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    Após completar triatlo de 226 km, Zanardi coloca Rio-2016 como meta

    GUILHERME SETO
    DE SÃO PAULO

    15/12/2014 02h00

    Em ensaio sobre o tenista Roger Federer, o escritor americano David Foster Wallace fala da capacidade do esporte de fazer com que o ser humano se reconcilie com o fato de possuir um corpo. A isso, ele dá o nome de "beleza cinética".

    Nesse sentido, o caso do ex-piloto da Indy e da F-1 Alessandro Zanardi, 48, é singular.

    Ele não se recorda de tudo o que aconteceu em 15 de setembro de 2001, no circuito de Lausitz, na Alemanha, por volta das 15h30 (horário local). "Há um vazio na minha cabeça", diz em entrevista à Folha.

    Após duas experiências de pouco destaque na F-1 –categoria na qual sonhava em brilhar desde 2 de agosto de 1980, quando seu pai, um encanador que morava em Bolonha, o levou para pilotar um carro montado pela própria família, e ele sentiu "as curvas, a grama, os freios, as pessoas, a intensidade, e o desejo de ter aquilo em minha vida para sempre"–, ele havia voltado para a Fórmula Indy naquela temporada, categoria na qual já havia sido campeão duas vezes e constituído um séquito de fãs. Ali, o "Abacaxi" (apelido que ganhou nos boxes por ser "azedo": minucioso, detalhista) era admirado.

    Naquela tarde, ele liderava a prova, algo que não acontecia em sua carreira na Indy desde 1998, quando perdeu o controle do seu carro pouco depois de ter saído dos boxes.

    O Reynard-Honda de Zanardi - vermelho como "o carro de F-1 que toda criança italiana sonha em pilotar"- foi atingido pelo do canadense Alex Tagliani.

    A violência do choque da frente do carro de Tagliani com a lateral do carro de Zanardi foi enorme. Tão grande que não apenas cortou as pernas do italiano, mas as explodiu.

    "Foi quase igual ao que acontece a um soldado que pisa numa mina", disse à época Steve Olvey, diretor médico da Indy

    2014

    Incansável protagonista de histórias de superação, Zanardi usou o próprio esporte como meio de transcender suas tragédias. Ele reconciliou-se com o corpo por meio dos esportes paraolímpicos e do próprio automobilismo.

    Medalhista de ouro (duas vezes) e de prata paraolímpico em 2012 no paraciclismo, medalhista de ouro (duas vezes) do Mundial de paraciclismo em 2013, Zanardi teve um "sonho maluco" em agosto de 2014: iria começar a participar de provas de triatlo.

    Mas o Abacaxi não se contenta com pouco. Ele decidiu que em menos de três meses estaria disputando o Ironman, em Kona, no Havaí, uma das categorias mais extenuantes do triatlo. São 3,8 km de natação, 180 km de ciclismo e 42 km de corrida.

    "Os jornalistas italianos me ligavam incrédulos, céticos, partindo do princípio de que seria impossível completar a prova. Mas se eu não soubesse desde o começo que era possível, eu não teria nem me inscrito", ri Zanardi.

    E completa, modesto: "Eu quase não tive tempo de me preparar, mas acho que é mais fácil para quem não tem as pernas. A última parte da prova, que é a mais árdua, eu percorri com a cadeira de rodas olímpica, o que me parece mais fácil do que utilizar as já esgotadas pernas".

    No dia 11 de outubro, ele percorreu todo o percurso em nove horas, 47 minutos e 14 segundos, cruzando a linha de chegada em 273º entre os 2.187 participantes que completaram a prova.

    Emocionado, ele fala de suas sensações durante a prova. "É mágico, quase indescritível. Quando você chega nos últimos 500 metros, você vê os moradores locais chorando, rezando, perdendo as estribeiras, para te incentivar. E então o locutor diz: 'Alex Zanardi, você é um iron man [homem de ferro]', e você sabe que nunca vai esquecer daquilo".

    E acrescenta, deixando entrever sua aparentemente inabalável urgência por novas formas de superação.

    "Bate uma tristeza também, sabe? Porque um fim é sempre um fim, mesmo que seja uma vitória. É o fim de mais de 200 km de desconforto, mas também de felicidade, de alegria. Aquilo não vai se repetir novamente. Não haverá de novo uma primeira vez que encostei os pneus do meu paraciclo na terra de Kona", diz.

    Fabio Bozzani/Efe
    Zanardi com sua 'handbike' durante o ironman em Kona, no Havaí
    Zanardi com sua 'handbike' durante o ironman em Kona, no Havaí

    2016

    Zanardi tem um encontro marcado com os brasileiros para daqui a pouco mais de um ano. Ele deve desembarcar no Rio de Janeiro para as Paraolimpíadas de 2016.

    "Estou me dedicando intensamente para estar aí. Estou treinando todos os dias. Hoje, eu só parei para te atender. Os brasileiros gostam muito de mim, e é mútuo, vivi algumas das maiores alegrias da minha carreira no Brasil. É muito, muito possível que eu esteja aí. É a minha meta, hoje", diz, vibrante.

    O italiano parece não vacilar por um segundo. Não há hesitações para o homem que voltou a pilotar um carro na pista em que perdeu as pernas e conseguiu um tempo que o colocaria em quinto no grid de largada da prova.

    "Eu me sinto inseguro quando eu não consigo dar a meu filho de 16 anos as respostas sobre o futuro dele. Quando eu o vejo sofrer e não posso sanar suas questões que ainda não têm resposta. Quanto à minha carreira, eu procuro levá-la pouco a pouco, desfrutando cada momento", conta.

    "Sabe, desde que soube que você iria me ligar fiquei pensando em como brasileiros e italianos são parecidos. Nós sabemos aproveitar a vida no que ela tem de positivo, ver o que há de melhor nas coisas. É isso", resume.

    Ele pensa ter se preparado pouco para os eventos que disputou, e sente-se privilegiado por conseguir colocar-se em condições de disputa

    Mas o que Zanardi poderia querer mais? Qual a força que o move?

    "O puro prazer de continuar. Eu sempre me lembro daquela volta no pequeno carro em 1980, eu muito lento, o pior de todos, e sonhando em ser um piloto. E eu consegui: eu vivo a velocidade".

    Leon Neal/AFP
    Zanardi comemora a conquista da medalha de ouro em Londres
    Zanardi comemora a conquista da medalha de ouro em Londres
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