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    João Havelange (1916 - 2016)

    Como dirigente, Havelange enriqueceu Fifa e brigou com Pelé e Maradona

    DE SÃO PAULO

    16/08/2016 09h02 - Atualizado às 09h48

    O ano era 1982 e João Havelange, que morreu nesta terça-feira (16) aos 100 anos, no Rio de Janeiro, entrou no escritório responsável pela distribuição de ingressos para a Copa do Mundo da Espanha. Era 16 de junho, horas antes do confronto entre Inglaterra e França, pela primeira fase.

    Na sala do chefe da seção, ele abriu um mapa do estádio San Mamés, em Bilbao. Apontou o dedo para o setor mais nobre das arquibancadas.

    "Eu quero esses ingressos", ordenou, sem alterar o tom de voz.

    Impassível por fora, Havelange fervia por dentro. As entradas dos patrocinadores da Fifa eram atrás de um dos gols, sem proteção contra sol ou chuva.

    Quando o funcionário disse ser impossível, que todos os bilhetes estavam vendidos, o cartola não disse nada. Levantou-se, trancou a porta do escritório e colocou a chave no bolso.

    "Eu não preciso comer. Não preciso beber água. Não preciso cagar. Você não sai dessa sala enquanto não conseguir os ingressos que eu quero", deixou claro.

    Cronologia - Havelange

    Nos 30 minutos seguintes assistiu ao empregado telefonar freneticamente para arranjar as coisas do jeito que o mandatário da Fifa queria.

    Com a mesma fleuma e rudeza com que fez sua vontade prevalecer, em 1982, João Havelange comandou a Fifa entre 1974 e 1998.

    Antes de passar 24 anos à frente da Fifa, foi à Olimpíada de Berlim, em 1936, como nadador, e competiu no polo aquático dos Jogos de Helsinque-1952.

    Não conquistou medalhas, mas a experiência e os contatos lhe abriram portas para entrar na política esportiva.

    No comando da Fifa, enriqueceu a entidade e seus parceiros, envolveu a si e a Federação em escândalos de corrupção. Brigou e se reconciliou com Pelé. Morreu em litígio com Maradona. Colocou países asiáticos e africanos no mapa da Copa do Mundo. Quando assumiu, a competição tinha 16 equipes. Hoje, está com 32.

    O inchaço do Mundial foi o seu passaporte para a presidência da entidade. Seu pragmatismo e aliança com nações até então esquecidas pelos cartolas da Fifa lhe deram a vitória sobre o inglês sir Stanley Rous.

    Para conquistar o cargo, o ex-cartola utilizou todas as armas que tinha em mãos.

    Presidente da CBD (Confederação Brasileira de Desportos), arranjou uma partida do Atlético-MG, representando a seleção, com a Iugoslávia para zerar os jogadores da equipe europeia suspensos para a Eurocopa.

    Também cobrou cachê abaixo do normal para um amistoso contra a Tunísia e organizou em 1972 uma versão reduzida da Copa do Mundo, em que pagou valor acima do mercado para trazer ao Brasil seleções de países periféricos do mundo da bola.

    "Havelange está realizando uma campanha política como se estivesse disputando a presidência dos Estados Unidos", afirmou Rous, antes da derrota.

    Eleito, começou a distribuir dinheiro para federações menores. Algumas delas haviam garantido sua vitória. Flertou com um ainda embrionário marketing esportivo. Fechou contrato de patrocínio com a Adidas que dura até hoje. Horts Dassler, alemão dono da Adidas, foi o grande parceiro da era Havelange no poder. Primeiro com a fabricante de bolas e materiais esportivos. Décadas depois, com a ISL,empresa que mais rendeu denúncias de corrupção ao dirigente brasileiro.

    O empresário alemão se tornou mais do que patrocinador e passou a interferir na gestão do futebol. Em 1982, Dassler criou a ISL, agência de marketing esportivo que por 20 anos teve quase tanto poder quanto a própria Fifa.

    Desde 1998, a Copa tem 32 seleções, com arrecadação na casa dos bilhões de dólares.

    Havelange foi o único presidente não europeu da Fifa. Depois que o brasileiro assumiu, mais de 60 federações foram admitidas —são 208 membros. A ONU tem 193.

    Presidente da CBD de 1958 a 74, endividou a entidade com a campanha e usou jogos da seleção brasileira (tricampeã mundial) como moeda de troca política.

    De ascendência belga, e nascido Jean-Marie Faustin Goedefroid Havelange, nunca mostrou a menor intenção de proteger o Brasil na presidência da entidade.

    Em 1997, por ser contra a aprovação de Lei Pelé, que entendia contrariar interesses da CBF (presidida pelo genro Teixeira), ameaçou até tirar o Brasil da Copa de 1998.

    "Coitado do Havelange, ele está gagá", afirmou o então presidente Fernando Henrique Cardoso. A Lei Pelé foi aprovada. O Brasil disputou a Copa e perdeu a final.

    "Quero ser lembrado como um administrador", disse à Folha em 1998, seu último ano no comando da Fifa. "Porque é isso que eu sou."

    Imagem que começou a ser moldada em 1956, quando foi eleito presidente da CBD, embrião da CBF. Avalizou o inédito planejamento minucioso de preparação para o Mundial de 1958, que acabou com a conquista do primeiro título brasileiro. O plano havia sido montado pelo empresário das comunicações e também dirigente Paulo Machado de Carvalho.

    Em 1966, já brigado com Carvalho, Havelange assumiu sozinho o planejamento para o torneio na Inglaterra. O Brasil foi eliminado na primeira fase.

    Dócil ao regime militar que governou o Brasil a partir de 1964, sancionou que oficiais do SNI (Secretariado Nacional de Informação) espionassem os jogadores e tivessem até representantes na comissão técnica durante a Copa de 1970.

    Havelange brigou com astros, como Pelé e Maradona, por defender interesses comerciais da Fifa. O argentino reclamou dos jogos ao meio-dia na Copa de 1986 —exigência das emissoras de TV.

    Em 1990, juntou-se a torcedores para xingar o cartola. "É um jogador de polo aquático, então por que não vai ser presidente dessa federação, em vez de da nossa?"

    Havelange respondeu. "Maradona é algo sem nenhuma importância para a história do futebol". Em 1994, foi reeleito pela sexta vez à Fifa, enquanto o argentino foi flagrado no antidoping.

    Teve relação de aparências com Pelé, com brigas eventuais. Impediu o Atleta do Século de participar do sorteio dos grupos para a Copa de 1994. "Pelé não foi gênio. Foi apenas um jogador de futebol", disse ao seu biógrafo Ernesto Rodrígues.

    Os planos expansionistas de Havelange passavam por incluir as mulheres no jogo —algo que ele mesmo havia ajudado os militares a proibir no Brasil, na década de 1960.

    Em 1998, fez de Joseph Blatter seu sucessor. Havelange continuou como eminência parda da Fifa. Passou a ocupar o cargo de presidente de honra. Em 2013, acuado pelas denúncias de recebimento de propina da ISL, renunciou ao cargo.

    Três anos depois, em 16 de agosto de 2016, morreu no Rio de Janeiro, aos 100 anos.

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