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    Corrupção no futebol

    Torcedores de time da Traffic nos EUA protestam e procuram por novo dono

    REBECCA A. RUIZAUG
    DO "NEW YORK TIMES", EM CARY, CAROLINA DO NORTE

    31/08/2015 12h00

    Travis Dove/The New York Times
    Torcedor do Carolina RailHawks protesta contra a Traffic
    Torcedor do Carolina RailHawks protesta contra a Traffic

    Antes de uma grande partida, o panorama do lado de fora do estádio do Carolina RailHawks não tem muito de incomum para um time que ocupa o penúltimo lugar no torneio de uma liga profissional menor. Nos portões de entrada, estagiários sentados a uma mesa dobrável entregam aos torcedores os ingressos adquiridos com descontos online.

    Do lado de dentro do estádio, porém, o clima é diferente. Faixas de protesto são visíveis nas arquibancadas, uma delas citando um trecho de um indiciamento federal norte-americano. O RailHawks, que compete na North American Soccer League, tem torcedores leais e ruidosos, e eles não estão satisfeitos por seu time ter sido afetado por um caso internacional de corrupção no esporte.

    Desde maio, quando o Departamento da Justiça dos Estados Unidos anunciou acusações baseadas nos estatutos de combate ao crime organizado contra dirigentes do futebol mundial, executivos de grandes empresas e contra duas corporações, os torcedores do RailHawks se viram diante de uma crise improvável. O time, sediado em Cary, um subúrbio de Raleigh com 150 mil moradores, é propriedade de uma empresa de marketing de Miami que ocupa posição proeminente no caso federal.

    A empresa, Traffic Sports USA, e sua matriz brasileira se pronunciaram culpadas, em maio, por conspiração para fraude telegráfica, no tribunal federal dos Estados Unidos para o distrito de Brooklyn. As sentenças do processo devem ser anunciadas em setembro.

    O proprietário das duas empresas, o brasileiro José Hawilla, no ano passado admitiu diante do mesmo tribunal décadas de subornos a autoridades do futebol na América do Norte e do Sul a fim de conquistar lucrativos direitos comerciais sobre torneios realizados nas duas regiões, de acordo com documentos judiciais revelados em maio. Hawilla concordou em indenizar o governo dos Estados Unidos em cerca de US$ 152 milhões, e até agora já pagou US$ 25 milhões.

    Mas para bancar o pagamento da soma ainda devida, algumas das propriedades da Traffic estão à venda, entre as quais o RailHawks. Os torcedores mais antenados sabem disso e estão informando o mundo do fato como se fossem receber comissão pela venda do time, na esperança de separar a equipe, criada nove anos atrás, de proprietários que se tornaram criminosos confessos, a fim de mantê-la viva.

    Em uma partida recente, dezenas dos mais fiéis torcedores do RailHawks marcharam em torno do estádio com apitos, tambores, pratos e um megafone. Usavam camisetas com a frase "Fora Traffic", a mesma mensagem exibida em um toldo cor de laranja que cobria duas vagas de estacionamento no pátio do estádio. Um homem acenava com um cartaz de "vende-se" afixado a uma vara de um metro de altura.

    Travis Dove/The New York Times
    Torcedores do Carolina RailHawks pedem a saída da Traffic em faixa
    Torcedores do Carolina RailHawks pedem a saída da Traffic em faixa

    No segundo tempo do jogo, os torcedores estrearam uma versão nova de um de seus cantos de guerra favoritos: "Precisamos de um dono, sim, precisamos. Precisamos de um dono –e você, o que acha?", elas bradavam.

    "Que tal você, Raúl?", gritava Justin Mayo, 18, sentado na primeira fileira da seção 309 da arquibancada, na direção do atacante espanhol, astro do New York Cosmos, que estava jogando como visitante no estádio.

    Se o RailHawks não conseguir garantir um comprador este ano, o elenco pode sofrer, e o time pode não ser capaz de renovar contratos com jogadores ou pagar os contratos existentes. "É algo que nos interessa resolver o mais rápido possível", disse Curt Johnson, o presidente da equipe. "Não é uma situação agradável, mas é uma oportunidade para que informemos as pessoas sobre este time, este mercado e o potencial de crescimento do futebol profissional no país".

    Funcionários da Traffic USA se recusaram a comentar, e o mesmo vale para o advogado de Hawilla e das duas empresas.

    Dan Torchio, que desde a temporada 2011 compra um carnê com ingressos para todos os jogos do time em casa, disse que tinha dúvidas sobre a sobrevivência do RailHawks, e acrescentou que não compraria ingressos para 2016 antes de ter certeza. "É meio espantoso que um escândalo internacional como esse tenha afetado o pequeno time da minha cidade", diz Torchio. "O mundo do futebol foi atingido em todas as suas porções".

    Johnson, o presidente do RailHawks, disse que a Traffic havia mantido o orçamento programado para o ano mesmo depois de admitir culpa, e definiu a empresa como "confiável e presente" nos quatro anos e meio transcorridos desde que esta o contratou, apontando que a empresa lhe havia conferido relativa autonomia no comando do time.

    Mas a força por trás do time e o homem com quem Johnson falava regularmente não era Hawilla, e sim Aaron Davidson, até maio presidente da Traffic USA; ele se pronunciou inocente de acusações semelhantes às admitidas por Hawilla, naquele mês, e está em prisão domiciliar em Miami.

    Davidson se identifica de perto tanto com o RailHawks –que ele visitava a intervalos de poucos meses, segundo Johnson– quanto com a North American Soccer League, a segunda divisão do futebol masculino profissional dos Estados Unidos. Davidson leva o crédito por ter revivido a liga, que havia fechado em 1984, depois que passou o pico de popularidade conferido ao futebol nos Estados Unidos por jogadores como Pelé e Franz Beckenbauer. Em 2011, a liga foi reaberta, com uma nova estrutura de negócios.

    A proposta de Davidson era aproveitar tanto a nostalgia pela velha liga quanto o interesse ampliado pelo futebol nos Estados Unidos. Ele persuadiu um grupo de proprietários da United Soccer League, então a segunda divisão norte-americana e hoje a terceira, a abandonar a federação que controlava o torneio e formar uma nova liga que toma por modelo as federações de futebol da Europa e da América do Sul, de acordo com quase 20 pessoas envolvidas com a North American Soccer League, agora e no passado.

    A nova estrutura da liga oferecia mais controle financeiro aos proprietários, permitindo que eles tomassem as decisões financeiras, em lugar de seguirem normas organizacionais como as que regem as demais federações de futebol norte-americanas. O modelo envolvia menos restrições, e não impunha limitações aos salários dos jogadores, o que permite que equipes contratem jogadores caros como Raúl.

    Davidson estabeleceu os escritórios da liga renascida ao lado da sede da Traffic em Miami –onde eles operaram até o ano passado–, e em dado momento a empresa tinha participações em quatro dos hoje 11 times que formam a liga.

    Travis Dove/The New York Times
    Torcedores do Carolina RailHawks acompanham uma partida da equipe
    Torcedores do Carolina RailHawks acompanham uma partida da equipe

    Com grandes ambições de concorrer com a Major League Soccer, a primeira divisão do futebol norte-americano, Davidson comandou a liga como presidente do conselho até maio, quando estourou o escândalo e ele foi suspenso de seu posto.

    "O Carolina RailHawks, o único time da North American Soccer League controlado pela Traffic Sports, continuará a operar sem mudanças em seus negócios", a liga informou em comunicado divulgado em maio. Bill Peterson, o comissário da North American Soccer League, ecoou essa posição em entrevista este mês, acrescentando que a Traffic estava realizando esforços ativos para vender o RailHawks.

    Mas as conexões entre a Traffic e a liga são mais duradouras do que os dirigentes dessa se dispõem a admitir, e atingem mais de um time.

    A liga tem dois modelos de propriedade, de acordo com documentos apresentados a um tribunal estadual de Nova York em um processo não relacionado ao caso federal. Os cotistas Classe A são proprietários de times com direito de voto na liga –a Traffic é um deles–, e os cotistas classe B incluem investidores que tenham aplicado somas significativas na liga em seus dias iniciais e exercem alguma influência sobre certas decisões.

    A Traffic Sports USA, de acordo com sua documentação e confirmação da North American Soccer League, é a maior cotista classe B, o que significa que tem o maior montante investido na organização e recebe a maior porção nos pagamentos de dividendos.

    Jarrett Campbell, fundador do Triangle Soccer Fanatics, um grupo de torcedores de Cary que liderou os protestos contra a Traffic, disse que estava frustrado com a falta de transparência sobre o papel continuado da empresa no time.

    "Não temos verificação de que a Traffic esteja totalmente fora do cenário, como a liga tentou sugerir", ele disse. "E, em termos locais, eles inequivocamente continuam a pagar as contas do time, aqui".

    As questões de Campbell quanto à Traffic precedem o escândalo, ele disse. Em sua opinião, a companhia há muito não vinha investindo o bastante no time e nem pagando salários suficientes aos jogadores. No ano passado, o artilheiro da liga deixou o RailHawks para se preparar para o exame de admissão a uma escola de Direito, e cinco outros atletas se recusaram a exercer opções e estender seus contratos com o time.

    Mas o envolvimento da Traffic no amplo esquema de corrupção foi a gota de água que faltava, segundo Campbell. Desde então, ele vem pedindo à liga que exclua a Traffic da lista de proprietários e assuma controle interino do time, uma sugestão que os dirigentes da liga não acataram. A liga tem normas que permitem que lide com proprietários que não cumpram suas obrigações financeiras, mas todos os relatos concordam em que o dinheiro da Traffic continua a entrar.

    Enquanto isso, Campbell e outros torcedores ativistas continuam a fazer barulho, distribuindo panfletos e lançando um site, o que torna mais conhecidos tanto o time quanto eles.

    Em um jogo recente, eles exibiram faixas de protestos, entre as quais uma que mostrava o rosto de Davidson desenhado e um trecho do indiciamento federal. "Ele é ruim?", a faixa dizia, uma pergunta que Davidson fez e respondeu sobre o histórico de negócios da Traffic em conversa com José Hawilla no ano passado, "Sim, é ruim".

    Pouco depois que o Cosmos marcou seu terceiro gol, o mascote do RailHawks abordou o grupo de torcedores dissidentes e abraçou Mayo, que acenava com um cartaz com a palavra "respostas" sublinhada.

    Travis Dove/The New York Times
    Jogadores do New York Cosmos (esq.) e do Carolina RailHawks antes de uma partida
    Jogadores do New York Cosmos (esq.) e do Carolina RailHawks antes de uma partida

    Em outras áreas do estádio, torcedores mais casuais mostravam espanto diante da conexão de seu time com o escândalo. "Seria de imaginar que, se o RailHawks estivesse envolvido em corrupção, o time seria bom e estaria comprando sucesso", disse Howie Perl, que se mudou para a região no ano passado e estava assistindo ao seu quarto jogo do time. "É absurdo".

    Outros demonstraram menos surpresa. Brandon Kelsey, 19, universitário que assiste aos jogos com sua irmã de 13 anos de idade, deu de ombros quando informado da conexão. "O futebol é um jogo mundial, e o mundo do futebol é pequeno", ele disse. "Não importa em que nível, muitas das pessoas e patrocinadores são os mesmos".

    Ele apontou para as placas de publicidade do McDonald's e Coca-Cola na beira do gramado.

    Os jogadores do RailHawks não estão mais bem informados que os torcedores. "Nós só chutamos a bola, e é isso", disse o atacante Wells Thompson depois do jogo, a terceira derrota consecutiva da equipe. "Obviamente estamos pensando sobre a situação, e preocupados com ela, mas não há muito que possamos fazer para controlá-la".

    Jonathan Van Horn, que serve como capelão voluntário do time, diz que em suas sessões de aconselhamento espiritual os jogadores haviam discutido o impacto local do escândalo mundial. "Pelo que me disseram e pelo que ouvi em outros lugares, a essa altura muita coisa não mudou", ele afirmou.

    Alguns jogadores estavam agradecidos por não conhecerem detalhes adicionais. "Não sei o que está acontecendo", disse o zagueiro Austin King, "e não quero saber".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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