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    Zé João relembra como acabou com o maior jejum brasileiro na São Silvestre

    MARCELO QUAZ
    DE SÃO PAULO

    30/12/2016 02h03

    Sergio Barzaghi/Gazeta Press
    O ex-atleta José João da Silva, durante o revezamento da Tocha Olímpica em São Paulo (SP). A Tocha segue percorrendo mais de 300 cidades de todos os Estados da federaâÃâ£o até chegar ao Rio de Janeiro, em 5 de agosto, para a abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro 2016, no Brasil. ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    O ex-atleta Zé João, 61, bicampeão da São Silvestre, participou do revezamento da tocha da Rio-2016

    O Brasil tenta neste ano quebrar a hegemonia estrangeira que já dura dez anos entre as mulheres e cinco entre os homens na São Silvestre. A corrida ocorre na manhã deste sábado (31), com largadas a partir das 8h20.

    O maior tempo do país sem vitórias na prova, porém, foi 33 anos. O jejum acabou quando o pernambucano José João da Silva cruzou em primeiro na edição de 1980.

    Zé João, como é conhecido, foi aos Jogos de Los Angeles-1984. Correu os 5.000 m e foi à semifinal dos 10.000 m.

    Hoje, aos 61 anos, ele diz que sua "medalha olímpica" foi conquistada naquele 31 de dezembro de 1980.

    "Aquele foi o grande ano da minha vida. Tinha ganho provas, batido recordes. Existia até certa pressão da mídia sobre mim, como eu iria me comportar em casa", lembra.

    Zé João liderou boa parte da prova, que tinha trajeto menor, 8.900 m. Na parte final, porém, foi ultrapassado pelo português Fernando Mamede. Só nos últimos 800 m, já na avenida Paulista, é que o brasileiro conseguiu alcançar o adversário e retomar a liderança para não perdê-la mais.

    "Eu apontei na avenida e ouvi meu técnico gritando 'Vai João'. O Mamede tinha diminuído o ritmo. Eu ia, e via a luz do caminhão da imprensa, que acompanhava o líder, cada vez mais perto", lembra.

    "Nesse caminhão, estava o Osmar de Oliveira, que era narrador da corrida e o meu médico. Comecei a ouvir os gritos dele também: 'Vai João'. Teve muita festa. Foi lindo. Muito legal. A prova que valeu por todas", afirma.

    Zé João perdeu as contas de quantas São Silvestre correu, mas de sua estreia em 1976 à despedida em 1992, ganhou dois bronzes, uma prata e dois ouros -além de 1980, venceu em 1985.

    A prova é ainda mais especial para ele por ter sido a inspiração para a sua carreira.

    Vindo de Bezerros-PE, sua terra natal, a São Paulo para estudar e trabalhar, ele arrumou emprego de entregador numa cantina nos Jardins.

    No Reveillon de 1973 para 74, ele foi barrado pela polícia quando tentava entregar uma pizza na avenida Paulista. Não demorou muito para ele entender que se tratava de uma corrida, a São Silvestre.

    "Ali descobri, queria correr", conta o bicampeão, que hoje organiza corridas de rua pelo Brasil.

    "Na verdade meu sócio trabalha enquanto eu fico correndo por aí", ele brinca.

    Entre uma resposta e outra, Zé João costuma gargalhar com as lembranças de quem demonstra saber ter escrito o nome na história do atletismo nacional.

    Hoje, aos 61 anos, corre em média 10 km por dia. "Faço pelo equilíbrio da vida. A vida é o que se não um movimento?".

    Leia os principais trechos da entrevista com o ex-atleta:

    *

    CHEGADA EM SÃO PAULO
    Zé João: "Nasci em Bezerros-PE, 78 km acima do Recife, na Zona da Mata. Minha família tinha roça, criava uns bichinhos, milho, feijão. Vim para São Paulo estudar e arrumar um trabalho. Tinha uns 17 anos, vim com o meu cunhado. Fui morar numa pensão, na alameda Pamplona com a alameda Santos [Jardins, zona oeste de São Paulo]. Estudava e de fim de semana e feriado fazia entrega pra uma cantina. Naquele tempo não tinha esse negócio de motoboy, ia a pé mesmo, meio trotando, era menino novo, rápido."

    PIZZA FRIA E SÃO SILVESTRE
    "Numa dessas entregas fui barrado pela polícia na avenida Paulista. Era uma pizza no hospital Matarazzo, pros plantonistas, me lembro que era o Dr. Arquimedes (risos). O policial me disse: 'Espera um pouquinho'. E era quase meia-noite, tinha carro da imprensa. Eu não entendi. Quando a polícia liberou cheguei com a pizza meio fria. Ficou essa piada rolando, o entregador de pizza barrado na São Silvestre. Cheguei na cantina e contei o que tinha acontecido. O meu patrão, me explicou que era a São Silvestre, que era tradicional, que os estrangeiros vinham e ganhavam. E eu respondi: 'quero correr!'. De tanto encher a cabeça dele, um dia ele pegou o carro e me levou para conhecer o percurso. Ele foi de carro, eu fui atrás correndo. Era 1h da manhã. Ele me viu correndo, viu que eu levava jeito, e me aconselhou a arrumar um treinador."

    O ATLETISMO
    "Peguei a minha bicicleta e fui até o Clube Pinheiros. Amarrei ela na grade, falei com o guardinha e entrei. Imagina fazer isso hoje em qualquer clube? Amarra a bicicleta, dá o R.G. e entra. Eu sabia que eu tinha que falar com o Pedrão [Pedro Henrique Camargo de Toledo], técnico do João do Pulo, mas ele me mandou pro Carlão [Carlos Gomes Ventura]. No teste, eu nem sabia que a pista de atletismo era uma bola, dava uma volta. Ele disse para eu correr até mandar parar. Fiz 5 km em 16min32s, tempo bom até hoje. Meses depois, em 1976, comecei a competir."

    ESTREIA NA PROVA
    "Eu me lembro que eu corria, corria, corria, e estava no meio do povão. Era muita gente. Eu nem vi a frente. Mas fui o melhor do clube, e fiquei em 89º, bom resultado para a estreia [em 1976]. Em 1977, fui o 63º, melhor do clube de novo, entre os dez do Brasil. Em 78, fui 35º. E em 1979, fui 15º, mas já vi a frente, senti o cheiro de ar fresco. Morri no fim e perdi várias posições."

    1980
    "Foi o grande ano da minha vida. Mudei do Pinheiros para o São Paulo [Futebol Clube]. Foi quando eu pude me dedicar exclusivamente ao atletismo. Antes disso eu ainda tinha que fazer uns bicos. O clube me garantiu que eu iria só treinar, e que teria carteira assinada como auxiliar técnico. Eu corria 5 km e 10 km. Comecei a participar mais de competições, a ter projeção. Estava bem, tinha ganhado provas, batido recordes. Lembro que tinha expectativa sobre mim, da mídia. Naquele tempo, a gente fazia uma seletiva antes da São Silvestre, no mesmo percurso, e eu tinha feito a segunda melhor marca do ano no mundo naquela distância. Eu lembro da cobrança: 'Como Zé João vai se comportar nesse dia, em casa? Eu sabia que se eu rendesse, o pódio estava ali. E ganhar? Eram 33 anos de jejum.

    QUEBRAR O JEJUM
    "Tinha o português Mamede, recordista mundial. Tinha o Lindsay, o Salazar. Uns 10 a 15 corredores de elite para brigar. Meu téecnico esvaziou a garagem de um prédio perto da Gazeta para eu poder me aquecer e concentrar sossegado. Quando faltavam uns dez minutos para começar, eles me conduziram até a largada. Eu me prostrei do lado direito, porque queria tomar o cuidado de não bater em ninguém. Até perdi umas posições no começo. Quando chegamos na Brigadeiro [Luis Antônio], eu estava entre os 30 primeiros, mais ou menos. Com sete minutos de prova, eu já era o líder. Lembro bem os três quilômetros, perto da rua Líbero Badaró. Ali, eu abri uns 10 metros e mantive, na São João, na Ipiranga. Passando a Igreja da Consolação, o Mamede me passou e abriu uns cinco metros, e depois mais, talvez uns 30 m. Mas no fim da subida, quando a gente virou na Paulista, o Carlão percebeu que o Mamede estava diminuindo. E o Carlão gritava: 'Vai João'. E eu via a luz do caminhão da imprensa, que acompanhava o líder cada vez mais de perto. Neste caminhão, estava o Osmar de Oliveira narrando a prova. Ele era o meu médico, então já viu. Dava pra ouvir ele gritando também: 'Vai João.' Faltando uns 800 metros, eu estava muito perto e, quando passei o Mamede na frente do Masp, foi uma festa. Eu tenho essa narração gravada. É muito lindo. Foi muito legal. Foi uma prova que valeu por todas, quebrou a tabu. Não tem preço. Foi a minha medalha olímpica."

    EX-ATLETA
    "Parei mesmo em 1997, há 19 anos –e a minha melhor medalha foi nunca ter parado. Hoje, faço pelo equilíbrio da vida, pra ter muita disposição para trabalhar e viver. Eu entendi a importância que a atividade física tem na vida. A vida é o que se não um movimento? O primeiro horário é meu, 6h30, 7h. Corro 10 km por dia em 1 hora, 50 minutos. Tenho um físico sem problemas, faço na boa. A minha corrida é pela saúde. Eu quero correr hoje para amanhã correr de novo. O médico até agora só serviu para dizer que eu estou ótimo –vou até bater na madeira aqui."

    EMPRESÁRIO DO ESPORTE
    "Hoje, meu sócio trabalha e eu fico por aí correndo [gargalhadas]. Na verdade, minha aposentadoria coincidiu com a criação do Troféu Cidade de São Paulo, a corrida de 10 km que acontece no dia do aniversário da cidade até hoje. A prova teria o meu nome, para homenagear. Quando eu soube disso, achei que não combinava. Pedi pra trocar e a Prefeitura aceitou. Minha empresa nasceu para organizar esta prova, e hoje é isso o que faço."

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