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    Minha História

    'Querer ser normal acabou comigo', diz revelação brasileira do atletismo

    MARCEL MERGUIZO
    DE SÃO PAULO

    28/09/2014 02h00

    Campeã Mundial juvenil em 2010, a paulista Geisa Arcanjo, 23, perdeu o ouro por doping –culpa de um chá verde, diurético. Voltou após um ano e conseguiu a vaga olímpica. Em Londres-12, foi a melhor brasileira do atletismo, 7ª colocada no arremesso de peso. Em 2014, deixou o esporte para ter uma "vida normal". Virou atendente de telemarketing e foi morar com a noiva. Em agosto, voltou a competir.

    Em depoimento à Folha, ela conta sua história.

    *

    Comecei no atletismo em 2005, em São Roque (SP), para usar a piscina do clube. Sete meses depois, o treinador me levou para testes em São Paulo. Me destaquei no arremesso de peso, no disco e fui para a seleção com 15 anos.

    Em 2010, fui convidada para treinar em Uberlândia (MG). Evolui muito e, no mesmo ano, fui campeã mundial juvenil (19 anos), no Canadá.

    No Mundial mesmo fui pega no doping. Perdi a medalha por um chá verde que paguei R$ 18. Não sabia que tinha diurético. Perdi um ano.

    Continuei treinando sem parar. Chorando, vendo todo mundo viajar. Deixei de receber salário. Minha sorte é que tinha alimentação, casa e toda a estrutura. Os R$ 150 que meus pais (Jaime e Mara) enviavam para mim eram suficientes para passar o mês.

    Minha maior felicidade foi entrar na pista de novo após um ano. E já em 2012 consegui a vaga para Londres.

    Quando vai para uma final olímpica, você "desacredita". Lá fiz a melhor marca da minha vida (19,02 m).

    Financeiramente, minha vida melhorou após a 7ª colocação em Londres. Resultado faz todo mundo ganhar mais dinheiro e prestígio.

    QUEDA

    Eu ainda não estava com 2016 na cabeça. Tinha o Mundial de Moscou, em 2013, e não fui bem lá. Não foi falta de treino. Acabei me desconcentrando. Pensei que poderia ter uma vida mais normal, e não é assim. Atleta é atleta 24 horas por dia, sábado, domingo. Não é um trabalho qualquer. Não é vida normal.

    A primeira vez que fui para uma balada eu tinha 18 anos. No centro de treinamento em que morava, às 21h tinha que estar do lado de dentro. Nem no mercado podia ir. Era no quarto às 23h.

    Me perdi no caminho.

    Quando você ainda não foi a uma Olimpíada, que não está entre os 20 do mundo, você pensa que as coisas vão mudar totalmente depois.

    Mas o Brasil não é um país que faz as coisas mudarem quando você está em um certo nível. Você acha que sua modalidade vai ser mais valorizada, ter mais importância, mas não é assim.

    Aqui é 24h de futebol. Ficou louca. Não gosto muito de futebol. Aconteceu o que aconteceu na Copa e vira uma convenção para descobrir o que precisa mudar. E os outros esportes? E o atletismo, que não conseguiu medalha no Mundial de Moscou? E as modalidades sem apoio?

    Não é dinheiro que a gente quer. É uma estrutura melhor. Fui finalista olímpica e o que melhorou para a minha modalidade? Nada.

    VIDA NORMAL

    Querer ser uma pessoa normal acabou comigo.

    Só quem está aqui sabe o peso que é. Você tem que treinar todo dia bem, ser o melhor do Brasil todo dia. Não tem direito de treinar mal. Pesa mais quando não compete bem. Claro que, quando você chega à Olimpíada e faz a melhor marca, compensa.

    Eu já estava querendo parar. Em janeiro deste ano, decidi. Falei para minha mãe, meu pai chorou, brigou e fez uma reunião de família. Eu, eles, meu irmão (Jones) e minha noiva (Laura). Comuniquei que estava cansada e voltei para Uberlândia.

    Fui trabalhar com telemarketing, o que consegui. Com 23 anos eu nunca trabalhei. Comecei faculdade de engenharia civil, direito, psicologia, mas parei todas.

    Durante dois meses trabalhei. E fazia o que eu queria. Trabalhar é muito diferente de treinar. Por mais que eu tivesse que acordar às 6h, eu podia dormir às 3h. Tanto faz. Eu tentei ter a vida normal, mas faltava alguma coisa.

    Já estava "casada", morando com a Laura. Sou noiva desde agosto de 2013, mas namorava desde antes da Olimpíada. Ela sabia da importância do atletismo para mim.

    A Laura insistiu, foi atrás de gente e ajudou demais no meu retorno. Ela sabia que eu estava fazendo a coisa errada ao deixar o esporte.

    A minha sexualidade não foi bem aceita por minha família. Isso pesou para meu pai, quando contei em 2012.

    Muita gente achou que foi por causa da Laura que desisti. Não foi. Ninguém sabia o que era. Foi uma escolha.

    RETORNO

    Não quero ser uma pessoa normal. Tive que sair, tomar pancada da vida para perceber que meu lugar é no atletismo. Minha cabeça estava tão pirada que eu só chorava quando via meus pais chorando. E meus amigos choraram quando eu voltei.

    Se treinada, sou uma boa atleta. Eu tenho o dom. Dá para voltar a arremessar 19 metros já no ano que vem. Mas, para fazer uma boa apresentação na Olimpíada em 2016, tenho que pensar em 20 metros. Eu acredito em uma medalha nos Jogos do Rio.

    É algum tempo de sacrifício? É. Mas vale pela vida inteira. Chegar em 2016 e me sentir realizada, vai durar eternamente. Vou escrever meu nome em algum lugar da história. Como diz uma frase que meu técnico (o cubano Justo Navarro) me mandou: "Sofra hoje mas viva o resto da vida como campeã".

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