• Esporte

    Saturday, 04-May-2024 19:33:44 -03

    Ghiggia vendeu medalha da Copa de 1950 e viu camisa da final sumir

    RODRIGO BUENO
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    17/07/2015 02h00

    Ghiggia nasceu em família de classe média, virou rico na Itália e terminou sua vida de forma muito humilde em Las Piedras, interior do Uruguai.

    Aposentado, ganhava cerca de US$ 530 por mês. Para ter um pouco mais de renda, cobrava para dar entrevistas e teve que se desfazer de algumas lembranças, como a medalha pelo título da Copa de 1950. Ele a vendeu por US$ 1.600.

    O comprador da medalha era ligado a Paco Casal, empresário de jogadores muito influente no futebol uruguaio. Mas, após grande polêmica no Uruguai por conta da venda da histórica peça, essa foi devolvida a Ghiggia (Casal ainda deu US$ 400 por mês ao ex-jogador por um tempo).

    A camisa que Ghiggia usou na final de 50 foi dada a seu pai, que a deixou numa caixa. Quando Ghiggia voltou da Europa para jogar no Uruguai, abriu a caixa e não achou a camisa. Sumiu.

    1Na5e7t3j9n6g14mktfzi3tbti

    Na adolescência, Ghiggia, que não tinha nem 1,70 m, jogava basquete. E jogava no Nacional, sendo que era torcedor ferrenho do Peñarol, como toda sua família. Desenvolveu sua velocidade apostando corridas com um cachorro. Corria tanto que seu pai o deixou abandonar os estudos para tentar a sorte no futebol no Sud América. Deu muita sorte, como o Maracanã sabe bem.

    No Mundial de 1950, Ghiggia chegou como uma novidade na Celeste. Os jogadores brasileiros conheciam bem o rival, até perderam um jogo no Pacaembu pouco antes da Copa para o Uruguai. Mas sabiam muito de jogadores como Obdulio Varela, não muito do veloz ponta.

    Segundo o livro "Maracaná, los Laberintos del Carácter", Ghiggia estava em seu auge físico e técnico na Copa de 1950 e, por isso, o time uruguaio insistia nas jogadas com o atacante que "não temia Deus nem o diabo" em campo. Tanto que o técnico do Uruguai teria ficado bravo com Ghiggia porque, nos minutos finais da final de 1950, ele buscava o terceiro gol quando a ordem era ajudar a defesa. Até mesmo no gol triunfal que marcou Ghiggia levou bronca.

    "Não me ouviu? Eu te pedi a bola. Por que não me passou?", reclamou Míguez após o gol para aquele que acabara de decretar a virada histórica no Maracanã. "Deixa ela [a bola] aí [no gol do Brasil], que aí ela está bem", respondeu Ghiggia, segundo o livro "Maracaná, la Historia Secreta".

    Mas o capitão Obdulio Varela sentenciou o que fez a diferença na final de 1950: "Não fosse por Ghiggia, não ganharíamos nunca aquela partida." Ou seja: se não fosse por Ghiggia, até hoje o Brasil jogaria de branco (a camisa amarela, que surgiu após a Copa de 1950, não existiria).

    O gol trágico

    Em 1953, com o prestígio que ganhou no Mundial, Ghiggia foi para a Itália. Também porque tinha sido suspenso por 15 meses no futebol uruguaio por brigar com um árbitro.

    Cerca de 55 mil torcedores foram ver sua estreia pela Roma num amistoso contra o Charlton, da Inglaterra. Teve sucesso na terra do calcio (também com a camisa do Milan), acumulou fama e uma pequena fortuna. Chegou a ter três Alfa Romeo, conheceu mulheres como Ana Magnani e Gina Lollobrigida e experimentou uma vida de glamour em Roma.

    Com alguns investimentos equivocados e problemas familiares, Ghiggia perdeu rapidamente muito do dinheiro que conseguiu. Voltou ao Uruguai em 1963 e era o único campeão de 1950 ainda na ativa. Precisava de dinheiro e estendeu a carreira até os 42 anos, atuando por vários times de pouca expressão (gostava tando da bola que, mesmo idoso, jogava vez ou outra futsal).

    Ao pendurar as chuteiras, Ghiggia tinha duas casas, porém não dispunha de dinheiro suficiente para ficar sem trabalhar. O governo então lhe deu um emprego num cassino em Montevidéu. Com a crise financeira do Uruguai, ele teve que vender suas duas casas e, por fim, a medalha de 1950. Ganhou US$ 6 mil pelos direitos de um livro e participou de uma turnê patrocinada pelo uísque Dunbar, que tinha seu nome estampado também em sua casa. Tudo para ganhar um troco.

    O primeiro casamento, dois anos após o Maracanazo, rendeu a Ghiggia um filho e uma filha, herdeiros com quem ele quase não teve contato nas últimas décadas.

    O segundo casamento terminou com a morte de sua mulher em 1992. O terceiro e último casamento foi com Beatriz, 45 anos mais jovem que ele. O ex-atacante a conheceu numa autoescola em que ele era professor, um "bico" que fazia após a aposentadoria (já vivia em sua casa alugada em Las Piedras).

    Nas paredes de sua casa, Ghiggia tinha um retrato da época de jogador e uma série de placas e pequenos troféus alusivos ao feito no Maracanã.

    Em 2012, sofreu um acidente com o Renault Clio que ganhou de Paco Casal. Foi atirado do carro e sofreu várias fraturas, além de um traumatismo no tórax. Ficou 37 dias internado. Sentia fortes dores no joelho depois do acidente, em especial no dias de muita umidade.

    Porém o que mais ameaçava sua saúde eram as fortes emoções. Tanto que sua mulher o proibia de ouvir a narração de seu gol mais famoso. Mesmo assim, Ghiggia vibrava ainda assistindo pela TV jogos do Uruguai e do Peñarol. Via o jogo do seu clube de coração da cama e aumentava o volume da TV quando o Peñarol fazia gol para provocar a mulher, torcedora do Nacional que ficava na cozinha quando acontecia o grande clássico uruguaio.

    RODRIGO BUENO, 42, é jornalista esportivo e comentarista do canal Fox Sports Brasil

    [an error occurred while processing this directive]

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024