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    João Havelange (1916 - 2016)

    Leia a primeira parte do especial de 1998 da Folha sobre João Havelange

    DE SÃO PAULO

    16/08/2016 11h00

    Em 1998, quando João Havelange deixou a presidência da Fifa, a Folha publicou um caderno especial sobre o homem que havia comandado o futebol mundial pelos últimos 24 anos.

    Chamado de "Era Havalange", o especial teve 12 páginas com histórias pouco conhecidas sobre o cartola mais importante do século 20.

    A reportagem também revelou correspondência secreta entre a Fifa e a empresa de marketing IMG, sobre a polêmica ligação da entidade com a ISL (International Sports Leisure), agência que detinha o monopólio dos direitos de publicidade e TV de todas as competições do futebol mundial. O escândalo acabou por ser o responsável por sua queda.

    Leia abaixo a íntegra do texto:

    *

    ERA HAVELANGE
    Folha conta as histórias secretas do cartola do século
    POR MÁRIO MAGALHÃES

    Corria a Copa da Espanha de 1982, mas um brasileiro terminou o dia irritado, indiferente ao futebol da seleção de Telê Santana que encantava o planeta.

    O carioca João Havelange recebera dos organizadores do Mundial 400 ingressos para os dirigentes da Fifa e os seus convidados ficarem atrás de um gol, e não na tribuna, no centro do estádio, como estipulava um protocolo assinado pela entidade e o Comitê Organizador do Mundial.

    Na manhã seguinte, Havelange, então com 66 anos de idade, foi ao escritório onde despachava o principal executivo da Copa, Raimundo Saporta.

    ''Cheguei lá eram 8h30, e ele não estava. Chegou às 9h, eu botei os ingressos na mesa dele e disse: 'Esses ingressos você guarda, não são para a Fifa. Eu quero 400 ingressos aqui'" _e aponta num desenho as tribunas na altura da linha central do gramado.

    ''Ele me disse: 'Não os tenho'. Eu disse: 'Um momento'. Fui à porta, fechei-a a chave. Fechei todas as janelas e disse a ele: 'Eu fico sem mijar, sem cagar, sem comer, sem dormir 72 horas. O senhor vai morrer, porque eu não vou deixá-lo sair daqui enquanto não vierem os ingressos'.''

    ''Ele era gordo e ficou ofegante'', conta Havelange. ''Eu disse: 'O problema agora é seu'. Fui e me sentei. 'Ah, o senhor telefona...', disse-me ele. 'Não, não sou seu empregado', respondi.''

    ''Saporta começou a suar, telefonar, telefonar, e 20 minutos depois eu tinha os 400 ingressos. Não adianta. O sujeito pode dizer que eu sou isso, aquilo. Eu nasci assim, vou morrer assim.''

    Hoje, 23 anos e 28 dias depois de bater o inglês Stanley Rous por 68 a 52 votos, na maior batalha política da história do esporte, João Havelange saberá quem o sucederá na presidência da Fifa depois que entregar, em 12 de julho, o troféu ao campeão da 16ª Copa do Mundo. A saída pode ser postergada por dois anos, caso ele assuma um mandato-tampão, hipótese surgida na semana passada.

    A única semelhança da Fifa (Federação Internacional de Futebol Association) atual com a que Havelange herdou de Rous é o número do item da pauta do congresso em que ocorrerá a eleição do novo presidente: o 13, talismã do técnico da seleção brasileira de 1974 e 1998, Mario Zagallo.

    Dos menos de US$ 20 que tinha em caixa, a Fifa ostenta hoje um patrimônio de US$ 100 milhões, US$ 500 milhões para gastar só na Copa que começa quarta-feira e US$ 4 bilhões a embolsar nos próximos dez anos.

    A maior multinacional do mundo, na definição do seu próprio presidente, comanda um esporte que movimenta anualmente, de acordo com estudo da entidade, US$ 260 bilhões, emprega direta e indiretamente 400 milhões de pessoas (perto de 6,6% da população mundial) e tem o seu principal evento, a Copa do Mundo, assistido por um público acumulado de 37 bilhões de telespectadores.

    Na Era Havelange, não só a vida do futebol e a da Fifa mudaram _a do cartola do século também.

    Do empresário que meses antes de assumir a Fifa pedia empréstimos para uma empresa da qual era sócio e escrevia a um amigo sobre ''compromissos muito elevados a cumprir'', Havelange tem hoje uma vida financeiramente estável.

    Tanto que lhe foi possível dedicar-se integralmente, entre a final da Copa da Alemanha-74 e a da França-98, a um cargo que não rende sequer um centavo ao ocupante, por não ser remunerado.

    O brasileiro que mais vezes foi recebido por chefes de governo e de Estado, mais influenciou a política em questões como a reintegração plena da China à comunidade internacional e conduziu o futebol à posição de setor de maior crescimento na indústria de entretenimento mundial costuma ter a vida narrada em biografias oficiais, quase sempre pedidas por amigos.

    A seguir, a Folha conta como Havelange passava por dificuldades financeiras às vésperas da vitória contra Stanley Rous, como mantinha um caixa dois na Orwec Química e Metalurgia Ltda. e como a antiga CBD (Confederação Brasileira de Desportos) teve um prejuízo milionário em 1972, quando o seu então presidente fazia campanha à Fifa.

    A Folha teve acesso à correspondência completa entre a Fifa e a empresa de marketing IMG, sobre a polêmica ligação da entidade com a ISL (International Sports Leisure), agência que detém o monopólio dos direitos de publicidade e TV de todas as competições do futebol mundial.

    Documentos com carimbos de ''secreto'', ''confidencial'' e ''reservado'', obtidos em arquivos mantidos pelo regime militar (1964-85), mostram que, ao contrário do que apregoam os rivais de Havelange, sua convivência com os militares foi acidentada.

    O mesmo presidente Ernesto Geisel (1974-79) que sustentou posições contra a China na Organização das Nações Unidas não teve obedecida por Havelange a ordem de barrar a entrada do país na Fifa.

    Os arquivos da repressão no Rio e em São Paulo também permitem mostrar, pela primeira vez, que desde a década de 30 o futebol e seus personagens foram vigiados por diferentes governos.

    Uma das mais ruidosas rupturas do presidente da Fifa com Pelé, um dos poucos brasileiros que o superaram no exterior em fama no século 20 tem agora detalhes revelados, graças a documentos e gravações mantidos em sigilo.

    Havelange apresenta versões inéditas sobre episódios marcantes do futebol nacional, como a demissão do comunista João Saldanha do cargo de técnico da seleção, às vésperas da Copa de 1970.

    Mais: conta que o presidente João Goulart (1961-64), antes do Mundial de 1962, convocou-o para escalar a seleção que tentaria e viria a conseguir, sem os palpites de Jango o bicampeonato.

    A investigação da história de Havelange derruba versões que até hoje foram tidas como verdadeiras por amigos e inimigos seus.

    Não é verdade, como dizem seus detratores, que Havelange, na origem um dirigente de natação e pólo aquático, não goste de futebol.

    Campeão carioca juvenil em 1931 pelo Fluminense, jogando como beque pela esquerda, ele foi obrigado pelo pai a abandonar o futebol, uma das paixões do então jovem tricolor, porque a família considerava a natação um esporte mais adequado ao seu perfil social.

    Ao contrário do que sustentam os seus defensores, Havelange não é o dono da Viação Cometa, nem foi trampolim para a ascensão do futebol brasileiro em seus anos de Fifa. Antes de sua posse, em dez Copas o Brasil ganhou três (30%). Depois, em cinco, uma (20%).

    Dos cinco Mundiais em que era o presidente da CBD, Havelange esteve presente em 1966 e 1974 _duas derrotas. Nos anos do tri (1958, 1962 e 1970), ficou no Brasil.

    O homem mais poderoso que qualquer esporte já teve também colheu insucessos. Não conseguiu dar ao seus amigos japoneses a exclusividade da Copa de 2002, repartida com a Coréia do Sul, e naufragou com o Rio na candidatura a sede da Olimpíada de 2004.

    Mesmo com a hipótese de Havelange se retirar completamente e deixar de ter qualquer influência no esporte, o que não é o seu plano, todos os contratos da Fifa até 2008, incluindo bilionários acordos de marketing e TV para os Mundiais de 2002 e 2006, terão sido assinados em sua gestão.

    Neles, como em todos os seus cheques e documentos emitidos no Brasil, está a assinatura ''J. Havelange'' ou ''João Havelange'', as duas que os cartórios reconhecem, apesar de, há 82 anos, o seu nome verdadeiro, nunca mudado legalmente, ser Jean-Marie Faustin Godefroid Havelange.

    No fichário geral do Dops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) de São Paulo, a ficha ''50-Z-O-12531'', sem data nem assinatura, trata de um assunto um tanto estranho a um dos organismos que, no regime militar, encarregaram-se de alimentar com informações o combate aos focos de subversão de esquerda, em especial a grupos guerrilheiros.

    Na íntegra, eis o texto de um informante, obtido pela Folha graças ao esforço de pesquisadores coordenados pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, da USP (Universidade de São Paulo): ''A equipe de futebol do Santos Futebol Clube esteve em Paris para uma partida com o combinado Saint-Étienne-Marseille (fazendo péssima figura por sinal). Lá, muita coisa desagradável aconteceu, principalmente no terreno político-ideológico, e sem nenhuma providência prática, inclusive do senhor João Havelange, que só procurou fazer 'média', porque quer ser presidente da Fifa''.

    Descartando as observações do agente sobre o desempenho do Santos de Pelé e o comportamento dos jogadores (provavelmente referência a alguma farra), sobra no relatório a censura a Havelange, que acompanhava a delegação.

    O jogo, um 0 a 0 tedioso, ocorreu no dia 31 de março de 1971, segundo o historiador oficial do Santos, Francisco Mendes Fernandes.

    Já no começo da década de 70, o então presidente da CBD não era visto com entusiasmo pelas Forças Armadas e pelos organismos da repressão, embora o título no México tivesse sido usado fartamente em campanhas ufanistas.

    Nos primeiros anos, foi pacífica a convivência entre João Havelange e os militares, como se vê no caso da proibição do futebol às mulheres, porque o esporte lhes seria fisicamente danoso.

    Nos anos 90, o dirigente iria alardear, com orgulho, a implantação do futebol feminino em 103 países filiados à Fifa, com 40 milhões de atletas, e o início do Mundial e do torneio olímpico.

    Em 1965, contudo, quando ainda havia espaço relativo para opiniões divergentes das oficiais o Ato Institucional número 5, endurecendo de vez o regime, só sairia em fins de 1968, Havelange aceitou passivamente a deliberação número 7 do Conselho Nacional dos Desportos sobre ''a prática de desportos pelas mulheres''.

    Sintético, o artigo 2º da resolução, aprovada em sessão do CND presidida pelo general Eloy Massey Oliveira de Menezes, dizia: ''Não é permitida a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo aquático, pólo, rúgbi, halterofilismo e beisebol''.

    A CBD, dirigida por Havelange desde 1958, não controlava só o futebol, mas 23 esportes, inclusive os proibidos às mulheres.

    Muito do atraso e da falta de competitividade do futebol feminino brasileiro, sem medalha na Olimpíada de Atlanta-96, deve-se à hoje revogada ordem de 1965.

    Na Copa de 1966, a primeira em que decidiu chefiar a delegação, apostando num triunfo na Suécia-58 e no Chile-62, entregara a função a Paulo Machado de Carvalho, Havelange ainda teve controle da seleção, o qual perderia para os militares no México-70.

    Numa tentativa de acomodação política com diversos Estados, 44 jogadores começaram uma desastrosa preparação para o Mundial da Inglaterra, no qual o Brasil foi eliminado após ganhar só uma vez e ser derrotado duas, por Hungria e Portugal, em duplo 3 a 1.

    A Copa de 1970, porém, não poderia ser perdida, porque o vôo que João Havelange programava já ia muito além da CBD.

    No livro ''Jovem Havelange'', editado em 1995 pelo presidente da Federação Paulista de Futebol, Eduardo José Farah, Havelange afirma que o locutor Oduvaldo Cozzi foi o primeiro, em 1963, a lhe sugerir a presidência da Fifa.

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    Anos 10
    Joseph e Juliette noivam e casam
    Após cinco meses de noivado, Joseph Faustin Godefroid Havelange casa-se com Juliette Ludivine Calmeau, em 14 de janeiro de 1913. O casal troca Liège, na Bélgica, pelo Rio de Janeiro.

    Nasce no Rio o segundo filho
    Jean-Marie Faustin Godefroid Havelange nasce no dia 8 de maio de 1916. Mais tarde adotaria o nome João, não oficialmente. Os Havelange tiveram dois outros filhos: Júlio, o primogênito, e Helena.

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    ARTICULAÇÃO PARA CANDIDATURA À PRESIDÊNCIA DA FIFA DECOLA COM O TRI

    Conforme o relato oficial de Havelange, só em 1971, quando os presidentes das federações argentina e uruguaia pediram-lhe autorização para lançar sua candidatura, ela passou a ser considerada.

    A Folha apurou, no entanto, que em outubro de 1968, em Guadalajara (México), uma articulação pró-Havelange, no mínimo com o seu conhecimento, já reunia a maioria dos países americanos, inclinados a lançá-lo já em 1970.

    A candidatura contra Stanley Rous, à frente da Fifa desde 1961, só não foi adiante porque ainda não tinha chances de vencer.

    Com o eventual tricampeonato transformado em pedra fundamental da plataforma à Fifa, no começo de 1969 Havelange toma uma decisão que, pela ousadia e impacto, entra para a história.

    Calando quase todas as vozes que, desde 1966, faziam-lhe oposição ruidosa, convida o jornalista esportivo João Saldanha para ser o técnico da seleção. Numa resposta antológica, ao receber a mensagem do presidente da CBD, o gaúcho Saldanha diz: ''Topo!''.

    Documentos confidenciais da polícia política elaborados desde a década de 40 e até hoje inéditos, obtidos pela Folha no Rio, permitem saber quem era, aos olhos do regime militar, o cidadão João Alves Jobim Saldanha.
    Em 6 de maio de 1964, cerca de um mês depois do movimento que depôs o governo João Goulart, o Dops enviava, a pedido das novas autoridades, e com expediente número 2.034, a ficha de Saldanha.

    Titular do prontuário 12.365 do antigo Departamento Federal de Segurança Pública, Saldanha foi preso pela primeira vez em 3 de agosto de 1947, acusado de ser o secretário de divulgação do então banido Partido Comunista do Brasil, do qual era de fato militante.

    Nessa data, aos 30 anos, Saldanha tira fotos de frente e de perfil e é obrigado a imprimir as digitais dos dedos. Dorme na cadeia e, no dia seguinte, é libertado. (Até hoje as impressões e as fotos estão arquivadas, em ótimo estado).

    Quando foi chamado para assumir a seleção, frustrando o treinador do Botafogo-RJ, Zagallo, que esperava ser o escolhido, Saldanha continuava comunista, clandestinamente, num país em que o governo fazia do combate às organizações de esquerda sua prioridade.

    A investigação da Folha nos arquivos dos órgãos de repressão demonstra que, desde a ditadura do Estado Novo (1937-45), parte final do primeiro governo Vargas (1930-45), o futebol é alvo constante de espionagem política.

    Originalmente, a repressão considerava os clubes de futebol e as aglomerações nos estádios espaços favoráveis à agitação dos comunistas, então na ilegalidade.

    Depois, no regime militar, os relatos dos ''arapongas'' beiraram o delírio, como nas análises sobre transmissões de rádio, em 1975, último ano de Havelange à frente da CBD, cargo do qual foi afastado pelo presidente Ernesto Geisel.

    Em 15 de maio de 1975, a agência Rio de Janeiro do SNI (Serviço Nacional de Informações), órgão ligado à Presidência da República, produz o informe 013/16/75. Assunto: ''incitamento de público no Maracanã''. O documento analisa comentários de Mário Vianna sobre arbitragem na rádio Globo.

    ''Durante a realização de jogos no estádio Mário Filho (Maracanã), os comentários agressivos, e por vezes ofensivos, promovidos pelo comentarista de arbitragem da rádio Globo, sr. Mário Vianna, vêm provocando na massa de torcedores reações descontroladas "que" normalmente culminam em distúrbios de médias proporções, chegando a agressões indiscriminadas "e" à destruição das instalações do estádio'', afirma.

    ''Item 2: consta que essa provocação subliminar tem como criador e orientador o comentarista esportivo João Saldanha, elemento ligado às esquerdas e defensor da ideologia comunista, o qual "Saldanha" se utiliza do locutor Mário Vianna, elemento inculto incapaz de compreender que está sendo utilizado para outros propósitos, mas que, com sua linguagem rude e grosseira, sem dúvida alcança, através dos rádios de pilhas dos torcedores, a fácil comunicação com o alvo desejado, o público presente'', continua o informe.

    Um relatório de 8 de julho de 1975, ''confidencial'' e arquivado na Delegacia Geral de Investigações Especiais, também fala dos comentários de Saldanha: ''Consta que o objetivo final é formar um clima de histeria coletiva tal que, no dia de grande jogo, não será difícil o desencadeamento de um grande tumulto cujos resultados imprevisíveis poderão gerar uma catástrofe semelhante às ocorridas em outros estádios do Brasil''.

    Esclarecimento: o que havia de mais subversivo naquelas transmissões era o bordão com que Mário Vianna apontava equívocos do árbitro nas partidas: ''Errrrrou!''.

    O Saldanha espionado pelos militares seria o técnico de Havelange nas eliminatórias para a Copa de 1970. E não faria má figura.

    Hoje, Havelange diz não ter sido o autor da idéia de chamar Saldanha. ''Eu e João fomos moleques juntos, jogamos futebol juntos. Não faço política. Se ele era isso ou aquilo, não me interessa.''

    ''Não fui eu que o convidei. Quem o convidou foi o Antônio do Passo "dirigente da CBD responsável pela seleção", a quem eu disse: 'Gosto muito do João, mas ele vai te dar dor de cabeça'.''

    No início, nem tanto. Correndo o Brasil para divulgar suas ''feras'', como chamava os jogadores, Saldanha ganha mais popularidade.

    Nas eliminatórias para a Copa, de 6 a 31 de agosto de 1969, com 6 vitórias em 6 partidas, 25 gols marcados e 2 sofridos, a seleção de Pelé e Tostão entusiasma o país.

    No início de 1970, a situação de Saldanha começa a claudicar. Bebendo muito, conforme testemunhos, ele espalha que Pelé está com graves problemas de visão, o que inviabilizaria a sua ida à Copa.

    Ao saber que o técnico Yustrich o criticara, Saldanha vai à concentração do Flamengo, armado, prometendo matá-lo. Às escondidas, jogadores disse um deles falavam que Saldanha estava maluco.

    Em qualquer lugar do mundo e em qualquer época, a menção ao corte de Pelé, o maior jogador do planeta, bastaria para um técnico cair, com ou sem regime militar.

    Não era só isso: ''Em público, o Saldanha vivia a falar mal do Havelange, até na frente do Antônio do Passo'', lembra o jornalista espanhol radicado no Rio Hans Henningsen, celebrizado pelo dramaturgo Nelson Rodrigues como o ''Marinheiro Sueco''.

    Havelange conta a sua versão: ''Ganhamos de 1 a 0 do Bangu "jogo-treino", e fiquei preocupado. Saí dali, peguei meu carro e fui para a concentração no Retiro dos Padres, em São Conrado "zona sul do Rio". Eu cheguei, todo mundo tinha saído, chegou o João''.

    ''Eu disse: 'Olha, João, eu queria conversar contigo sobre as coisas, como elas se passam...' 'Não, chegou um material da Adidas, eu vou te mostrar', ele disse. Tirou a roupa, se vestiu, 'vê que coisa fantástica'. Eu disse: 'Quero conversar contigo...' Saldanha: 'Não'.''

    ''Eu digo: 'Tá bom. Você não quer conversar. Passe dia tal no meu escritório, às 10h'. Na reunião, ele se sentou, e eu disse: 'Antônio do Passo, me diga tudo o que você disse sobre João Saldanha'. Ele falou. Eu digo: 'Então, João, não vamos mais continuar, a comissão está dissolvida'.''

    ''Eu disse então ao Antônio do Passo: 'Às 17h, eu quero um nome aqui'. Quando terminou, ouvi o João aos berros, no corredor. Eu abri a porta e disse: 'Você ainda está sob contrato da CBD. Se o senhor quiser gritar, o senhor desça, faça na rua e diga o que o senhor quiser'. E foi assim.''

    ''Eu queria o Dino Sani, que era meu amigo, casado com uma senhora professora, um casal fantástico, ele tinha sido meu jogador na Copa de 58'', prossegue Havelange. ''Ele me disse: 'João, não posso, estou isso, assim, assim'. Aí, eu disse ao Passo: 'Me traz um técnico!'. E ele me deu o Zagallo.''

    Ao chegar à calçada do edifício João Havelange (o prédio já levava o nome do presidente da CBD), Saldanha divulga a versão que se perpetuaria como o motivo da sua demissão: o presidente Emílio Garrastazu Médici (1969-74) pedira a convocação do atacante Dario, e Saldanha teria respondido: ''O senhor escala o seu ministério, e eu escalo o meu time''.

    Até hoje não apareceu uma só testemunha de tal diálogo. O general Médici, chefe do governo que mais oponentes políticos torturou no país, era um fã do futebol.

    O presidente elogiara publicamente Dario, futuro Dadá Maravilha, que viria a ser um dos cinco maiores artilheiros do Brasil.

    Zagallo, depois, levou Dario ao México, escolha sustentável do ponto de vista técnico, mas o jogador não atuou nem um minuto.

    Rejeitado pelos militares, Saldanha foi demitido por motivos futebolísticos, porque Havelange queria ganhar a Copa. Uma das figuras mais fascinantes que o esporte e o jornalismo brasileiro conheceram, Saldanha transformou sua saída num caso político, acrescentando ''detalhes'', com fértil imaginação, até morrer, em 1990.

    ''Minha saída da seleção nada teve a ver com Pelé'', disse, em palestra a estudantes da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio), em setembro de 1978, segundo o informe 213-20 produzido pela PM-2, o serviço secreto da Polícia Militar do Rio, e enviado para a 2ª Seção do 1º Exército.

    O relatório cita a fala de Saldanha: ''Eu disse ao presidente que ele se metesse com o time dele na política que eu cuidava do meu no futebol. Aí, ele me derrubou. Como eu não pude derrubá-lo, perdi''.

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    Anos 20
    Aos 5 anos, a escola primária
    João Havelange ingressou na escola primária ao mesmo tempo que o irmão mais velho, Júlio. Aos 15 anos, concluiu os estudos secundários. Aos 20, tornava-se bacharel em direito.

    Futebol atrai o adolescente
    Entre a infância e a adolescência, Júlio e João Havelange foram escoteiros. O pai, sócio do Flamengo e depois do Fluminense, estimula os três filhos a nadar. O futebol já atrai o garoto João.

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    A seleção que conquistou o tri em 1970, com o ''cego'' Pelé escolhido o melhor da Copa, foi, em campo, um paradigma histórico do talento do futebol brasileiro.

    Fora de campo, mostrou-se um retrato da sua época: a chefia da delegação ficou com o major-brigadeiro Jerônimo Bastos, a segurança com o major Ipiranga dos Guaranys, e a comissão técnica teve militares como Cláudio Coutinho, Raul Carlesso e José Bonetti.

    Eles mandavam, não Havelange, que ficou no Rio, de onde sairia para a campanha rumo à Fifa ancorado na imagem de presidente da confederação tricampeã.

    A militarização da seleção, que duraria até 1978, na Argentina, foi menos uma vontade de Havelange do que uma imposição do governo, para o qual o triunfo futebolístico era politicamente importante.

    Sabe-se que foram produzidos relatórios para órgãos de informação sobre a seleção. A abertura de arquivos militares permitiria saber o quê e quem, de dentro da delegação, escreveu sobre a equipe.

    Após demitir Saldanha, Havelange vai a Brasília no dia 19 de março de 1970, convocado pelo ministro da Educação, coronel Jarbas Passarinho. Passa 2 horas e 13 minutos com o ministro, que pede um relatório sobre a seleção.

    Passarinho requisita também cópias de uma entrevista de Saldanha exibida na véspera, à noite, na TV, criticando o governo.

    Em seguida à reunião com o ministro, misteriosamente, Havelange vai à sede do SNI, sem esclarecer o objetivo da ''visita''.

    O balanço da participação dos militares na seleção, bem como o de Havelange no esporte brasileiro e mundial, é contraditório.

    O jornalista Sandro Moreyra dizia que major Ipiranga dos Guaranys, ''com sua truculência'', ''iniciou o afastamento'' entre atletas da seleção e repórteres, dificultando o trabalho jornalístico.

    Mas a preparação física para a altitude do México em 1970, com a contribuição decisiva do capitão Cláudio Coutinho, depois técnico da seleção em 1978, é considerada mundialmente, até hoje, como a melhor já feita para uma Copa.

    A imagem dos militares colou-se tanto à da seleção que muitos crêem que Carlos Alberto Parreira, preparador físico auxiliar em 1970 e técnico em 1994, surgiu na caserna, o que não é verdade.

    Fortalecido com o triunfo na México, Havelange decola o projeto Fifa bolando uma espécie de Mundial, a Minicopa, no Brasil em 1972. Programado como evento central das comemorações dos 150 anos da Independência, recebeu o nome de Taça Independência.

    O balanço financeiro da Minicopa, e não o esportivo, viria a ser determinante para o afastamento de Havelange da CBD.

    Vinte seleções participaram da Minicopa, boicotada pelos principais países europeus (Inglaterra, Itália e Alemanha), que qualificaram a iniciativa de ''eleitoreira''.

    Com pouco brilho, o Brasil vence, já sem Pelé, que não acertara com Havelange o valor de premiações e seguia jogando no Santos.

    Utilizando a seleção como instrumento de campanha, a CBD cobra US$ 15 mil por amistosos na Europa e paga US$ 25 mil para trazer a Venezuela à Minicopa, assegurando mais um voto na Fifa.

    Em 1972, o balanço da CBD apresenta prejuízo de CR$ 15.736.071,20 (mais de US$ 10 milhões atuais), quase o valor do prédio da CBD construído em 1966, na gestão Havelange, e até hoje sede da CBF no centro do Rio.

    O então diretor-financeiro da CBD, Tarso Herédia de Sá, diz que a Taça Independência custou CR$ 31 milhões à entidade, que recorre a empréstimos bancários.

    O parecer do Conselho Fiscal, controlado por Havelange, à assembléia geral diz que ''a projeção internacional da CBD nos últimos anos tem imposto à diretoria uma política financeira agressiva''. Em outras palavras, gastos com a campanha de Havelange à Fifa.

    Cresce a insatisfação do governo com a rolagem de dívidas da CBD com instituições financeiras públicas. Em junho de 1973, Maurício Toledo (Arena, partido do governo), deputado federal por São Paulo, pede à Câmara a abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o prejuízo na CBD.

    Na entidade, tudo passa a girar em torno da campanha da Fifa. Em novembro, o boletim da CBD publica 17 fotos de Havelange.

    Em 1974, o general Ernesto Geisel assume a presidência com a promessa de abertura lenta e gradual da vida política. Aconselhado por assessores e amigos do Rio, particularmente por um militar conhecido pelo apelido de Cacau, o general Barros Nunes, Geisel se afasta de João Havelange.

    Depois da vitória na Fifa, em 11 de junho de 1974, Havelange tenta se manter também presidente da CBD, mas há veto do governo. No dia 2 de dezembro, atende ao chamado do ministro da Educação, coronel Ney Braga, e vai a Brasília.

    Volta derrotado para o Rio, sabendo que o novo presidente da CBD será o almirante Heleno Nunes, irmão de Cacau e do ministro da Marinha do governo Médici, almirante Adalberto Barros Nunes.

    Pelo menos até a saída da CBD, em 10 de janeiro de 1975, Havelange foi espionado pelo regime militar. Em 22 de abril de 1980, contudo, a 1ª Região Militar do Ministério do Exército pede ao Dops do Rio as pastas sobre Havelange.

    Nunca mais os documentos voltariam para ficar ao lado de pastas com registros sobre João Saldanha e centenas de entidades (Flamengo, Comitê Olímpico Brasileiro etc.) e personalidades do esporte.

    Sobraram duas cópias da requisição do Exército e uma reportagem simpática a Havelange publicada por um jornal do Rio, então propriedade de um político.

    Coincidentemente, quando o Exército ''limpa as gavetas'' de Havelange nos arquivos, ele já havia se recomposto com o regime.

    O presidente, em 1980, é o general João Figueiredo (1979-85), seu antigo conhecido, também torcedor do tricolor das Laranjeiras.

    Simpático, Havelange faz o Fluminense dividir entre ele, já no cargo simbólico, e Figueiredo a presidência de honra do clube.

    ''O Fluminense tinha dois presidentes de honra: o príncipe de Gales e Getúlio Vargas. Comigo, eu fiz o João, que jogou no clube, um homem formidável, de cavalaria'', afirma Havelange.

    À questão sobre se sabia que os órgãos de informação o espionavam, o presidente da Fifa respondeu à Folha: ''Jamais! Posso lhe garantir. Quem não gostava de mim eram determinados generais que andavam ao lado do presidente Geisel, mas nem tomei conhecimento. Quem é que não queria se sentar no meu lugar depois de ganhar três Copas na CBD?''

    O testemunho final sobre a queda de Havelange da CBD foi colhido por um ''araponga'' na palestra de João Saldanha na PUC-RJ, em 1978: ''O presidente da CBD "Heleno Nunes" é um homem de bem, porém ingênuo. Foi lá colocado pelo presidente da República "Geisel", que botou o Havelange para fora e colocou o Heleno Nunes no seu lugar'', disse Saldanha.

    Os incômodos da família Havelange com os militares antecediam ao regime de 1964. O belga Joseph Faustin Godefroid Havelange, pai do presidente da Fifa, morreu em 1934, após um derrame causado pela tensão com concorrências para o fornecimento de armas.

    ''Meu pai tinha representações "de fábricas de armas", foi um homem que ganhou bastante dinheiro, mas não era rico. No dia em que ele faleceu, eu tinha 18 anos e tive que começar do zero. Meu pai representava a Fabrique Nacional de Armes de Guerre, e o governo brasileiro abriu uma licitação para fornecer mosquetões.''

    ''Ele apresentou a proposta e ganhou. Anularam, em 1932. Seis meses depois, ele ganhou, foi indo, foram quatro vezes, anularam o fornecimento, e meu pai na última ganhou. Voltou para casa, sentiu-se muito mal, teve um derrame, ficou 90 dias numa cama.''

    ''Ele voltou a si três vezes, estava ao lado dele. Mandei vir um médico da França, ele veio, ficou na porta do quarto, me olhou e disse: 'Amanhã, seu pai já não terá mais vida'. Eu jogava 'water polo' "pólo aquático" e tive vontade de dar nele. Mas não disse nada. No outro dia, meu pai estava morto.''

    Um brasileiro que observa Havelange há mais de 30 anos acha que a raiz da determinação, da dureza e do pragmatismo do chefe do futebol mundial, um homem que raramente sorri, está na educação paterna e nas circunstâncias que levaram Joseph Faustin à morte.

    A partir dos anos 90, Havelange passa a contar uma história espetacular, que, estranhamente, não costumava ser comentada entre os seus amigos na casa do Cosme Velho, na zona sul do Rio, onde a família morava nos anos 30.

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    Anos 30
    ítulo no juvenil do Fluminense*
    Jogando como beque pela esquerda (na época, não havia laterais), aos 15 anos João Havelange é campeão com o time juvenil do Fluminense. Na campanha, a equipe só perdeu uma vez.

    A morte do pai, em 1934
    Joseph morre sem ver o segundo filho em uma Olimpíada. Júlio foi aos Jogos de 1932, em Los Angeles (EUA); João competiria em 1936, em Berlim (Alemanha). Nenhum dos Havelange chegou a uma f*inal.

    Na natação, vence travessia
    Em 1935, como atleta do Fluminense, do Rio, conquista sua primeira vitória na Travessia de São Paulo a Nado, no rio Tietê. Repetiria o feito em 1936. Em 1943, venceu dividiu o título com Vitório Fi*lellini.

    Dirigente no Botafogo, do Rio
    Em 1937, Havelange passa a coordenar o departamento de pólo aquático do Botafogo, do Rio de Janeiro. Ele permaneceu no cargo até 1940, quando se mudou para São Paulo, a trabalho.

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    DIZ QUE O PAI SE ATRASOU E, POR ISSO, ESCAPOU DO NAUFRÁGIO DO TITANIC

    ''Se não fosse isso, não estaria aqui agora, dando essa entrevista para o senhor'', diz Havelange.

    O ''isso'' trata-se do seguinte: depois de se formar engenheiro de minas no começo do século, Joseph Faustin trabalhou no Congo, mudando-se a seguir para o Peru, onde lecionou na Universidade de San Marcos e vendeu armas. No início da década de 10, ele volta para Liège (Bélgica), onde nasceu.

    Passa uns tempos e decide sair definitivamente do Peru, onde tinha deixado negócios em aberto. Era preciso viajar para resolvê-los.

    Faustin comprou um bilhete para o maior navio já construído, que sairia do porto de Southampton, na Inglaterra, no dia 10 de abril de 1912, rumo a Nova York, escala do comerciante para o sul da América. O navio era o Titanic.

    Organizado e severo consigo, austero e disciplinado, traços que Jean-Marie, o segundo dos três filhos, herdaria, Joseph Faustin teria se atrasado no caminho entre Liège e Southampton, perdendo a viagem inaugural da embarcação.

    Quatro dias depois de zarpar, meia hora antes da meia-noite, o Titanic bateria num iceberg. O naufrágio causou a morte de mais 1.500 passageiros no Atlântico.

    Joseph Faustin se casaria no começo de 1913 com Juliette Ludivine Calmeau, conterrânea de Liège, e se muda para o Brasil, onde recomeça a vida vendendo armas e munição numa loja na esquina da rua da Alfândega com a Miguel Couto, a poucos metros de onde seria erguida a atual sede da CBF.

    No andar de cima da loja, no dia 8 de maio de 1916, nasce o futuro presidente da CBD e da Fifa.

    O primeiro dos filhos foi Jules, depois Júlio, o segundo Jean-Marie, o João, e o terceiro uma jovem muito bonita de nome Helena, que viria a se tornar quando adulta a secretária do irmão do meio.

    Uma história, contada por Havelange, mostra como foi educado. Num passeio a uma fazenda, descontente com as notas do filho que acabara de ver no boletim, Joseph Faustin obrigou João a fazer um percurso de quilômetros a pé, enquanto a família seguia a cavalo.

    O veto a cavalgadas, um dos prazeres do garoto, seria prolongado. Ao ver que o marido ameaçava recuar no dia seguinte, deixando passar quase em branco uma falta considerada grave, a mãe de Havelange falou: ''Se foi castigado, tem que cumprir o castigo''. Tudo em francês, o idioma doméstico.

    No leito de morte, em 1945, Juliette pediu ao filho: nunca deixar de visitar parentes na Bélgica, onde há uma cidade chamada Havelange, terra de seus antepassados.

    ''Até hoje, todo ano, nas vésperas do Natal, e eles são 50, 60 pessoas, eu procuro reuni-los num almoço, come-se muito bem, eu fecho o negócio "restaurante". Faço isso todo o ano desde que minha mãe morreu.''

    Após a morte do pai, Havelange continua na faculdade de direito, onde se formaria advogado, e vai trabalhar na Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira, primeiro no escritório, depois aprendendo técnicas de produção. Ao se demitir da empresa, mostra, mais uma vez, as marcas impressas pelo pai.

    ''Trabalhei seis anos lá. Depois, fui ao presidente e disse: 'Agradeço tudo o que o senhor fez por mim, mas eu vou embora'. 'O senhor não vai porque vou lhe pegar como meu secretário', ele disse. 'Não quero'. 'O senhor vai'. 'Não vou'. Aí, ele virou-se e disse: 'O senhor é teimoso como o seu pai!'.''

    ''Eu disse: 'O senhor nunca mais repita isso, teimoso é sinônimo de burro! Eu sou determinado, é diferente. Determinado é quem tem princípios. Meu pai também os tinha'. E disse antes de sair: 'Nunca mais vou ter patrão na vida!'.''

    Num perfil de Havelange publicado em 1991 por um jornal brasileiro, escreveu-se: ''nunca jogou uma partida de futebol''. Seus adversários sempre o atacaram como um homem dos esportes aquáticos, ''sem nada a ver com o futebol''.

    Pois o futebol, introduzido oficialmente no Brasil por Charles Miller no fim do século 19, foi a grande paixão do garoto João, que jogava num campinho, no Fluminense e no Liceu Franco-Brasileiro, onde foi campeão no colegial.

    O futebol e o velho Joseph Faustin se tornariam incompatíveis para Havelange em pouco tempo, mas ele ainda não sabia disso.

    Jogando de beque pela esquerda (é destro ao escrever, canhoto ao chutar e arremessava com as duas mãos no pólo aquático), Havelange foi campeão carioca juvenil em 1931, pelo tricolor das Laranjeiras.

    O Fluminense, uma agremiação aristocrática, nascera como clube de futebol, quando o esporte era vetado a negros e pobres.

    Anos antes de Havelange ganhar o título, um jogador mulato chamado Carlos Alberto se empanturrava de pó-de-arroz para clarear a pele e ser confundido com branco: eis a origem apelido "pó-de-arroz".

    Em 1933, para permitir que negros e mestiços reforçassem clubes nobres e evitar a ida de craques para o campeonato da Itália, o futebol brasileiro se profissionaliza.

    Com o campeonato feito como juvenil, o futuro de Havelange seria o profissionalismo, dizem amigos e não-amigos seus da época.

    É aí que Joseph Faustin, temendo pelo futuro do filho numa carreira que então não oferecia perspectiva de ascensão social para um jovem branco de classe média, obriga João a abandonar o esporte.

    ''Antes de meu pai morrer, prometi a ele que atenderia ao pedido de ser nadador nos Jogos Olímpicos. Eu seria convidado para o profissionalismo no futebol, mas ele não queria.''

    Havelange sente tristeza por não ter sido futebolista? ''Tristeza eu teria se não tivesse cumprido o que meu pai pediu. Eu gostava muito dele e de minha mãe. Se voltasse ao mundo faria tudo igual e igualzinho, mas iria querer que meu pai e minha mãe vivessem mais.''

    Segundo José Roberto Haddock Lobo, amigo de Havelange na época e hoje um dos seus inimigos, ''João não saiu do futebol por decisão paterna, mas por influência''. No caso, influência é eufemismo, considerando a relação que Joseph Faustin tinha com o filho.

    Conformado, Havelange abandona o esporte vetado pelo pai e passa a se dedicar com obstinação monástica à natação e, depois, ao pólo aquático, esportes em que se consagraria como um dos melhores do Brasil e da América do Sul.

    ''O pai era quem o treinava'', diz Haddock Lobo, três anos mais novo e nadador do Fluminense antes de Havelange. ''Era um obstinado. Aos domingos, quando a piscina do Fluminense fechava, ele ia à ACM "Associação Cristã de Mo ços", no Castelo "centro do Rio", para não deixar de treinar.''

    No Fluminense, Havelange, um nadador de longas distâncias, principalmente nos 400 m e 1.500 m livre, bateria sucessivamente recordes cariocas e brasileiros.

    Em 1932, tenta ir à Olimpíada de Los Angeles, mas fracassa, ainda com o pai vivo e são. Pior: é batido por um concorrente familiar, o irmão Júlio, nas eliminatórias. Em vez de se abater, reforça os treinos.

    Em 1936, vai como nadador aos Jogos de Berlim _dois anos antes, Joseph Faustin havia morrido. Em 1952, está em Helsinque com o pólo aquático. Em Melbourne-56, chefia a delegação brasileira.

    Apesar da fidelidade ao Fluminense, veste as cores do Botafogo-RJ no pólo, porque o tricolor resistia a introduzir a modalidade.

    Na faixa dos 20 anos, dorme cinco horas por noite para estar cedo no clube. Em casa, passa três horas por dia arremessando a bola na parede. ''Eu tinha um ombro...''

    Em 1940, quando se muda para São Paulo e vai trabalhar como advogado da Auto Viação Jabaquara, associa-se ao Clube Espéria, para onde vai depois do expediente. Pega ônibus, bonde e vence a pé um brejo às margens do rio Tietê, tudo para treinar.

    Em 1935 e 1936, ainda no Fluminense, Havelange venceria a Travessia de São Paulo a Nado, uma prova que pela tradição lembraria a atual a corrida de São Silvestre.

    Em 1943, empata com um companheiro do Espéria, com o tempo de 50min35, 22 segundos mais rápido do que na conquista anterior.

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    Anos 40
    A criação da Viação Cometa
    Em 1940, emprega-se como advogado da Auto Viação Jabaquara. Sete anos depois, passa a trabalhar na Viação Cometa, empresa da qual, anos mais tarde, viria a ser diretor-presidente.

    Tifo negro nas águas do Tietê
    Havelange contrai tifo negro nadando no rio Tietê em 1948, ficando internado por quatro meses. De 85 kg, emagreceu para 50 kg. Em 1991, disse que teve de voltar a aprender a comer após a doença.

    Ascensão como dirigente
    Ao longo da década de 40, ocupa cargos na Associação Desportiva Floresta (coordenador de pólo aquático e vice-presidente) e chegou à Federação Paulista de Natação, como vice, em 1948, e presidente, em 1949.

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    Com a seleção brasileira de pólo aquático, Havelange foi campeão sul-americano em 1946, no Rio, e vice em 1952, em Lima (Peru).

    Apesar do seu destaque no país e no continente, não obteve marcas significativas mundialmente. Só se consagraria como cartola.

    Numa das travessias de São Paulo, disputada no rio Tietê, ele pega uma espécie mais grave de tifo, o tifo negro, e passa quatro meses de cama. ''O médico disse: 'De cada mil, se salva um'. E aqui estou.''

    Em 1958, dias depois da festa pelo Copa da Suécia, completamente estafado, Havelange sofre um mal súbito que o deixa uma semana em coma. Recebe a visita do presidente Juscelino Kubitschek.

    Em 1992, é internado às pressas em Zurique (Suíça), a princípio com infecção ou intoxicação, mas o motivo nunca seria esclarecido.

    A esplêndida forma física ajudou a sua rápida recuperação com problemas de saúde. Até hoje, quando está no Rio, Havelange nada cerca de 1.000 m diariamente, a partir das 6h, e depois caminha 4 km.

    Quando está viajando, faz a mesma coisa. Dorme cinco horas por noite. Quando passa 72 horas acordado, em viagens (quando faz palavras cruzadas em português), dorme depois 24 horas sem abrir os olhos, se recuperando.

    ''Cheguei em casa ontem à meia-noite. Tomei um banho. Nunca durmo sem me banhar. Tomo uma ducha tépida e me deito. Um minuto depois estou dormindo profundamente, durmo como se tivesse dormido dez horas. Acho que todo o organismo nosso é um músculo, que o senhor tem que botar para trabalhar.''

    Os exercícios e a disciplina deram a Havelange o poder de praticamente não transpirar. No dia 17 de junho de 1994, com quase 40oC no Soldier Field, o estádio de Chicago onde começou a Copa, ele dividiu a tribuna com o presidente norte-americano Bill Clinton.

    O brasileiro estava de blazer claro. O americano, de blazer escuro. Clinton tirou-o, ficando em mangas de camisa e com o colete à prova de balas. Havelange, como sempre, manteve a fleuma, sem verter uma gota de suor pelo rosto.

    Ele conta: ''Ainda há pouco, começamos uma reunião na Fifa às 9h30, ela terminou às 14h30. Eu não me levanto, eu não bebo água, não tomo café, faço a reunião''.

    ''Todo mundo se levanta, diz que a próstata incomoda, que isso e aquilo, não sei o quê. Eu faço um exame a cada três meses. Minha próstata tem 55 anos. Minha geriatra diz: 'As suas artérias, o seu corpo por dentro têm menos 20 anos, têm 62 anos, por isso o senhor resiste a tudo'.''

    Duas pessoas contaram à Folha, com a exigência de não terem o nome citado, como quase todas que depuseram sobre o homem mais poderoso do esporte mundial, que a preocupação de Havelange com a transpiração nasceu nas viagens à África, nos anos 70, na campanha para a Fifa.

    Ele teria consultado um príncipe europeu, que lhe ensinara a dominar as glândulas com a força da mente. ''Não é que eu não vou suar, não suo jamais, assim é preciso pensar'', dissera o príncipe, cujo irmão teria vivido no Brasil. Havelange nega, diz ser autodidata e jura que o príncipe é ficção.

    O currículo oficial de Havelange é quase um atestado da sua saúde. Recebido por fax, soma 5,10 m, quase três vezes o 1,83 m de altura na juventude e o 1,80 m atual (o peso foi de 85 kg para 92 kg).

    Historia 13 cargos como dirigente esportivo; 39 condecorações estrangeiras, de 21 países; 36 condecorações no Brasil, as militares todas no período pré-Geisel; 36 títulos de cidadania honorária no exterior e no Brasil; 310 títulos, boa parte de sócio benemérito de entidades esportivas, indo de Defensor do Pantanal a associado 100 mil do Barcelona (Espanha).

    A passagem mais curta do currículo, menos de um quarto de página, fala de ''vida profissional'' e ''ocupações anteriores''. Há sete itens: empregado (Belgo-Mineira) uma vez; membro do conselho, sem funções executivas, de três empresas e um colégio (no qual estudou); e, abrindo a lista, diretor-presidente da Viação Cometa S/A e da Orwec Química S/A.

    Na escala de discrição da história de Havelange, a sua vida profissional só perde para a conjugal _é casado desde janeiro de 1946 com Anna Maria Hermanny Havelange, que raramente aparece com ele em público e é uma unanimidade, mesmo entre inimigos do marido.

    Na Cometa, o aspecto menos alardeado da sua posição é que ele, ao contrário do que supõem os rivais, nunca foi o dono da empresa.

    Na Orwec, usada como exemplo da boa situação financeira de Havelange às vésperas da eleição de 1974 para a Fifa, os sócios passavam por dificuldades, recorrendo a empréstimos para mantê-la.

    Em 1940, aos 24, o advogado Havelange troca o Rio por São Paulo e passa a trabalhar na seção trabalhista da Auto Viação Jabaquara.

    Com uma disposição que chamava a atenção, faz novas relações, principalmente por intermédio do esporte. Era atleta e já dirigente da Associação Desportiva Floresta, o antigo clube italiano Espéria, rebatizado quando o Brasil entrou na Segunda Guerra.

    Em 1947, está entre os primeiros funcionários da Cometa, com uma participação quase simbólica. Atuando basicamente como relações-públicas, Havelange cresce.

    ''Seus contatos no esporte e o know-how adquiridos na Belgo-Mineira são úteis na aceleração do processo e no desembaraço alfandegário da importação de ônibus necessários ao crescimento da Cometa'', afirma a biografia autorizada ''Jovem Havelange''.

    ''Os sócios detectam a sua habilidade no relacionamento com órgãos públicos e com autoridades em geral, ele é escolhido para diretor-presidente da empresa''.

    Havelange poderia ser chamado de lobista profissional. Era uma época em que a função básica dos presidentes de várias companhias não era executiva, mas de relações públicas. Ele continuava um funcionário, quebrando galhos, por vezes troncos, quando necessário.

    Certa vez, o padre que batizou Havelange, transferido para Minas Gerais, mandava um menino mineiro passar férias na casa dos Havelange no Cosme Velho. O garoto, Juscelino Kubitschek, seria presidente da República (1956-61) e o homem mais fascinante que Havelange afirma ter conhecido.

    JK ajudou várias vezes Havelange: ''Uma vez tive um problema na Cometa, precisava falar com ele, fui a Brasília. Havia uma reunião na sala do Juscelino, ele saiu: 'Havelange, você está aqui, o que você quer?'. 'Estou com um problema na Cometa, se você puder ver para mim'. 'Me dá que eu vou anotar'. Ele era assim, impressionante. Nunca vi homem igual.''

    Hoje, Havelange é o vice-presidente da Cometa, gigante do transporte rodoviário interestadual no Brasil. Assinou um compromisso com os controladores, os Mascioli, para, quando puder, voltar à presidência e lá ficar até a sua morte, embora poucas vezes, como nas últimas décadas, vá pôr os pés numa garagem de ônibus.

    Em 1993, segundo registro na Junta Comercial de São Paulo, uma reunião em abril definiu os salários dos altos executivos, inclusive Havelange: na época, US$ 6.000, metade do que uma secretária com domínio de quatro idiomas pode ganhar na sede da Fifa.

    Sobre a Cometa, ele diz: ''Eu tenho algumas ações, mas tudo isso pertence a uma família, pessoas italianas que vieram para o Brasil e me consideram um filho.''

    Na Fifa, Havelange recebe ajuda de custo anual para manter um escritório no Rio, se hospedar e se alimentar onde quer que esteja.

    Nos primeiros tempos de chefe do futebol mundial, jura ter colocado dinheiro do próprio bolso para pagar hotéis e despesas quando estava a serviço. Quanto? ''Não vou dizer porque senão o Imposto de Renda vem em cima de mim. O senhor me perdoe, o senhor não diria também.''

    A história da Orwec Química e Metalurgia Ltda. (nome original) é tão complicada que se arrasta há 25 anos na Justiça do Rio. O ex-sócio José Roberto Haddock Lobo pede a liquidação da empresa, que teria passado de limitada a sociedade anônima sem o seu aval. Havelange não é nem mais dono da sua parte, vendeu-a há dois anos.

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    Anos 50
    Em 1952, uma nova Olimpíada
    Depois de vencer o Panamericano de 1951 e o Sul-Americano de 1952, Havelange chega aos Jogos de Helsinque (Finlândia) com o pólo aquático. A equipe brasileira saiu com 1 vitória e 4 derrotas.

    O ingresso no COB e na CBD
    Em 1955, tornou-se membro do Comitê Olímpico Brasileiro, continuando até 1963. Depois de ter sido vice, é eleito para a presidência da Confederação Brasileira de Desportos, em 1958.

    Brasil campeão em 1958
    A seleção brasileira de futebol conquista o seu primeiro Mundial. Em 6 partidas, a equipe de Vicente Feola obteve 5 vitórias e 1 empate. Havelange acompanha a Copa no Brasil, pois não viajou à Suécia.

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    EM CARTA A UM SÓCIO, CITA A EXISTÊNCIA DE UM CAIXA DOIS NA EMPRESA

    Em 1966, a empresa foi criada com capital de CR$ 100 mil, cabendo, pouco tempo depois, 40% a Havelange, 10% a Haddock Lobo e 50% a Davi Moscovite.

    Após alguns anos, Havelange diria, apesar dos registros, que Haddock Lobo tinha direito a 10% do capital que pertencia a ele, Havelange, e não do total da firma.

    Em 9 de novembro de 1971, já em campanha para a Fifa, Havelange e os sócios fazem um empréstimo de CR$ 500 mil (nominalmente, cinco vezes o capital inicial da Orwec) com Luiz Augusto Vasconcellos, primo de Haddock Lobo.

    Conforme documento obtido pela Folha, o prazo para pagamento do empréstimo era de dois anos. Eram avalistas, na seguinte ordem: Orwec, Havelange, Moscovite e Haddock Lobo.

    Em 1973, um grupo português reunidos na holding Empar compra 51% da Orwec, com o restante das ações distribuído proporcionalmente entre os antigos sócios.

    Na biografia de Havelange, um documento essencial da sua vida nos negócios é uma carta manuscrita dele a Haddock Lobo, sem data (provavelmente setembro de 1973), em que fala com sinceridade sobre a Orwec, tentando reduzir a participação do sócio.

    Em três páginas, com a letra reconhecida por dois amigos consultados pela Folha, Havelange escreve, no final da segunda página, ''e ainda temos a caixa II'', com o "2" em algarismos romanos.

    O caixa dois é uma contabilidade paralela e ilegal que tem como objetivo o pagamento de menos impostos pela empresa e os seus sócios. Trata-se de um expediente até hoje empregado no Brasil.

    A Folha teve acesso a dois livros do caixa dois da Orwec. Embaixo de cada página, dando aprovação, está a assinatura de Havelange.

    Na última página da carta, penúltimo parágrafo, Havelange escreve: ''Finalizando, pedir-te-ia que analisasse o que acabo de expor, pois fiquei com compromissos muito elevados a cumprir, e me desses uma pronta solução''.

    Havelange, que chama o sócio de ''Zé'' no início, assina ''João''. Em 20 de setembro de 1973, Haddock Lobo responderia, chamando-o ''Joca'' e se negando a entregar cotas da empresa.

    No final do texto datilografado, Haddock Lobo diz: ''O mundo de fantasia em que no momento vives impele a criar situações e fatos inverídicos, com distorções totais. Se digo isso, é porque estou à vontade para fazê-lo, em face da amizade e da sem-cerimônia''.

    ''É um alerta para a posição que caminhas e poderá te levar a uma situação difícil. Muitas coisas já se disse que contrariaram o teu amor próprio. Agora, sou obrigado a dizer algo que poucos amigos poderiam fazer.'' Haddock Lobo propõe um encontro e assina.

    Nunca mais se falaram. Era o fim de uma amizade que começou no Fluminense e prosseguiu quando Havelange recebeu o colega em São Paulo, onde trabalharam juntos. Depois, no Rio, foram funcionários de uma empresa do irmão de Havelange. Raul, filho de Haddock Lobo, tem hoje com 47 anos. Seu padrinho é João Havelange.

    Sobre a Orwec, o presidente da Fifa diz que vendeu a sua parte e que questões relativas ao passado serão resolvidas pela Justiça.

    Quantos cheques, em 24 anos, Havelange assinou em nome da Fifa? ''Nenhum, nunca assinei um cheque pela Fifa. Todos são assinados ou pelo secretário-geral ou pelo chefe da tesouraria''.

    Por que não foi às Copas na Suécia e no Chile? ''Fiquei aqui para assinar os papagaios da CBD. Aqui no Brasil eu assino o papagaio, e a minha assinatura vale. Lá fora ninguém sabia quem eu era.''

    Sua carreira oficial de dirigente começou em 1937, como diretor de pólo aquático do Botafogo-RJ. Na prática, é anterior, no Fluminense, onde influenciava a natação, embora não tenha conseguido introduzir o pólo aquático.

    Para entender a ascensão, é preciso considerar que, na época, a direção das entidades não era disputada como hoje. Profissional, só o futebol. Dinheiro inexistia.

    Durante mais de 15 anos, Havelange foi atleta e dirigente, uma espécie de dono da bola. Na gestão 1949-51, presidiu a Federação Paulista de Natação. De volta ao Rio, liderou, de 1952 a 1956, a Federação Metropolitana de Natação.

    No esporte, fazia amizades. Nos anos paulistas, tornou-se amigo de dois rapazes cerca de dez anos mais jovens que se transformariam em industriais: José Ermírio de Moraes Filho e Mário Amato.

    Em 1956, seu amigo Sylvio Pacheco, presidente da CBD, nomeou-o para a vice-presidência, então vaga. Em janeiro de 1958, por sugestão de Pacheco, concorre e vence a eleição para a CBD.

    Com 185 votos, João Havelange esmagou o adversário, Carlito Rocha, folclórico dirigente do futebol do Botafogo-RJ. Dono do cachorro Biriba, que, para o cartola, dava sorte ao time de Garrincha, Carlito Rocha somou apenas 19 votos.

    A primeira decisão do carioca Havelange, que teria consequência direta na conquista das duas primeiras Copas, seria um feito. Ao nomear chefe da delegação o paulista Paulo Machado de Carvalho, o novo presidente da CBD pacificava o agitado futebol do país.

    Em 1930, a seleção era praticamente carioca, devido ao boicote da Associação Paulista de Esportes Atléticos. Só Araken, jogador do Santos, desrespeitou o veto.

    Em 1950, temendo vaias para um time majoritariamente do Rio, o técnico Flávio Costa lota o meio- campo de são-paulinos para o jogo com a Suíça (2 a 2), no Pacaembu, o único fora do Maracanã.

    Ao entregar o futebol para São Paulo, Havelange constrói um dique para ressentimentos. Ao não viajar para a Suécia, não se expõe a um eventual fracasso. Na volta, lidera a festa e leva os campeões até o presidente Juscelino Kubitschek.

    ''Na primeira Copa ele substituiu vários ministros, e não saiu uma nota no jornal. Um dia ele me chamou e perguntou: 'Quando é que vai ter outra Copa? É que eu preciso mudar uma gente aqui e quero tranquilidade, sem repercussão'. Juscelino era muito engraçado, inteligente'', conta.

    Havelange credita a um pedido de JK um episódio pouco conhecido da sua vida: a candidatura pelo PSD a deputado, em 1960, derrotada com pouco mais de 6.000 votos. ''Eu devo ter tido mais de 20 mil, mas tiravam o meu número da cédula e botavam o de outro.''

    Em 1962, repete a receita: Paulo Machado de Carvalho, o ''Marechal da Vitória'', com a seleção, no Chile. Havelange, no Rio.

    Meses antes do bi, um torcedor amigo, a quem Havelange tinha acesso fácil, o procurou. É um relato inédito: ''Uma vez, eu estou no Maracanãzinho, num jogo do Campeonato Brasileiro de futebol de salão. Vem um funcionário: 'Senhor Havelange, o presidente da República o chama'.''

    ''Eu atendo. 'Ô, Havelange, quem fala é o Jango "João Goulart"'. 'Ô, não me aporrinha''', teria dito o presidente da CBD, sem acreditar. '''Aqui é mesmo o Jango'. 'Ô, presidente, desculpa'. 'Estou aqui nas Laranjeiras "palácio", vem cá'.''

    ''Peguei meu carro e fui lá'', lembra Havelange. ''Jango estava na varanda, tinha problemas numa perna, e diz: 'Vem cá, vai ter a Copa do Mundo, você sabe que eu joguei e conheço futebol. Vou te dar a minha seleção'.''

    ''Eu digo: 'Olha, Jango, eu acredito que você entenda de futebol. Vamos fazer o seguinte: você deixa de ser presidente e vai ser meu técnico'. Ele ria à beça, e assim ficamos quase uma hora.''

    O técnico foi Aimoré Moreira e, depois da sua deposição, em abril de 1964, Jango foi visitado no exílio, no Uruguai, por Havelange.

    No Mundial de 1962, o Brasil foi ajudado pela arbitragem. No 2 a 1 sobre a Espanha, Nilton Santos fez pênalti, deu um passo para fora da área, e o juiz marcou apenas falta.

    Numa célebre ação de bastidores, Garrincha foi resgatado para a final com a Tchecoslováquia.

    Na semifinal, depois de muito apanhar, ele fora expulso ao acertar um pontapé nas nádegas do chileno Rojas. A testemunha-chave para o julgamento era o bandeirinha uruguaio Esteban Marino. Na década de 50, Marino apitara no Campeonato Paulista.

    Paulo Machado de Carvalho e o presidente da federação paulista, Mendonça Falcão, esconderam Marino, com a concordância do uruguaio, num hotel de Santiago. Ele não foi depor, e não houve como Garrincha ser suspenso.

    A história foi contada pelo ''Marechal da Vitória'' a muitas pessoas, desde os anos 60. Várias vezes, na sala da produção da TV Record, de sua propriedade, ao jornalista Alberto Helena Jr., hoje colunista da Folha.

    Sobre o episódio, Havelange diz, com convicção: ''Nunca se fez nada disso. Quem chefiava a delegação era o Paulo Machado de Carvalho, um homem de uma dignidade, de um respeito.''

    Em 1966, já pensando na presidência da Fifa, Havelange afasta Machado de Carvalho, o mais bem-sucedido chefe de delegação que a seleção já teve, assume a equipe e fracassa com ela.
    Com o triunfo em 1970, que viu pela TV em preto-e-branco, Havelange sai em franca campanha.

    Dois casos, semelhantes a dezenas de outros, mostram, na prática, como o brasileiro angariou o apoio que mudaria para sempre a história da Fifa e do futebol.

    A Iugoslávia tinha vários jogadores ''pendurados'' e precisava de uma partida contra uma seleção nacional para que eles pudessem entrar em condições num torneio europeu. Havelange pede e o time do Atlético-MG, em excursão à Europa, veste a camisa do Brasil e enfrenta os iugoslavos. Um voto.

    Em 6 de junho de 1973, o Brasil bateu a Tunísia por 4 a 1, em amistoso em Túnis. Segundo jornais locais, gentilmente a CBD baixou de US$ 50 mil para US$ 30 mil o cachê da seleção "o Santos chegava a cobrar US$ 50 mil ". Outro voto.

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    Anos 60
    Copa do Chile, o 2º título
    Pelé se machuca no torneio, Garrincha passa a ser a estrela do segundo título brasileiro. De novo, Havelange não acompanha a equipe. O técnico Aymoré Moreira repete Feola (5 vitórias e 1 empate).

    Olimpíadas levam ao COI
    Após duas Olimpíadas como atleta e chefe da delegação brasileira que foi aos Jogos de Melbourne (Austrália), em 1956, Havelange é eleito em 1963 membro do Comitê Olímpico Internacional.

    Fracasso na viagem de 1966
    Havelange dispensa Paulo Machado de Carvalho, que chefiara a delegação brasileira em 1958 e 1962, e assume a função na Copa de 1966, na Inglaterra. O Brasil cai na primeira fase.

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    Leia aqui a segunda parte do especial da Folha sobre João Havelange

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