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    OPINIÃO

    Fantasma do Maracanazo morreu, mas nunca deixará de existir

    RODRIGO BUENO
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    16/07/2015 19h17

    "Apenas três pessoas na história conseguiram calar o Maracanã com um só gesto: o papa [João Paulo 2º], Frank Sinatra e eu."

    Ghiggia foi bondoso demais com o papa e com Sinatra ao fazer sua declaração mais famosa, pois esses dois não ficaram tão eternizados como o pequeno atacante uruguaio pelo que fizeram no mítico estádio brasileiro.

    O Maracanã nasceu para a Copa do Mundo de 1950 e morreu de certa forma na Copa do Mundo de 1950. Desde aquele chute de Ghiggia entre Barbosa e a trave esquerda do Brasil, o fantasma do Maracanazo ganhou corpo mundo afora.

    A mais célebre das derrotas nacionais virou sinônimo internacional de fracasso contra todos os prognósticos. E o Maracanã não se livrou mais de Ghiggia, ainda mais porque ele fincou em 2009 os pés na Calçada da Fama do estádio (como se já não estivesse muito bem marcado naquele espaço para sempre).

    Dos jogadores que entraram em campo naquele Brasil x Uruguai na final de 1950, o último a morrer foi justamente Ghiggia. E ele foi mesmo um sobrevivente solitário do Maracanazo, tanto que driblou até um um grave acidente automobilístico em junho de 2012. Viveu para participar do sorteio dos grupos da segunda Copa no Brasil. Viveu para ver o desfecho do segundo Mundial brasileiro.

    "Para mim, o Brasil é como a segunda casa. O povo me respeita muito, apesar do sucedido [o Maracanazo]. Eu tenho muito prazer de estar aqui. Eu tenho muito orgulho de ser uruguaio, mas respeito o Brasil", disse, no sorteio na Bahia, o pai de todos os algozes da seleção.

    O antecessor de Eusébio, Paolo Rossi, Zidane e Sneijder nunca teve requintes de crueldade com a sua maior vítima. Mais ouvia sobre o seu épico gol do que falava sobre ele.

    Símbolo maior do maior feito esportivo de seu país, Ghiggia se refugiou nos últimos anos de vida na cidade de Las Piedras (cerca de 20 km de Montevidéu). Ficou muito tempo distante do Centenario, palco grandioso do futebol que centenas de vezes estendeu a faixa com o ano eterno: "1950".

    Em março de 2014, pisou de novo no palco maior do futebol uruguaio para o lançamento do documentário "Maracaná, la película". Ghiggia pôde ouvir o seu povo gritar o gol que marcou a sua vida e que marcou a de milhões de brasileiros e uruguaios.

    "É muito bom recordar a Copa de 50. E principalmente para os jovens, que não viveram aquela época", comentou o carrasco de Barbosa, Bigode e cia.

    Nem todos sabem que Ghiggia jogou por Sud América, Peñarol, Milan, Roma e Danubio. Poucos lembram que ele defendeu também a seleção italiana. E quase ninguém tem ideia de quando ele encerrou a carreira, empurrada até os 42 anos de idade.

    O que se sabe mesmo de Ghiggia é o que aconteceu exatamente às 16h38 daquele 16 de julho no Rio de Janeiro. Uma corrida bem-sucedida de apenas seis segundos fez com que inúmeros uruguaios fossem batizados a partir do Maracanazo com o nome Alcides Edgardo, o nome de Ghiggia.

    Foram só 12 jogos pela Celeste Olímpica, todos entre 1950 e 1952. Vida curta em sua seleção, vida eterna em sua seleção. E foram apenas quatro gols marcados por ele com a camisa do Uruguai, todos na Copa do Brasil, um em cada jogo. Mas bastava um: Aquele!

    "El gol que nunca se gritó" reuniu, 63 anos depois de ser anotado, milhares de pessoas no estádio Centenario. Antes do jogo que selou a vaga uruguaia na Copa de 2014, uma partida contra a Jordânia, foi prestada uma homenagem a Ghiggia: ouvir seu gol ser gritado. A Associação Uruguaia de Futebol e uma agência de publicidade armaram a jogada.

    Como eram pouquíssimos os uruguaios no Maracanã na final da Copa de 1950, o que se ouviu no estádio na hora do "Gol do Século" para os charrúas foi um ensurdecedor silêncio. Cerca de 200 mil brasileiros se calaram no instante em que a bola chutada com a perna direita de Ghiggia cruzou a meta que ficava à direita das tribunas do Maracanã. Outros milhões fora do estádio também emudeceram de pronto.

    A velocidade de Ghiggia fez o tempo parar. Primeiro, ele recebeu de Varela, avançou pela sua ponta direita e cruzou para Schiaffino fazer o 1 a 1 no jogo que o grande favorito Brasil poderia até empatar para ser campeão mundial pela primeira vez. Eram 21 minutos do segundo tempo.

    A chance do Uruguai, se é que existia alguma, era pela direita. Ghiggia, no auge dos seus 23 anos, corria como um garoto nas costas de Bigode, seu marcador.

    Após uma tabela com Julio Pérez, o camisa 7 arrancou como de hábito e cogitou cruzar como de costume. Foi quando ele percebeu Barbosa um tanto quanto distante da trave esquerda, certamente imaginando a repetição do cruzamento que resultou no primeiro gol uruguaio. O cruzamento não veio.

    Eram 34 minutos daquela etapa final. Ghiggia bateu no espaço que viu entre a trave e o goleiro brasileiro, que viveria desde então um calvário por conta desse fatídico lance. Barbosa e Brasil caíram juntos, foram condenados juntos. A mais incrível história de todas as Copas estava escrita. Ghiggia a assinou.

    O gol trágico

    Nem antes nem depois o Uruguai marcou um outro gol tão simbólico. O complexo de vira-lata dos brasileiros teve no dia 16 de julho de 1950 o seu maior latido. Ghiggia o produziu, Nelson Rodrigues apenas o traduziu.

    Tal complexo de vira-lata morreu em 1958 com o título mundial conquistado pelo genial time do vingador Pelé. Dondinho, o pai do "Rei", havia chorado, assim como tantos outros brasileiros, pela mãe de todas as tragédias em 1950. Pelé viveu com isso e prometeu vingar aquele choro dando a Copa ao Brasil.

    Curiosamente, Ghiggia disputou as eliminatórias para o Mundial de 1958 pela Itália, e ele naufragou na disputa assim como a Azzurra, que não se classificou para a Copa da Suécia, vencida pela seleção brasileira.

    O Brasil se vingaria diretamente do Uruguai em 1970, em 1989, em 1993 e em vários outros jogos, mas sempre sem dar o devido troco, pois não há como, não há nada que pague a perda daquela final que estava ganha em casa.

    Nem a morte de Ghiggia é capaz de mudar a história. O verdadeiro fantasma do Maracanazo continua vivo, só que não mais em carne e osso. Ghiggia Eterno!

    RODRIGO BUENO, 42, é jornalista esportivo e comentarista do canal Fox Sports Brasil

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