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    Barcelona tem eleição com cédulas de papel e candidaturas milionárias

    SAM BORDEN
    DO "NEW YORK TIMES", EM BARCELONA

    22/04/2015 13h27

    Lluis Gene/AFP
    Atual presidente do Barcelona, Josep María Bartomeu, assumiu o cargo após renúncia de seu antecessor, em 2013
    Josep María Bartomeu assumiu a presidência do Barcelona após renúncia de seu antecessor, em 2014

    É temporada de eleição na Catalunha, e a disputa mais aguardada terá todos os ingredientes previsíveis: acusações de corrupção, candidatos nanicos, promessas de campanha implausíveis e tentativas escancaradas de influenciar os eleitores (alguém aí quer cortar o cabelo de graça?).

    O vencedor não ocupará um cargo público, mas sim a presidência do Barcelona, posto muito mais influente, dizem alguns moradores da cidade. A marca do Barcelona está entre as mais valiosas do esporte mundial.

    Dado esse fato, o clube, e com ele seu presidente, servem como face pública para toda a Catalunha.

    Mas embora virtualmente todas as grandes organizações esportivas do planeta dependam de um proprietário ou conselho diretor para selecionar sua liderança, o Barcelona, propriedade de seus 160 mil sócios, continua a optar por uma metodologia mais tradicional: papel, envelopes e muitas, muitas urnas. O resultado pode ser considerado charmoso –ou absurdo.

    O processo eleitoral é inegavelmente antiquado –os eleitores irão às urnas dentro de alguns meses, no famoso estádio Camp Nou, e lá serão organizados alfabeticamente para a votação; os sócios se sentem especialmente orgulhosos de seu direito ao voto, que muitas vezes descrevem como parte de sua identidade.

    De fato, embora partidas como o jogo contra o PSG, vencido pelos catalães na última terça-feira (21), sejam de fato decisivas, o dia mais importante do ano para um sócio do Barcelona será o da abertura das urnas.

    "Meu voto é como meu país", disse Xavier Sala i Martin, sócio vitalício do Barcelona que já foi tesoureiro do clube e agora é professor de Economia na Universidade Colúmbia. "É algo que me pertence".

    Mas como é frequentemente o caso em qualquer tipo de política, dentro desse idílico pacote de gloriosa democracia existem questões mais difíceis. A primeira delas envolve a premissa básica: será realmente sábio para uma organização avaliada em bilhões de dólares e com orçamento operacional de R$ 1,74 milhão ao ano deixar aos sócios, que certamente amam o clube mas provavelmente fazem pouca ideia de como operá-lo, a responsabilidade de escolher o presidente?

    "A eleição para a presidência do Barça é como uma eleição política comum", disse Agustí Benedito, empresário de Barcelona que declarou sua candidatura ao posto, em entrevista. "Há partes boas e há partes ruins".

    As partes ruins parecerão familiares. Os candidatos se vangloriam, como forma primária de comunicação, e prometem rotineiramente aos eleitores que contratarão, ou demitirão, determinado técnico ou jogador.

    Quase todo mundo aceita que um dos motivos para que Joan Laporta, presidente do clube entre 2003 e 2010, tenha conquistado o posto foi sua revelação, durante a campanha eleitoral, de que havia fechado um "pré-acordo" com o Manchester United para a contratação do meio-campista e astro David Beckham. Votem em mim, disse Laporta, e Beckham logo estará vestindo a camisa do Barcelona. (Beckham terminou contratado pelo Real Madrid, o maior rival do Barcelona).

    Há também um componente financeiro na escolha. Embora qualquer sócio do Barcelona possa votar para presidente, nem todo sócio pode concorrer ao posto. Para se tornar candidato, o aspirante e o conselho que ele propõe formar, em geral composto por 20 pessoas, precisam apresentar uma garantia financeira em valor de 15% do orçamento anual do Barcelona. Em outras palavras, só se pode disputar a presidência do clube se o candidato for capaz de apresentar um depósito de segurança de cerca de R$ 225 milhões.

    Como seria de esperar, isso limita o quadro de candidatos, e frequentemente os leva a selecionar os integrantes ao conselho com base em suas disponibilidades financeiras e não na capacidade de liderança ou conhecimento do futebol. Mesmo Josep Maria Bartomeu, o atual presidente, que se tornou parte do conselho inicialmente na gestão de Laporta, reconheceu que as pessoas que formam o conselho do Barcelona em geral são "empresários que têm tempo e dinheiro sobrando para concorrer".

    Para aqueles que conseguem levantar os fundos necessários, porém, o jogo sujo habitual da política é parte do negócio. Benedito tentou apelar ao compasso moral dos sócios, criticando a atual gestão por sua decisão de assinar um contrato de patrocínio com a Qatar Airways, empresa controlada pela família real do pequeno emirado do Golfo Pérsico.

    "Todo mundo sabe que o Qatar financia o terrorismo islâmico", acusou Benedito em seu escritório, em uma tarde recente. "Eles estão por trás do Estado Islâmico no Iraque e no Levante. Em um clube como este, um clube especial, não podemos estar do mesmo lado que essas pessoas."

    Ele acrescentou: "Hoje recebemos 35 milhões de euros ao ano deles. Mesmo que fossem 100 milhões de euros, eu diria não".

    O lado positivo dessa forma de escolha de líder está no discurso civil e nos debates que os sócios têm com os candidatos, o que resulta em uma franqueza inexistente na maioria dos grandes times mundiais –o New York Knicks e o New York Mets servem como exemplo.

    Bartomeu disse que tenta conversar regularmente com os sócios sobre reformas no estádio e o preço dos ingressos. Victor Font, outro antigo membro do conselho de Laporta que está pensando em disputar a presidência, diz ter conversado com outros sócios sobre profissionalizar o primeiro escalão da liderança do Barcelona. Benedito, o segundo colocado na eleição de 2010, diz ter realizado 474 reuniões com sócios desde sua derrota –um assistente mantém um registro–, em um esforço para garantir que sua plataforma reflita "o que as pessoas querem".

    Quase todos os candidatos parecem ávidos por enfatizar que são diferentes –muito diferentes– de Sandro Rosell, eleito em 2010, que renunciou no ano passado em meio a um escândalo financeiro relacionado à aquisição pelo clube do astro brasileiro Neymar, em 2013.

    A lista de problemas que pendem sobre o principal ativo do Barcelona, seu time de futebol, é considerável. Entre os mais sérios está a proibição de que o time contrate jogadores novos até janeiro, como punição por impropriedades em sua academia de formação de jogadores. O mais importante, porém, é a disputa judicial que tem por base as acusações de fraude tributária na transferência de Neymar.

    Mesmo Bartomeu, que era vice de Rosell e assumiu a presidência depois de sua renúncia, tentou se distanciar de seu bom amigo. Isso foi dificultado pelo fato de que Bartomeu esteve envolvido de perto nas negociações com Neymar e recentemente foi intimado por um juiz a depor no tribunal como parte da investigação sobre a transação.

    Isso deixa aberta a possibilidade, se bem bastante remota, de que os sócios do Barcelona elejam um presidente que pode terminar na cadeia.

    Essa perspectiva vem alimentando a oposição no Barcelona. Jordi Farré, que comanda um novo grupo chamado "Som Gent Normal", meneou a cabeça ao falar de Rosell e Bartomeu. Ele se referiu ao local que abriga os tribunais de Barcelona e disse que "queremos tirar o Barça da Cidade da Justiça e levá-lo de volta à Cidade do Esporte".

    Todos os candidatos concordam que existem sérias questões a debater. Em um referendo anterior, os sócios votaram pela reforma do Camp Nou. Definir como ela será realizada estará entre as tarefas essenciais da próxima presidência. O mesmo se aplica a futuros patrocínios –o time deve ficar com a Nike ou buscar acordo mais alto?– e à proposta de expandir o quadro de sócios.

    Farré deseja promover uma forte ligação entre o Barcelona e o movimento pela independência da Catalunha. Font deseja reformar todo o processo de liderança do clube, removendo os requisitos financeiros para os potenciais integrantes do conselho e estipulando, no lugar deles, padrões mínimos de experiência para cada posto.

    Font disse também que, se disputar a presidência e vencer, encontrará maneira de trazer de volta o treinador Pep Guardiola, que comandou o time na conquista de muitos títulos entre 2008 e 2012 e agora treina o Bayern de Munique.

    As diversas plataformas dos candidatos estarão expostas quando a campanha começar, se bem que a data, curiosamente, ainda não seja sabida. O mandato de Rosell ia até 2016, mas Bartomeu, ao assumir, pediu que as eleições fossem realizadas neste ano porque havia considerável pressão externa para que o Barcelona tivesse um presidente eleito, e não alguém que simplesmente herdou o posto. A data da eleição ainda não foi definida –deve acontecer um pouco depois do final da temporada, talvez em julho– e a campanha oficial se iniciará seis semanas antes disso.

    Muitos observadores acreditam que a disputa possa estar em aberto. Bartomeu disse que seus problemas legais não o impediriam de concorrer, e houve especulação de que Laporta talvez surja tardiamente na disputa; ele recusou múltiplos pedidos de entrevista.

    Quando a campanha começar oficialmente, cada candidato instalará uma sede de campanha concebida para atrair os sócios; Rosell oferecia cortes de cabelo e barba gratuitos na eleição passada, e Laporta, em 2003, instalou muitas mesas de pebolim em sua sede.

    Recentemente, alguns times europeus começaram a pressionar para que o Barcelona, assim como o Real Madrid e os demais clubes espanhóis controlados por seus sócios, mudem de estrutura. Operar da forma pela qual opera, dizem os críticos, permite que o Barcelona evite alguns dos requisitos fiscais que os clubes estruturados como empresas precisam cumprir. Parece improvável que o modelo mude, ao menos em curto prazo.

    Sala i Martin expressou desdém pela ideia. "Não sei como o pessoal de Manchester se sentiu quando uma família norte-americana rica comprou o clube deles", ele disse sobre aquisição do Manchester United pela família Glazer, em 2005.

    "O time continua a ser o time pelo qual você torce, sim, mas não é a mesma coisa, é?", ele disse. "É seu mas não é mesmo seu. No caso do Barça, todo sócio sabe que o clube pertence a nós."


    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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