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    'Minha geração foi para o abate', diz Guga sobre sua época de tenista

    PAULO ROBERTO CONDE
    ENVIADO A FLORIANÓPOLIS

    24/05/2015 02h00

    São 16h30 de segunda-feira e Gustavo Kuerten, aos 38 anos, surge no escritório de sua empresa, na região central de Florianópolis, com camiseta, bermuda e tênis.

    A imagem remete àquele Guga, número 1 do mundo por 43 semanas e vencedor de Roland Garros três vezes.

    A realidade, porém, é um tanto mais dura. "Estou assim porque tive fisioterapia hoje. Faço quase todo dia. Ainda é muito difícil. Não consigo correr nem cem metros em linha reta".

    O corpo do maior nome da história do tênis brasileiro acusa o golpe após 13 anos de circuito e três cirurgias que aniquilaram seu quadril –ele também se submeteu a um implante de prótese em 2013.

    Guga acredita que o tênis precisa preservar mais suas estrelas e rever os formatos dos jogos e dos torneios.

    À Folha, criticou o modo como sua geração foi tratada no início dos anos 2000.

    Caio Cezar
    O ex-tenista Gustavo Kuerten
    O ex-tenista Gustavo Kuerten

    Para ele, a ATP (Associação dos Tenistas Profissionais), no afã de assegurar maior participação dos grandes jogadores nos torneios, criou limites de presenças obrigatórias que contribuíram para aumentar lesões.

    Na época, a entidade criou um ranking chamado "Corrida dos Campeões", que contava os pontos da temporada. Para Guga, isso forçava atletas a disputar alto número de partidas. Em 2001, ele atuou em 21 torneios –o sérvio Djokovic jogou 15 em 2014.

    A ATP afirmou à reportagem, neste domingo, que não comentaria as afirmações do brasileiro "já que elas tratam de fatos de 15 anos atrás".

    Apesar dos lamentos e das críticas, o tom de Guga ao longo da entrevista é, em geral, descontraído.

    É assim que ele fala sobre a edição deste ano de Roland Garros, que começa neste domingo (24). O ano de 2015, aliás, marca os 15 anos de seu bicampeonato no tradicional torneio francês.

    Guga elogia o momento do tênis brasileiro –justamente neste sábado (23), Thomaz Bellucci foi campeão em Genebra.

    Mas faz ressalvas. Acredita que o tênis no país precisa de "construção sólida" da base. E não só. Falta profissionalização –para ele, o tênis não pode viver de incentivos do poder público.

    Afirma ainda que os Jogos Olímpicos deixarão um legado e acredita que muitos esportes serão beneficiados.

    *

    Folha - Quem conquistará o título de Roland Garros?
    Gustavo Kuerten - Está mais para o [sérvio Novak] Djokovic, mas em 2014 também achava isso e deu [o espanhol Rafael] Nadal. Quando Nadal entra em Roland Garros, é complicado.

    Mas será que toda essa autoestima e memória de campeão vão conseguir compensar essa diferença que o Djokovic abriu? É quase impossível. Mas o Nadal faz o impossível todo ano, né?

    Discute-se muito se Federer e Nadal, e agora Djokovic, são os melhores da história. Qual é sua opinião?
    Eles precisam ser considerados. Djokovic talvez não agora, mas daqui a seis meses ou dois anos. Se pegarmos uma lista dos cinco melhores da história, Federer e Nadal têm que estar dentro. Hoje, eles são tão campeões que minimizam o efeito dos outros. São fenomenais.

    Nadal aguenta mais muito tempo no circuito, já que teve tantas lesões?
    Tudo indicava que ele não iria jogar tão bem a partir dos 25 anos. Está à beira dos 30 [tem 28]. Eu achava que com 25 ele estaria capengando. Ele sempre dá jeito. Mas cada vez o corpo dele vai encurralá-lo mais e, em determinado momento, não vai conseguir.

    Sua geração também foi muito marcada por lesões.
    Fomos para o abate. Eles botaram nossa turma para jogar a torto e a direito.

    A ATP (Associação dos Tenistas Profissionais), você diz?
    É. A ATP forçou os jogadores a pontuar em todos os Masters Series [hoje chamados de Masters 1.000]. Um jogador que queria ser número 1 não podia ficar fora.

    Na época, a temporada ia até dezembro. Hoje, acaba praticamente no final de outubro. Havia mais jogos de cinco sets. Não tinha cabeça de chave, ou seja, sempre se jogava uma rodada a mais.

    Isso, na prática, trucidava o jogador. A cada ano, fico mais convicto que foi a ATP que quebrou a turma. Eu, [o chileno Marcelo] Ríos, [o sueco Magnus] Norman, [o russo Marat] Safin. Muitos caras excelentes foram para o saco.

    Mas a culpa era da ATP?
    Em suma, sim. Cada um tem o direito de decidir se vai jogar ou não. Mas a gente era meio que forçado a jogar.

    Faltou um melhor tratamento àquela geração?
    Acho que a ATP errou na mão. Não é que provocaram o trucidamento deste monte de jogador. Mas aconteceu.

    Em março, pelo confronto Brasil x Argentina na Davis, o jogo entre Feijão e Leonardo Mayer durou 6h42. Em seguida, a ITF (Federação Internacional de Tênis) propôs introduzir um tie-break no quinto set para encurtar os jogos. O que você pensa sobre isso?
    Ficar tanto tempo em quadra é insano. É jogar o cara nas cordas e ficar batendo. O tênis poderia implementar um novo conceito. Um jogador não pode tomar café e almoçar dentro de uma quadra.

    Para a plateia, ver aquela catarse, ver o jogador caindo pode parecer bacana, mas o esporte não é mais isso. O formato de cinco sets deve ser repensado. Pô, três horas seria lindo, já. É mais do que maratona, é quase Ironman.

    Você ainda se trata por causa de suas lesões?
    Na média, hoje faço pelo menos duas horas e meia de fisioterapia todos os dias.

    As dores ainda limitam muito?
    Atualmente, não faço nenhum esporte. Exibição, "no way". Meu desafio agora é correr um certo tempo. Não estou desesperado para voltar a fazer exibição, mas quero voltar a ter esses prazeres.

    Você cogita fazer cirurgia?
    Não. Hoje, acho que nem é indicado e não tenho a mínima condição de entrar em uma sala de cirurgia.

    Há 15 anos, você era número 1 do mundo. Hoje, o Brasil não tem ninguém na elite do Tênis. O que deu errado?
    Não houve um projeto adequado de formação para tirar vantagem da oportunidade que surgiu. Até 2001, quando ainda era número 1 do mundo, nada se fez. Se lá atrás, tivessem construído um ambiente favorável para alavancar o tênis, as coisas poderiam ser diferentes hoje.

    [Mas] O momento é muito favorável no tênis porque hoje existe um investimento mais adequado. O patrocínio dos Correios [que apoia a confederação brasileira] faz diferença bem impactante.

    Meu receio é ficar à mercê da Olimpíada. Depois, vão diminuir o investimento. O esporte não tem que ser bancado por iniciativa do governo, é preciso profissionalizar.

    Qual sua opinião sobre o tênis brasileiro nos dias de hoje?
    Vivemos momento bom. O Brasil voltou ao Grupo Mundial da Davis, o Bellucci vai voltar a ser o 50º do mundo, tenho certeza. Ele é o segundo melhor da história do país.

    Além disso, a Teliana [Pereira] está entre as cem melhores tenistas do mundo.

    Se me tirar da história, o momento é bom. Nos últimos quatro ou cinco anos, o tênis cresceu. Mas existe essa lacuna, a falta de construção sólida na base.

    Você pensa em ter algum cargo para atuar neste sentido?
    Infelizmente, o Brasil não está pronto para pessoas boas que querem fazer grandes transformações. Ele não permite, devido às condições, como amarras políticas, dificuldades burocráticas.

    Conversei um tempo atrás com o Larri Passos [ex-técnico de Guga] e é certo que ele vai morar nos EUA. Vamos perder um cara desse? Ele não aguenta mais. Nosso país esgoela pessoas que podem ser grandes transformadoras, o que me desmotiva muito a entrar nesse caminho.

    A Olimpíada deixará um legado positivo para o Brasil?
    Mal feita, feita ou bem feita, sempre deixa algum legado positivo. Creio até que a organização tem sido bem conduzida. A partir do exemplo da Copa, acho que a Olimpíada é montada adequadamente.

    Mas caímos na mesma vala, depende de muitos fatores. A engenharia do nosso país não permite que se tire nota 10. Oportunidades já passaram, mas muitos esportes terão benefícios. Na estrutura física, haverá um baita de um legado.

    RAIO-X - GUSTAVO KUERTEN

    NASCIMENTO
    10.set.1976 (38 anos), em Florianópolis. Estreou como profissional em 1995 e se aposentou em 2008

    FAMÍLIA
    É casado desde 2010 com Mariana Soncini, com quem tem dois filhos: Maria Augusta, 3, e Luis Felipe, 1

    CONQUISTAS
    Teve 20 títulos como profissional em simples, dos quais três em Roland Garros (1997, 2000 e 2001)

    PREMIAÇÕES
    Somou ao longo de 13 anos de carreira US$ 14, 8 milhões

    HOMENAGEM
    Entrou para o Hall da Fama do Tênis em 2012

    CIRURGIAS

    FEVEREIRO DE 2002
    Passa por artroscopia no quadril direito no Baptist Hospital, em Nashville, nos Estados Unidos.

    SETEMBRO DE 2004
    Submete-se a novo procedimento no quadril direito, agora em Pittsburgh, também nos Estados Unidos.

    MARÇO DE 2006
    Em Vail, no Colorado, Guga passa por nova operação, feita pelo médico norte-americano Marc Philippon. A cirurgia é revelada em sua biografia.

    MARÇO DE 2013
    Implanta prótese no quadril direito, em Florianópolis. A intervenção é feita pelo médico Richard Canella.

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