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    Pioneiro conta como era o surfe no Brasil na década de 50

    GUILHERME SETO
    DE SÃO PAULO

    18/01/2015 02h00

    Em dezembro de 2014, com a conquista do inédito título mundial de surfe do fenômeno Gabriel Medina, o surfe nacional chegou ao ponto mais alto de sua história.

    Mas essa história não começou no ano passado. No fim da década de 1950, o carioca Irencyr Beltrão foi um dos protagonistas da outra ponta dessa trama.

    "Quando eu surfava, apenas em sonhos passavam pela nossa cabeça manobras como aéreos, 360º, loopings, que hoje o Medina, um menino de 21 anos, faz com facilidade. As manobras dele só existiam na nossa imaginação", conta o pioneiro de 73 anos que não surfa mais, mas continua praticando pesca submarina no Rio de Janeiro.

    Adolescente, "com uns 15, 16 anos", nos últimos anos da década de 1950, Irencyr frequentava a praia do Arpoador, que conseguia ver das janelas de casa, "quando não havia todos esses prédios".

    Lá, ele conheceu um grupo de rapazes que desde 1954 "pegavam jacaré", que era o nome que davam para os primeiríssimos passos do surfe no Rio de Janeiro.

    "Eles pegavam onda com pranchas retangulares, arqueadas na ponta para não embicar. Elas tinham o apelido de 'portas de igreja'. Havia meia dúzia delas, cada uma medindo dois metros", conta Irencyr.

    Dessa primeira geração do surfe carioca fizeram parte Arduíno Colasanti, ator conhecido como galã do Cinema Novo por participar de filmes como "El Justicero" e "Como Era Gostoso o Meu Francês", e Jorge Americano, apelido de Jorge Paulo Lemann, empresário tido como o brasileiro mais rico do país pela revista "Forbes".

    "Eles pegavam onda de peito e alguns mais habilidosos ajoelhavam. Os três melhores ficavam de pé e surfavam muito bem: o Lemann, que para mim era o melhor; Gilberto Laport e Paulo Bebiano", lembra.

    Em 1960, Irencyr ganhou de presente de Bebiano a última dessas "portas", mas quebrada. Com a missão de consertá-la, ele fez modificações no projeto com a colaboração de um marceneiro: diminuiu o comprimento, arredondou as pontas e aperfeiçoou as quilhas.

    Apelidada de "madeirite", ela era mais portátil e resistente que as "portas", além de fornecer estabilidade maior. O surfista de testes foi o próprio Irencyr.

    "Como as 'portas' estavam quebradas, eu passei a surfar sozinho, o que era ótimo, porque ninguém via os tombos. Comecei ajoelhado e logo passei a ficar de pé. Com o interesse dos amigos, fiz outras para eles também", relembra.

    Com as pranchas de Irencyr, aperfeiçoadas a partir de imagens que via em filmes no cinema, surfar de pé virou algo comum. Elas eram feitas de compensado naval, utilizado para a confecção de lanchas –à época, a fibra de vidro ainda não havia sido incorporada.

    "Elas se popularizaram de tal forma que eu via grupos de 40 surfistas com madeirites. A preocupação era pegar ondas grandes, ficar de pé na prancha e ir o mais longe possível. Quase não havia manobras. A gente não tinha controle para um 'cutback' ou um 'bottom turn', por exemplo", explica.

    As possibilidades criadas pelas madeirites renderam a Irencyr a alcunha de primeiro "shaper" (aquele que faz pranchas de surfe) do Rio.

    Os anos não o afastaram do esporte. Empolgado, ele acompanhou pela televisão a trajetória de Medina até o posto mais alto do surfe.

    "Já há algum tempo que ele me chama a atenção. Tem atleta que se dá muito bem, mas você vê que está se esforçando muito. No caso do Medina, eu vejo muita naturalidade. Parece que a prancha está colada aos pés dele. Às vezes, eu via ele dar um aéreo, voltar e eu perguntava 'ué, não caiu?'", brinca.

    O que surpreendeu o experiente surfista foi a origem do atual campeão do mundo.

    "Nunca pensei que o campeão viria de São Paulo. Imaginei que seria algum carioca, porque aqui se surfa o tempo todo. Que nada! O talento não tem lugar para aparecer."

    Com a experiência de quem ajudou a construir a história que agora deságua em Medina, ele aconselha o jovem "discípulo".

    "Tem muito atleta que alcança um êxito e se acomoda. O Medina tem que saber que agora é que começa de verdade. O brasileiro tem sangue quente, é competitivo, e com o título vão querer chegar ao nível dele. A batalha está só no começo."

    GLOSSÁRIO: MANOBRAS DE SURFE

    - AÉREO
    Manobra em que se salta com a prancha para além da superfície da água. Os surfistas costumam usar as mãos para segurar a prancha

    - 360º
    Consiste em fazer a prancha completar uma rotação completa na superfície da onda

    - CUTBACK
    Depois de descer a onda, o surfista vai na direção contrária, batendo ou não em sua crista, e depois retornando na direção inicial

    - BOTTOM TURN
    O surfista faz uma curva na base da onda em direção à crista

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