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    Corrupção no futebol

    Blatter diz que se sentiu nocauteado após prisão de dirigentes da Fifa

    MALCOM MOORE
    DO "FINANCIAL TIMES"

    30/10/2015 17h00

    Sepp Blatter gosta de começar o dia pouco antes das 6h. Não come no desjejum, mas toma uma xícara de café e dança um pouco, para se manter em forma. "Ritmo, o ritmo da vida é muito importante. No futebol também, mas em tudo mais", ele diz.

    No entanto, em 27 de maio, 15 minutos depois de acordar, sua rotina matinal foi interrompida por um telefonema. A polícia suíça, atendendo a solicitações do Departamento da Justiça dos Estados Unidos, havia invadido o hotel Bar-au-Lac, em Zurique, e prendido sete importantes dirigentes da Fifa, suspeitos de terem recebido mais de US$ 100 milhões em propinas.

    As detenções, que foram seguidas por uma nova ação policial, dessa vez uma revista à sede da Fifa nas colinas por sobre Zurique, surgiu em um momento no qual centenas de dirigentes de futebol estavam reunidos na Suíça para eleger o novo presidente da entidade. "Senti-me como um boxeador que está iniciando o 12º assalto e achando que vai ganhar. E então: BONG", diz Blatter, 79, imitando um nocaute.

    O efeito foi sísmico: embora a eleição tivesse acontecido como programado, dois dias mais tarde, e Blatter conquistado sua reeleição para um quinto mandato, ele renunciou na semana seguinte, afirmando que precisava "proteger a Fifa". Não foi o bastante. Os promotores públicos suíços o colocaram sob investigação e, em 8 de outubro, o dirigente foi suspenso de todas as atividades futebolísticas e forçado a deixar seu escritório na Fifa. Embora seja possível removê-lo fisicamente da sede da Fifa, separar o homem da organização que construiu à sua imagem pelos últimos 40 anos –primeiro comandando programas de futebol na África, depois se tornando secretário geral da entidade e por fim conquistando sua presidência– é uma proposição espinhosa.

    Encontramo-nos em um restaurante em Sonnenberg, que se descreve em seus materiais de divulgação como um "clube da Fifa", operado "sob a égide de nosso patrono Joseph S. Blatter", no qual "os fãs do futebol nos mundos dos negócios, política e esportes da Suíça se reúnem com convidados para almoços de negócios, jantares sofisticados e networking". Cheguei adiantado, mas Blatter já estava me esperando, conversando com o chefe de cozinha da casa, cuja jaqueta branca traz bordado o logotipo azul da Fifa. Fomos conduzidos a uma sala privativa de refeição, com vistas magníficas para vinhedos, a cidade e até o lago de Zurique, bem abaixo.

    Fabrice Coffrini - 30.mai.2015/AFP
    FIFA president Sepp Blatter looks on during a press conference on May 30, 2015 in Zurich after being re-elected during the FIFA Congress. Blatter said he was "shocked" at the way the US judiciary has targeted football's world body and slammed what he called a "hate" campaign by Europe's football leaders. AFP PHOTO / FABRICE COFFRINI ORG XMIT: FAB189
    Blatter cruza os braços durante Congresso da Fifa

    A porta se fecha por trás de nós e surge um silêncio incômodo. O homem que serviu por muitos anos como ímã para tantas acusações chocantes de corrupção e compadrio subitamente parece frágil, e ajeita nervosamente os seus talheres, esfregando as mãos. A verdade é que ele tem muita coisa para tirar do peito, e diversas granadas a arremessar contra o frágil processo que elegerá seu sucessor, mas é difícil saber por onde começar.

    Brindamos com taças de sauvignon blanc suíço, e pergunto como ele se sente agora que o fim parece estar à vista. Em fevereiro, ele deixará permanentemente a Fifa, depois de uma nova eleição presidencial. Algumas pessoas me disseram que isso seria uma crise existencial para Blatter, e deram a entender, soturnamente, que ele talvez não consiga suportar a saída. O dirigente admite sem contestar que é monomaníaco e não consegue, não pode, deixar de pensar na Fifa.

    Blatter vive sozinho em um apartamento em Zurique e trabalha em um escritório "muito pequeno", com uma mesa, computador, bola de futebol e foto do Monte Matterhorn na parede. "Lamento não poder voltar ao meu escritório [na sede da Fifa] porque minha sala [lá] era um pouco mais que um escritório; era o 'salon' no qual vivíamos", ele diz, em inglês arrevesado e com forte sotaque (Blatter se sente mais confortável falando alemão ou francês, mas também consegue se comunicar em espanhol e italiano.)

    Ele continua a acordar cedo, porém, e vasculha as notícias em busca de novos desdobramentos quanto à Fifa. "Respondo meu correio pessoal; recebo muita correspondência; estou acompanhando com muito cuidado o que acontece na sede da Fifa e em torno dela. Por enquanto, não tive qualquer possibilidade de pensar em tirar alguns dias de férias", ele afirma. "Estou acompanhando tudo. Não tenho como dizer que me desligo só por não estar mais no escritório. Porque minha memória é meu escritório", ele diz, cutucando a testa com um dedo.

    Um garçom entra trazendo um mimo do chefe de cozinha –pratos de salmão, pepino e caviar. Mas Blatter é alérgico a frutos do mar, ele diz, devolvendo o prato. "Eles sabem disso. Não sei por que servem esse prato". Blatter pede carne curada, que ele come com as mãos, acompanhada por pão.

    A conversa começa a fluir, e ele rapidamente identifica o momento em que os problemas da Fifa –e sua espiral de queda– começaram. "Está ligado àquela data agora famosa: 2 de dezembro de 2010", ele diz, se referindo ao dia no qual tirou o nome do Qatar do envelope, no anúncio da decisão sobre a sede da Copa do Mundo de 2022.

    "Se você visse minha cara ao abrir o envelope, era evidente que eu não estava feliz por anunciar o Qatar". A decisão causou indignação, mesmo entre as pessoas que não acompanham futebol. "Estávamos em uma situação na qual ninguém compreendia por que a Copa do Mundo estava indo para um dos menores países do mundo", ele diz.

    Philippe Desmazes - 2.dez.2010/AFP
    ´Futebol: o presidente da FIFA, Joseph Blatter mostra papel com o nome do Qatar, durante cerimônia de anúncio da sede para a Copa do Mundo de 2022, em Zurique (Suíça). *** (FILES) - A file picture taken on December 2, 2010 shows FIFA President Sepp Blatter holding up the name of Qatar during the official announcement of the 2022 World Cup host country at the FIFA headquarters in Zurich. FIFA president Sepp Blatter on May 15, 2014 said it was a mistake to choose Qatar in the Middle East to host the 2022 World Cup because of the country's searing summertime climate. AFP PHOTO / PHILIPPE DESMAZES ORG XMIT: FBL035
    O presidente da Fifa, Joseph Blatter, durante o anúncio da sede da Copa de 2022

    Em seguida, solta uma bomba: ele tentou manipular a escolha de modo a realizar a copa nos Estados Unidos, não no Qatar. Havia um "acordo de cavalheiros" entre os líderes da Fifa, ele me diz, para que as copas de 2018 e 2022 fossem para "as duas superpotências", Rússia e Estados Unidos. "Foi um acordo de bastidores. Havia um arranjo diplomático para que a copa fosse para lá".

    Se sua engenharia eleitoral tivesse dado certo, diz Blatter, "eu estaria em uma ilha [de férias]". Mas no último minuto o acordo caiu, por conta de "interferência governamental do Sr. Sarkozy", que segundo Blatter encorajou Michel Platini a votar no Qatar. "Uma semana antes da eleição, recebi um telefonema de Platini no qual ele disse que não estava mais no meu quadro, porque havia sido aconselhado pelo chefe de Estado a considerar... a situação da França. E ele também me disse que isso afetaria mais que o seu voto, porque ele controlava um bloco de votos".

    Blatter não comenta sobre possíveis motivações. Diz que só conversou com Sarkozy uma vez depois da votação, e não tocou no assunto. Admite que a votação quanto às sedes das copas do mundo, realizada por voto secreto do comitê executivo da entidade, sempre esteve aberta a "conluio". "Em uma eleição, nunca há como evitar esse tipo de coisa, é impossível... quando o grupo de eleitores é formado por apenas algumas pessoas".

    Um mês depois que o comitê executivo da Fifa, que tem 22 integrantes, votou por 14 a oito pela escolha do Qatar, o Estado árabe anunciou que havia começado a testar caças franceses Dassault Rafale contra aparelhos concorrentes, para a renovação da força aérea do país. Em abril de 2015, o Qatar adquiriu 24 Rafales por US$ 7 bilhões, com opção para compra de mais 12 caças.

    O garçom chega com a nossa "salada Fifa", uma mistura de alface da terra, croutons, lardon e ovos fatiados. "Essa é a salada da mama Blatter", diz Blatter, alegremente. "Sempre a preparamos com a verdura da estação, e você acrescenta croutons e um pouco de bacon".

    Ele vem da pequena cidade alpina de Visp (7,5 mil habitantes), a cerca de duas horas de carro de Zurique. Católico, ele planeja visitar a cidade no feriado do Dia de Todos os Santos, no final de semana. Seu pai era funcionário de uma indústria química, e Corinne, filha única de Blatter, continua a morar lá, lecionando inglês. Ele tem uma neta de 14 anos chamada Selena. Blatter admite que os problemas dele a abateram demais,. "Acho que ela está sofrendo mais do que eu", diz, indicando que prefere ignorar as críticas, enquanto sua neta as toma pelo lado pessoal.

    Quando pergunto a Blatter o que ele acha de Platini, ele para e oferece uma resposta diplomática, se bem que em tom forçado. "Platini foi um jogador excepcional. E é um bom sujeito. Poderia ser um bom sucessor, sim. No passado a previsão era a de que ele me sucederia".

    Jorge Adorno - 1º.mai.11/Reuters
    Blatter e Plantini durante visita à Conmebol
    Blatter e Plantini durante visita à Conmebol

    Platini continua na disputa pela presidência da Fifa, mas sua campanha foi para todos os efeitos tirada dos trilhos por efeito de sua suspensão, que aconteceu na mesma data da suspensão de Blatter, depois que foi revelado um pagamento de dois milhões de francos suíços depositados pela Fifa em sua conta bancária em 2011. "Não é necessário que um contrato seja escrito [...], nos termos da lei suíça", diz Blatter sobre o pagamento a Platini, acrescentando que nem mesmo testemunhas são necessárias. "Contratos firmados por um aperto de mão são válidos. Aqui na Europa Central o sistema não é o anglo-saxão".

    Ele está certo –a lei suíça acata contratos verbais -, mas lhe digo que não é assim que grandes empresas se comportam. "Mas nós somos um clube", ele responde. Quando rebato que o pagamento não foi contabilizado, ele encerra o assunto.

    Embora Blatter aprove, da boca para fora, a ideia de reformar a Fifa, afirmando que "precisa haver mais que umas poucas mudanças", continua a se manter adepto da cultura dos negócios fechados por aperto de mão, favores e acordos secretos que ele sempre encorajou. "O sistema não é errado", ele diz, acrescentando que se tivesse sido autorizado a manter a presidência, "estaríamos no caminho certo". Blatter acredita que seu sucessor não deveria tentar mudar aquilo que ele construiu.

    Pergunto-lhe sobre dinheiro, as imputações de propinas e corrupção que o afligem há anos. Blatter, ou pessoas trabalhando em nome dele, já distribuíram dinheiro para obter apoio de membros da Fifa?

    Ele invoca os pais, ao negar tudo. "Temos princípios, em nossa família. O princípio básico é só aceitar dinheiro pelo qual você tenha trabalhado. Segundo, não damos dinheiro a pessoa alguma para obter vantagens. Terceiro, se você tem dívidas, pague-as. São princípios que sigo desde os 12 anos", ele diz. "Por isso posso afirmar que minha consciência, no que tange a dinheiro, está totalmente limpa e tranquila".

    Ele é um homem rico? Não, responde Blatter, porque recebe só o que a Fifa lhe paga –soma que ele se recusa a divulgar porque a Fifa só divulga o valor que paga aos seus dirigentes como total; no ano passado, a entidade pagou US$ 39,7 milhões ao seu "pessoal administrativo chave".

    "O que faço com meu dinheiro? Minha filha tem um apartamento. Eu tenho um apartamento, um aqui e um lá. É tudo. Não gasto dinheiro só para mostrar que tenho. Se você considerar as pessoas mais ricas da Suíça, não estou nem perto dos três mil mais ricos, porque eles têm patrimônio de US$ 25 milhões ou mais".

    Xinhua
    Blatter observa dinheiro falso atirado por humorista durante coletiva
    Blatter observa dinheiro falso atirado por humorista durante coletiva

    O garçom volta com nossos pratos principais; uma costeleta de vitela surpreendentemente grande, para mim, e para Blatter carne cozida e uma julienne de legumes. Ele come devagar, revirando a comida no prato. "Tenho de dizer que não como muito, porque você não pode comer mais do que queima", ele afirma.

    Depois de uma pausa, ele delineia o que vê como suas duas maiores realizações na Fifa: o Projeto Gol, que envia milhões de dólares aos países mais pobres do mundo e estima ter construído mais de 700 instalações futebolísticas desde 1998, e a decisão de promover uma rotação da Copa do Mundo entre os continentes, e especialmente a de levar a copa para a África em 2010.

    Ele rejeita de imediato minha sugestão de que o dinheiro para desenvolvimento era só uma fonte de propinas para dirigentes corruptos. "Há uma percentagem, talvez 2% ou 3%, de projetos que não funcionaram".

    O sucesso dele em manter controle férreo sobre a Fifa depende em parte dos países africanos, que ele cortejou assiduamente. A sombra do colonialismo ainda persiste, e dirigentes do futebol africano muitas vezes sentem que os europeus os tratam como cidadãos de segunda classe. Blatter, em contraste, nunca vacilou em seu apoio ao futebol africano e trabalhou incansavelmente para levar a Copa do Mundo à África do Sul. Ele também conseguiu sucesso comercial: nos quatro anos que conduziram à Copa do Mundo de 2014 no Brasil, a receita total da Fifa foi de US$ 5,72 bilhões.

    Na visão de Blatter, ele criou um círculo virtuoso: a Fifa ajuda os jovens dos países em desenvolvimento a jogar futebol, ao construir campos, e depois se beneficia quando eles voltam para casa e assistem a grandes partidas na TV. Esse trabalho, ele insiste, não deve ser desfeito. "Minha reputação está maculada, porque sofri ataques amargos, fui responsabilizado por tudo. Mas isso não prejudicará meu legado". Em retrospecto, ele diz que talvez tivesse feito melhor se anunciasse sua renúncia ao final da Copa do Mundo de 2014.

    Quando lhe pergunto sobre o caso ISL, no qual foi revelado, em 2008, que uma agência de marketing esportivo fundada por Horst Dassler, da Adidas, havia desembolsado 138 milhões de francos suíços em propinas a importantes dirigentes da Fifa, Blatter se recusa a discutir o assunto. Ele foi considerado inocente de qualquer delito e, diz, o caso está encerrado, acrescentando jocosamente que "na lei norte-americana, você não pode ser condenado duas vezes pela mesma acusação".

    Menciono um caso dos Estados Unidos, em 2006, quando a Fifa teve de pagar US$ 90 milhões em indenização à Mastercard por descumprir um contrato a fim de assinar um acordo de patrocínio mais lucrativo com a Visa. "Não fomos muito espertos", admite Blatter. "Eu estava errado. Mas, às vezes, você comete erros porque estava trabalhando pesado. Não se pode enforcar alguém por isso".

    Ao tratarmos de questões espinhosas como seu patrimônio, ou a corrupção e segredos da Fifa, Blatter mantém a calma. Ele acredita ser mais vítima que vilão, e repete que tem pouco controle sobre o comitê executivo da Fifa, cujos membros não são indicados por ele mas pelas seis federações continentais de futebol.

    "Arrependimentos? Não tenho arrependimentos", ele diz. "O único arrependimento que tenho em minha vida de futebol é que sou um homem muito generoso em meus pensamentos, e acredito que as pessoas sejam boas - até o dia em que percebi que, na maior parte do tempo, terminei, digamos, enredado por essas pessoas. Você confia 100% em alguém e percebe que essa confiança toda era só para extrair alguma vantagem. Fiz isso não só uma vez, mas mais de uma vez. Tenho de arcar com esse peso, e vou arcar".

    Enquanto isso, ele critica severamente a Suíça por não protegê-lo. "Sou cidadão suíço, fui até soldado! Comandei um regimento de 3,5 mil pessoas. Servi meu país!", ele protesta, se referindo ao seu serviço nos anos 60 como coronel no comando de uma unidade de suprimentos do exército, durante a guerra fria.

    Hoje em dia, lhe restam poucos aliados. Ele diz poder contar nos dedos de uma mão os amigos a quem pôde recorrer, quando estava considerado renunciar depois de anos no comando do futebol. Blatter admite que sua reputação foi destruída. Mas não consegue parar. Continua a se orgulhar da obra de sua vida. "Será que alguém mais seria capaz de fazer o que fiz? Se a pessoa fosse tola a ponto de viver só para o futebol, talvez pudesse. Mas é difícil encontrar pessoas que se dedicaram ao jogo não só com o corpo e a mente, mas com o coração, com a alma. Foi o que eu fiz. E se você me perguntar o que pretendo fazer agora, continuarei a manter a mesma dedicação".

    Não pedimos sobremesa, só uma xícara de expresso e biscoitinhos em forma de bola de futebol. Blatter está aguardando ansiosamente a noite, quando sua namorada Linda Barras, 51, mãe de dois filhos, virá visitá-lo. Ela mora em Genebra, mas Blatter gosta da situação.

    "As distâncias não prejudicam o bom entendimento", ele diz. "Talvez seja até melhor para um cara que dedicou a vida ao futebol. Se você se dedica 100% ao trabalho e o trabalho é algo em que você realmente acredita, então obviamente, mesmo que você seja generoso, a pessoa que vive com você não terá como ser feliz", diz Blatter.

    Então ele se levanta, repentinamente pequeno e fraco uma vez mais, assina uma bola para o gerente do restaurante e desaparece em um Mercedes preto.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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