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    BBC

    O gol que revelou a faceta racista do futebol

    DA BBC BRASIL

    10/12/2016 15h48

    Depois de roubar a bola no meio-campo, um dos jogadores fez um longo passe para seu companheiro que entrou quase sozinho na grande área e impiedosamente fuzilou a rede.

    Os locutores falavam de um dia histórico para a equipe que marcou o gol. Mas nem tudo era alegria.

    A razão pela qual o gol marcou o momento histórico abriu um capítulo obscuro na história do futebol.

    Era 2013 e o time que havia acabado de marcar era a Beitar Jerusalém. O jogador que marcou o gol mais importante da temporada para o clube israelita foi Zaur Sadaev. Mas alguns minutos mais tarde, um grupo de fãs da equipe deixou o estádio com vaias e indignação. A razão? Sadaev é muçulmano.

    Apenas alguns dias antes, alguns fãs já haviam ameaçado a diretoria do time deque que "tudo iria piorar se número 13 (Sadaev) entrasse em campo".

    "A decisão é sua," dizia uma das mensagens.

    BBC/AFP
    Gabriel Kadiev e Zaur Sadaev no dia 30 de janeiro de 2013, quando foram apresentados ao time
    Gabriel Kadiev e Zaur Sadaev no dia 30 de janeiro de 2013, quando foram apresentados ao time

    A história faz parte do documentário "Para sempre puro: futebol e racismo em Jerusalém", um programa da BBC de 85 minutos sobre o clube de futebol israelense Beitar Jerusalém, a única equipe na Liga dos Campeões israelense que não assinou com um jogador árabe.

    Um grupo de torcedores, conhecidos como "A Família" conquistou as manchetes, em 2013, após rejeitar a chegada ao clube de dois jogadores chechenos: Zaur Sadaev, 23, e Gabriel Kadiev de 19.

    E, como qualquer time de futebol do mundo, as autoridades do Beitar decidiram assinar dois jogadores estrangeiros para melhorar suas chances no campeonato.

    Mas a transferência tornou-se uma dor de cabeça para a gestão.

    Na primeira partida em casa, depois do anúncio da chegada dos dois jogadores, eles foram recebidos com vaias e gritos racistas que eram impossíveis de ignorar e a torcida ainda levou um banner para a arquibancada no qual estava escrito, em hebraico "Beitar sempre puro."

    Para os jogadores, a liderança do clube e do governo, a situação era vergonhosa. Isso porque a aquisição de Sadaev e Kadiev tinha sido tomada apenas por razões esportivas e também para atrair patrocinadores e investidores.

    'DOIS MUÇULMANOS'

    BBC/AFP
    Os companheiros de equipe acolheram os jogadores
    Os companheiros de equipe acolheram os jogadores

    Apesar das razões profissionais, o presidente do time, Itzik Korenfine afirma que a maioria das manchetes na imprensa israelense foi focada no fato de que as novas contratações eram de jogadores muçulmanos.

    Na chegada, os jogadores demonstraram absoluta calma e quando um jornalista os perguntou como se apresentariam aos torcedores fanáticos locais, eles disseram apenas uma palavra: "gols".

    E entre sorrisos, Sadaev disse: vamos marcar!

    Minutos depois, o atacante disse ainda que os dois iriam à mesquita caso tivessem tempo. "Para rezar e pedir pela ajuda de Deus para ajudar o Beitar a ser campeão".

    Em uma coletiva de imprensa, o goleiro e capitão, Ariel Harush, acolheu os companheiros de equipe.

    "Sua religião ou raça não são importantes. Nós vamos ser os melhores anfitriões e espero que nos ajudem."

    Logo na primeira sessão de treinos, em fevereiro de 2013, os fãs gritaram expressões racistas e ofensivas. O presidente do clube então se aproximou de torcedores pedindo por respeito, ma as vaias e os gritos continuaram:"Guerra! Guerra!", diziam eles enquanto faziam barulho.

    RACISMO

    BBC/AFP
    Torcedor em um dos jogos do Beitar contra o Charleroi da Bélgica
    Torcedor em um dos jogos do Beitar contra o Charleroi da Bélgica

    Do campo de treino, os insultos foram parar nos estádios também em jogos oficiais.

    "Aqui estamos, o clube mais racista do país", gritou bem alto um grupo de fãs em um dos encontros.

    A ira dos torcedores, no entanto, ultrapassou o ódio contra os dois jogadores, mas também chegou no capitão e goleiro do clube, que foi chamado de "traidor" por acolher os colegas.

    A mensagem de ódio também se espalhou pelas redes sociais.

    Em fevereiro, houve um incêndio nos escritórios do clube, supostamente um ataque.

    O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, condenou o incidente envolvendo a equipe que ele e seus filhos haviam apoiado por muitos anos.

    "Estou convidando os fãs do Beitar e aqueles que não torcem pelo time a denunciar estas ações", disse ele.

    As autoridades do país condenaram energicamente as manifestações de racismo.

    COMO UM ESPELHO

    BBC/AFP
    As autoridades investigaram um incêndio na sede do clube em 2013
    As autoridades investigaram um incêndio na sede do clube em 2013

    O fim da temporada teve um gosto amargo para o Beitar. Kadiev Sadaev e deixou o clube e brilhou na Polônia e na liga chechena de futebol.

    Korenfine descreveu a experiência como um "fracasso total".

    "Nós subestimamos o nível de agressividade que essa decisão causaria. Era como um espelho em que a realidade se refletiu nosso clube".

    "Olhando para o futuro, ou haverá um jogador árabe para o Beitar ou não haverá Beitar", afirmou.

    Depois de 18 anos dedicados ao clube, Korenfine foi demitido.

    Ainda após a temporada turbulenta, um grupo de fãs moderados do Beitar criou um novo clube: Beitar Jerusalem Nordia.

    "A Família", no entanto, levou seus princípios extrema-direita para as ruas e tornou-se uma força política nacional.

    E a nova gestão do antigo Beitar afirmou que não tinha planos para assinar com um jogador árabe.

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