialmente prestigiada".

    Na sua visão, os brasileiros criaram o "racismo recreativo", onde o "mito da miscigenação racial isenta pessoas brancas de responsabilidade sobre expressões racistas". Nascido em Belo Horizonte, Moreira fez seu doutorado em Harvard e terá sua tese sobre racismo e direito no Brasil publicada no ano que vem nos Estados Unidos.

    Negro, ele diz ser alvo de racismo. "Todos os dias vejo pessoas, principalmente mulheres brancas, segurando suas bolsas ou atravessando para o outro lado da rua. Sou frequentemente seguido em shopping centers", afirma.

    Marlene Bergamo/Folhapress
    O professor Adilson José Moreira
    O professor de direito Adilson José Moreira

    Autor de "União Homoafetiva: A Construção da Igualdade na Jurisprudência Brasileira" (Juruá), o professor é cético em relação a campanhas das entidades esportivas contra o racismo. "Os times de futebol não estão interessados em criar conflitos com suas torcidas porque dependem delas", opina.

    Nesta entrevista, Moreira ataca o "mito da inocência branca" e afirma que "o discurso da neutralidade racial perpetua as disparidades entre negros e brancos". Para ele, as instituições brasileiras "têm sido historicamente aparelhadas para reproduzir as diferenças entre os grupos raciais; o mercado de trabalho e o tratamento policial são exemplos claros disso". "O estigma racial legitima a desvantagem material", declara.

    *

    Folha - Como o sr. avalia o racismo no futebol?
    O esporte é um elemento chave do processo de socialização do sexo masculino. Atletas são idolatrados por serem expressão máxima da masculinidade. O esporte profissional tornou-se uma representação idealizada da virilidade. Imagens representam o homem branco como a personificação da masculinidade e da moralidade. Filmes o mostram salvando o mundo. No esporte, como em outras áreas, há hierarquia entre os grupos humanos. Homens negros podem circular nesse espaço social, mas apenas em uma condição subordinada. A diferença precisa ser marcada para que a supremacia branca permaneça como um valor estrutural. O insulto racial procura afirmar a inferioridade essencial de atletas negros, mesmo quando desempenham uma função socialmente prestigiada. Respeito é um privilégio exclusivo de machos brancos. Nós brasileiros desenvolvemos uma forma muito particular de racismo: o racismo recreativo.

    O que é o racismo recreativo?
    Ele parte do pressuposto de que práticas racistas não expressam menosprezo ou ódio racial porque supostamente temos uma cultura de cordialidade entre os grupos raciais. O mito da miscigenação racial isenta pessoas brancas de responsabilidade sobre expressões racistas porque o racismo supostamente só existe em sociedades nas quais a segregação racial é sancionada pelo direito. Esse raciocínio separa o elemento emocional da sua expressão verbal, tornando o racismo uma mera manifestação circunstancial que não implica ódio das pessoas brancas em relação às pessoas negras. Essa postura legitima uma ordem social na qual nós negros temos que arcar com todo o custo social do racismo enquanto as pessoas brancas estão livres para discriminar e maltratar negros quando quiserem sem que isso tenha quaisquer consequências.

    Esse aspecto recreativo do racismo é reforçado cotidianamente pelos meios de comunicação, pois eles constantemente reproduzem estereótipos raciais. As pessoas crescem em um meio social no qual piadas e comentários racistas não recebem praticamente nenhum tipo de reprovação moral. O nosso sistema judiciário cumpre um papel central nesse processo ao minimizar a relevância social do racismo. Isso significa que muitas pessoas acham que elas têm o direito de ofender negros, que elas podem ir ao campo de futebol e gritar todos os tipos de impropérios. Elas sabem que isso provavelmente não terá nenhuma consequência e, portanto, elas se sentem livres para desprezar e humilhar negros.

    Por que a questão do preconceito sexual é forte no esporte?
    O imaginário social constrói o esporte profissional como uma atividade viril. A presença de homossexuais nessa área representa uma tremenda ameaça simbólica porque desestabiliza sua imagem como um espaço de performance exclusivamente heterossexual. O horror à homossexualidade motiva a agressão de jogadores pelos membros das próprias torcidas. Coros chamam os atletas dos times adversários de "veados". Para a vasta maioria dos homens heterossexuais, não pode haver um insulto maior do que o questionamento da masculinidade. Até mesmo o sistema judiciário reproduz essa ideia do esporte como um espaço exclusivamente heterossexual. O juiz branco que decidiu o caso do jogador mulato Richarlyson afirmou que o futebol não é lugar para homossexuais. Só para machos de verdade.

    Qual sua avaliação sobre as campanhas contra discriminação?
    Os times de futebol, os tribunais esportivos e a mídia corporativa não tomam nenhuma ação concreta contra o racismo ou contra a homofobia. Acham que agressões contra negros e homossexuais são inteiramente irrelevantes e não querem fazer nada que possa desqualificar o esporte como uma forma de afirmação da hegemonia racial e da hegemonia masculina. Essas campanhas são pouco efetivas porque as instituições que as promovem não estão realmente comprometidas com a eliminação do racismo ou da homofobia no futebol. Os times de futebol não estão interessados em criar conflitos com suas torcidas porque eles dependem delas. Os tribunais não formulam decisões com a severidade necessária porque não compreendem a dimensão do problema ou porque simplesmente não querem enfrentá-lo. Os juízes deveriam estar autorizados a parar o jogo e expulsar toda a torcida do time responsável pelos atos racistas e homofóbicos. Não deveria haver nenhuma flexibilidade.

    Como negro, o sr. já foi vítima de racismo?
    Todos os dias vejo pessoas, principalmente mulheres brancas, segurando suas bolsas ou atravessando para o outro lado da rua, independentemente da forma como estou vestido. Sou frequentemente seguido em shopping centers nas cidades brasileiras. O racismo apareceu na minha carreira acadêmica e profissional de diversas formas. Não tive acesso a certas oportunidades porque elas eram controladas e reservadas para pessoas brancas. Fui vítima de comentários racistas em sala de aula quando estava na Faculdade de Direito da UFMG. Tive poucos colegas negros na graduação e apenas um nos cursos de pós-graduação que fiz no Brasil. Tive vários colegas negros em Harvard.

    No seu trabalho acadêmico, o sr. sustenta que o discurso da neutralidade racial legitima a reprodução das desigualdades raciais. Por quê?
    O discurso da neutralidade racial perpetua as disparidades entre negros e brancos. Há restrição de oportunidades sociais a homens e mulheres negros. A maior parte da população negra brasileira está em uma situação de marginalização social em função de processos históricos de discriminação que promovem, ao mesmo tempo, estigmas sociais e desvantagens materiais. Políticas universais não são capazes de eliminar a estratificação racial porque esta tem um caráter estrutural. Nossas instituições têm sido historicamente aparelhadas para reproduzir as diferenças entre os grupos raciais; o mercado de trabalho e o tratamento policial são exemplos claros disso. O estigma racial legitima a desvantagem material. O racismo também trabalha ao lado do sexismo para manter a mulher negra em uma posição de dupla discriminação: seu salário médio é três vezes menor do que o dos homens brancos. A combinação do racismo e da homofobia promove a absoluta marginalização de afrodescendentes negros homossexuais de ambos os sexos. A noção de neutralidade racial não poderá resolver os problemas sociais enfrentados pela população negra no Brasil.

    O sr. afirma que a estigmatização legitima práticas sociais que direta e indiretamente reproduzem desigualdades. O sr. pode explicar melhor esse ponto?
    A discriminação acontece quando uma pessoa é impedida de ter acesso a uma oportunidade social em função de práticas arbitrárias, geralmente fundamentadas em traços pessoais que não têm relevância moral. O racismo é uma coisa diferente. Ele não é apenas produto de uma compreensão equivocada da realidade social. Ele também não é apenas uma falsa generalização de características culturais atribuídas a pessoas que possuem os mesmos traços físicos. O racismo é um sistema de dominação social e como tal ele tem um aspecto ideológico e um aspecto material. Essa ideologia social não possui nenhum conteúdo fixo; ela se manifesta de diferentes formas em diferentes sociedades em diferentes momentos históricos. Isso significa que as práticas racistas que existem no Brasil atualmente não são as mesmas que existiam no período colonial ou no primeiro período republicano. Apesar dessa diversidade de expressões, todas as nossas ideologias raciais sempre tiveram um objetivo comum: o acesso privilegiado ou exclusivo de pessoas brancas a oportunidades sociais. Como todo sistema de dominação social, o racismo precisa ser socialmente legitimado. Esse é o papel dos estigmas raciais: construir o grupo oprimido como essencialmente inferior para que o status do grupo racial privilegiado seja visto como algo natural. Os estereótipos sobre os negros, sobre as mulheres e sobre homossexuais cumprem uma função social específica: legitimar culturalmente o domínio das pessoas brancas sobre as negras, de homens sobre mulheres e de heterossexuais sobre homossexuais. Esse processo pode ser produto de discursos científicos ou religiosos. O racismo tem uma origem religiosa, mais especificamente no catolicismo e no protestantismo. Não podemos nos esquecer que os religiosos atacavam o movimento feminista com a mesma ferocidade: eles também diziam que a igualdade entre os sexos iria destruir a família. Eles também afirmavam que isso era contra o papel que a natureza reservou para a mulher. Curiosamente, essas pessoas alegavam que que as feministas não eram mulheres de verdade, que elas eram lésbicas. Vemos, então, que não estamos diante de um problema moral, estamos diante de um questão de poder. O que vemos atualmente é um grupo social fazendo o possível para manter os seus privilégios sociais.

    O racismo também pode ser legitimado pela culpabilização dos grupos subordinados pelo próprio destino social. O racismo pode ser exercido inclusive pela sua completa negação. Esse é um dos elementos centrais do projeto de dominação racial adotado no Brasil a partir das primeiras décadas do século passado.

    Como isso ocorreu?
    A discriminação racial sistemática do povo negro tem sido mascarada pelo discurso da miscigenação racial e pela ideia da cordialidade natural entre grupos raciais, sendo que muitos recusam a possibilidade de se falar em "grupos raciais" no Brasil. Parte-se do pressuposto de que a identidade racial não tem relevância em uma sociedade na qual a identidade nacional está acima de todas as outras. O discurso da neutralidade racial tem essa função no Brasil: defender a ideia de que cotas raciais não são legítimas porque não podemos identificar os beneficiários dessa forma de política pública. Esse discurso ignora o fato de que os mesmos processos de racialização que garantem os privilégios das pessoas brancas contribuem para a marginalização de todas as pessoas que têm alguma herança africana visível.

    O racismo permanece o mesmo porque as pessoas brancas têm um interesse material na sua manutenção e muitas farão o possível para impedir o avanço da igualdade racial. Isso permanece encoberto pelo discurso da democracia racial, ideologia que tem a função de fornecer uma imagem positiva do grupo racial dominante.

    Marlene Bergamo/Folhapress
    O professor de direito Adilson José Moreira
    O professor de direito Adilson José Moreira

    O sr. observa que Brasil e EUA estão caminhando em direções opostas em relação ao tratamento da Justiça nessa questão. Por quê?
    Esses dois países adotaram projetos de dominação racial distintos após a abolição da escravidão. Os EUA implementaram um sistema de segregação racial absoluta como forma de se manter a hegemonia branca. O Brasil utilizou políticas sociais com o objetivo de eliminar a herança africana e ameríndia. Políticas imigratórias e eugênicas foram substituídas pela ideologia da democracia racial porque nossas elites brancas precisavam construir uma nova forma de nacionalidade compatível com o seu projeto de dominação. Ele estava em risco em função da fragmentação social e política presente no primeiro período republicano. Há um novo projeto racial nos Estados Unidos na década de 1970, como uma reação aos ganhos dos movimentos civis dos negros daquele país. Esse projeto tem uma característica comum com o sistema de dominação implementado no Brasil nas primeiras décadas do século passado: a defesa da neutralidade racial como forma de justiça social. A ideia de colorblindness tornou-se um parâmetro para a interpretação da igualdade entre os tribunais norte-americanos. Ela também tem sido defendida por liberais e conservadores como uma característica da sociedade norte-americana contemporânea.

    O que isso significa?
    Parte-se do pressuposto de que a eliminação da ditadura racial que vigorou naquele país até a década de 1960 foi o suficiente para por negros e brancos em pé de igualdade. Essa narrativa tem o mesmo objetivo da ideologia brasileira da democracia racial: impedir que a raça continue sendo um fator de mobilização política. Procuram atacar quaisquer programas governamentais que promovam a redistribuição de benefícios sociais. Parece que os norte-americanos aprenderam uma importante lição com os latino-americanos: negar o racismo é a forma mais eficaz de se manter a hegemonia branca. O Brasil, ao contrário, tem abandonado gradualmente o discurso oficial da democracia racial e reconheceu que o racismo é um aspecto estrutural da nossa sociedade.

    Como conhecedor também da sociedade norte-americana, quais outros paralelos o sr. faz entre Brasil e EUA nesse aspecto?
    Estados Unidos e o Brasil são duas sociedades profundamente racistas. A população negra norte-americana está em uma situação melhor do que a brasileira. Muita coisa mudou a partir da década de 1960 com a passagem da legislação que garantia os mesmos direitos civis a todos os cidadãos norte-americanos independentemente da raça. Eles implementaram um regime de reconstrução da nação, noção baseada na necessidade de medidas para a prevenção e eliminação de práticas discriminatórias. A adoção dessas medidas permitiu maior acesso a oportunidades acadêmicas e profissionais para os negros norte-americanos. Hoje há uma influente classe média negra que participa ativamente da vida social e política. Isso nunca aconteceu no Brasil. Políticas de caráter compensatório e antidiscriminatório, como ações afirmativas, têm sido duramente criticadas. Por outro lado, o discurso de neutralidade racial que agora impera naquele país surgiu como uma reação ao processo de integração social de minorias raciais. Eles criaram um discurso baseado na neutralidade racial para atacar políticas que tinham como objetivo eliminar as consequências das centenas de anos de opressão.

    Algo mudou com a eleição de Obama?
    A presidência de Barack Obama teve efeitos positivos apenas indiretos na vida da população negra norte-americana. Por exemplo, a criação de um sistema de seguro saúde. Não estou ciente de nenhuma política que tenha atacado diretamente o problema da desigualdade racial. Só me recordo da ação de alguns setores do governo na discussão judicial sobre a diferença de penas entre os que portam crack e os que portam cocaína. Penso que Obama está de mãos atadas porque o problema de justiça racial envolve necessariamente medidas redistributivas de larga escala. Isso seria imediatamente combatido legalmente, da mesma forma que a proposta de seguro-saúde. Uma política bem sucedida como o Bolsa Família jamais seria implementada nos EUA sem uma longa e feroz batalha legal. Isso se deve à franca oposição de uma parte significativa da população branca a quaisquer melhorias para a população negra, a mesma coisa que existe no Brasil. É importante frisar o fato de que a Suprema Corte dos Estados Unidos rejeitou artigos da legislação eleitoral que impunha um sistema de monitoramento de alguns estados particularmente racistas. O juiz que escreveu a decisão argumentou que esse procedimento não era necessário em uma nação na qual as relações raciais progrediram imensamente. Um dia após essa decisão, legisladores aprovaram medidas que restringiam o direito de voto de homens e mulheres negros. Mais um exemplo de que o discurso da neutralidade racial apenas promove o racismo.

    Qual sua avaliação sobre a política de cotas?
    Essa política de inclusão racial tem sido muito bem sucedida. Boa parte das universidades que implementaram cotas raciais e cotas sociais têm acompanhado o desempenho dos beneficiários desses programas. Os relatórios dessas instituições contam a mesma história: os alunos cotistas têm um desempenho igual ou superior aos alunos que entram na universidade pelo método tradicional. Segundo a Unicamp, a média de aproveitamento dos alunos cotistas é superior à dos alunos que entram na universidade pelo método tradicional em muitos cursos. Esses alunos estão sendo incorporados no mercado de trabalho e em breve nós teremos uma classe média negra que estará preparada para participar nos processos decisórios que afetam a população negra como um todo. A maior presença de homens e mulheres negros em posição de destaque terá um papel importante na diminuição dos estereótipos raciais, pois as pessoas brancas verão que eles são plenamente capazes de ocupar posições de prestígio. Os beneficiários desses programas provavelmente terão a possibilidade de encontrar bons empregos e passar os benefícios materiais para a geração seguinte, o que contribuirá para a eliminação do caráter estrutural da discriminação racial no Brasil.

    O racismo está aumentando, diminuindo ou permanece igual hoje?
    Todas as pessoas brancas se beneficiam do racismo e a vasta maioria delas está perfeitamente consciente de que os privilégios raciais que gozam só podem ser mantidos por meio da continuação de práticas discriminatórias. Esse sistema de discriminação tem sido mantido pela influência de uma ideologia social que explica disparidades sociais como desigualdades de classe. Nossas instituições governamentais têm o dever de procurar eliminar o preconceito racial, mas campanhas de conscientização não eliminarão o racismo porque muitas pessoas brancas querem que esse sistema de dominação social permaneça. Afinal, elas se beneficiam cotidianamente dele. É por isso que devemos combater o caráter estrutural do racismo, e as cotas raciais têm um papel importante nesse processo. Precisamos garantir a presença de homens e mulheres negros nas instituições sociais dominadas por homens brancos heterossexuais de classe média alta.

    O sr. concorda com a afirmação de que as prisões são uma expressão do quadro de racismo e de luta de classes?
    Não tenho a menor dúvida disso. As nossas prisões estão repletas de pessoas negras e pobres porque essa população é o alvo principal da polícia. Esse grupo social também é o mais negligenciado por políticas públicas. Homens e mulheres brancos de classe média são os maiores consumidores de drogas no Brasil e nos Estados Unidos, mas homens negros envolvidos com o tráfico e consumo de drogas estão desproporcionalmente representados na população carcerária porque eles são os mais visados pela polícia. Homens brancos de classe média podem andar livremente com drogas nas nossas cidades sem serem abordados porque a vasta maioria dos nossos policiais acha que só negros são criminosos. Sugiro a leitura do relatório sobre violência policial divulgado pela Universidade de São Carlos sobre violência policial. Os leitores poderão ver com clareza como a questão de raça e classe se articulam na nossa realidade.

    É importante a presença de negros em funções de destaque? O que mudou no STF com a presidência de Joaquim Barbosa?
    Parte do povo brasileiro pode ser miscigenado, mas o grupo social que domina todas as nossas instituições sociais é racialmente homogêneo. Não creio que a presidência do Ministro Joaquim Barbosa tenha mudado a instituição do Supremo Tribunal Federal, mas a participação dele nos casos que trataram o tema da igualdade teve grande importância.

    Na sua visão, a próxima indicação ao STF deveria ser de um negro?
    A diversidade institucional é um interesse estatal legítimo. Precisamos miscigenar o círculo do poder, ter mais negros em posições de destaque nas instituições acadêmicas. As faculdades de direito brasileiras oferecem centenas de disciplinas sobre teorias desenvolvidas no exterior, mas nenhuma delas oferecem cursos sobre direitos de minorias. Isso acontece, em parte, porque a profissão jurídica é dominada por homens brancos heterossexuais de classe média e essa questão simplesmente não existe para eles. Creio que a próxima pessoa indicada pelo STF deve ser compromissada com o progresso social e não me oponho à consideração da raça dela. Obviamente, o fato de uma pessoa negra estar neste cargo não implica que ela seja sensível aos problemas sociais dos negros e, em última instância, ela não tem obrigação de ser politicamente engajada em relação a essa ou a quaisquer outras questão sociais. O próprio STF reconheceu a importância da presença de pessoas negras nas diversas áreas de atuação profissional porque isso serve como inspiração para indivíduos que são cotidianamente massacrados por estereótipos raciais.

    Como o sr. avalia a atuação dos movimentos negros no país?
    O movimento negro brasileiro tem sido bem sucedido, mas poderia ter mais força e visibilidade. A recusa dos meios de comunicação em tratar a questão do racismo impede que isso aconteça. Certos sociólogos e antropólogos brasileiros atacam frontalmente o movimento negro em função da defesa das políticas de ações afirmativas. Eles partem do pressuposto de que os líderes dessas organizações não têm conhecimento adequado das relações raciais no Brasil, conhecimento que seria monopólio de intelectuais que escreveram sobre o tema nas primeiras décadas do século passado. Temos membros do grupo racial dominante dizendo para os representantes do grupo racial subordinado que eles não podem utilizar a raça como princípio de política pública porque eles não têm conhecimento correto sobre o que é racismo no Brasil. É o cúmulo da ironia. O processo de redemocratização do país causou um profundo desconforto nas nossas elites intelectuais, pois elas deixaram de ser uma referência no processo de articulação política da sociedade.

    Por que o sr. resolveu estudar a questão do racismo do ponto de vista do debate jurídico?
    Há dois discursos divergentes na discussão sobre justiça racial no Brasil: um que articula a noção de transcendência racial com a igualdade formal para atacar cotas raciais e um baseado na premissa de que o compromisso constitucional com a erradicação da marginalização social requer a adoção de políticas que consideram a raça dos indivíduos. O debate sobre a constitucionalidade dos programas de ações afirmativas não é apenas uma discussão sobre a forma mais adequada de se entender o princípio constitucional da igualdade. Há uma disputa política entre grupos que procuram defender projetos sociais particulares e a discussão jurídica é uma forma de universalizar esse projeto. Nossa história social mostra que a neutralidade racial apenas contribuiu para a preservação de uma sociedade baseada no privilégio dos membros do grupo racial dominante.

    O sr. poderia resumir o seu trabalho de doutorado sobre racismo e direito?
    Minha tese de doutorado desenvolve três argumentos utilizados pelo Supremo Tribunal Federal na decisão que reconheceu a constitucionalidade dos programas de ações afirmativas: a noção de que o discurso da transcendência racial funciona como uma epistemologia social que mascara processos de estratificação, a premissa de que as pessoas brancas se beneficiam de um sistema de privilégio que tem um caráter estrutural e a compreensão da igualdade como um princípio que objetiva a emancipação de grupos tradicionalmente subordinados. O humanismo racial brasileiro tem como um de seus fundamentos o mito da inocência branca. Parte-se do pressuposto de que as pessoas brancas não têm nenhuma responsabilidade sobre a estratificação racial nem se beneficiam sistematicamente do racismo. No meu trabalho, demonstro como diversas ideologias raciais funcionaram como um mecanismo para a regulação do acesso ao trabalho. Espero que ele seja publicado nos Estados Unidos no próximo ano e depois no Brasil.

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