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    Tragédia em voo da Chapecoense

    'Muita gente tentou se aproveitar da tragédia', diz diretor da Chapecoense

    GUILHERME SETO
    ENVIADO ESPECIAL A CHAPECÓ (SC)

    26/01/2017 02h00

    Adriano Vizoni/Folhapress
    O diretor de futebol da Chapecoense, Rui Costa, durante entrevista na Arena Condá
    O diretor de futebol da Chapecoense, Rui Costa, durante entrevista na Arena Condá

    Desde que chegou à Chapecoense, há 47 dias, o diretor de futebol Rui Costa, 46, contratou 23 jogadores. Negociou praticamente um jogador novo a cada dois dias.

    Conhecido por seu trabalho de anos no Grêmio, de onde saiu em maio de 2016, ele foi ao mercado impulsionado pela necessidade de montar um time. Dezenove atletas da equipe catarinense morreram em acidente aéreo em novembro do ano passado. Enquanto ele fazia telefonemas na Arena Condá para contratar reforços, ouvia funcionários do clube aos prantos pelas vítimas da tragédia.

    Em entrevista à Folha, Costa reclama de promessas que foram feitas em público por clubes e jogadores que não se concretizaram.

    *

    Folha - Qual foi o cenário que você encontrou quando chegou ao clube?
    Rui Costa - Um cenário de muita consternação e interrogação. Cheguei em 9 de dezembro e via as pessoas andando de cabeça baixa pela cidade. A energia do luto era visível. O que aconteceu aqui é inédito.
    Perdemos profissionais de ponta em todos os setores: presidente, médico, roupeiro, jogadores Tínhamos quatro atletas e tivemos que montar um elenco a partir disso, e para disputar o calendário mais rico do futebol brasileiro. Vamos enfrentar o Barcelona no Camp Nou, além de vários convites de equipes internacionais.
    Quando cheguei, olhávamos para o vestiário vazio e batia um desânimo. A todo momento cruzávamos com alguém chorando, com alguma viúva ou pai Os dramas se repetiam e eu tinha que pensar no futebol, em contratações. Era quase um desaforo, mas havia sido contratado para isso. Hoje, no lugar das velas e do silêncio, você ouve essa música [na academia dos jogadores toca o funk "Malandramente", de MC Nandinho e MC Nego Bam].

    E como foi o processo de montagem do elenco?
    Foi algo extraordinário. A Chapecoense fez em 2017 o que fez em 2016, com um orçamento ligeiramente maior. Senão você não consegue contratar 23 jogadores tendo que pagar luvas, antecipações, auxílio-moradia. É tudo rigorosamente controlado [segundo a Folha apurou, o orçamento está abaixo dos R$ 3 milhões para todo o departamento de futebol].
    A planilha que eu e o [Vagner] Mancini [técnico da equipe] bolamos inicialmente tinha 90 atletas. Depois, caiu para 50, e então, finalmente, 37. As negociações não foram 100% exitosas, mas posso dizer que todos os jogadores que estão aqui foram escolhidos pela Chapecoense -e eu digo isso para eles. Não tem jogador empurrado por outros clubes. Desde o começo, decidimos que nunca abriríamos mão de escolher atletas.
    Hoje, temos dois jogadores de excelente qualidade em todas as posições. Claro que eu tenho sete jogadores que são transitórios, que os clubes não deram opções de compra. Se eu quiser tê-los mais para a frente, teria que pagar 7 milhões de euros. Mas com o crescimento do time e a valorização da marca isso vai passar a se tornar possível a partir de parcerias, por exemplo.

    Como foram as conversas com os três jogadores que permaneceram do elenco anterior?
    Ficamos com Martinuccio, Nenén e Moisés. Queríamos que eles não se sentissem constrangidos com a chegada de tantos atletas, então conversamos bastante. O Nenén é história viva do clube, desde a ascensão para a Série B, e por isso fiz questão de renovar seu contrato. Ele é parte importante como referência, como DNA da Chapecoense.

    Muito se falou sobre a possibilidade de "medalhões" jogarem na Chapecoense para ajudar. Por que eles não chegaram?
    É óbvio que todos os gestos são reconhecidamente de solidariedade. Às vezes no afã de ajudar o sujeito vai nas redes sociais e diz "eu jogaria na Chapecoense". Mas minha avaliação é a de que é mais um gesto do que algo concreto. Objetivamente, nenhum jogador desse patamar ligou para cá para se colocar à disposição para jogar e ganhando o que o clube tem condições de pagar. Isso não aconteceu.
    Infelizmente, porque vivemos em um mundo perverso, muita gente tentou se aproveitar da tragédia. Eu, Mancini e os demais ouvimos coisas que beiravam o desrespeito. Não era gente solidária, mas que queria ganhar dinheiro às custas da Chapecoense. Como, por exemplo, alguns que ofereceram atletas que não só não têm condições de jogar futebol como vivem problemas de saúde.

    Que clubes fizeram isso?
    Não foram equipes. São pessoas que nem tem gerência sobre a carreira dos atletas e diziam que tinham. Mas prefiro não falar quem são.

    Quais clubes que de fato ajudaram a Chapecoense?
    O primeiro clube a ser citado é o Atlético Nacional, porque fez algo impossível de quantificar. Atlético-MG e Cruzeiro nos ajudaram muito. O Palmeiras foi o ponto fora da curva. O [diretor de futebol] Alexandre Mattos tem muita autonomia no clube e sempre está se mobilizando para ajudar. O Palmeiras veio jogar aqui arcando com todos os custos e cedendo a renda para nós. É um parceiro. O Grêmio ajudou, Flamengo também. O Inter nos procurou, mas não conseguimos avançar em alguns negócios. O Sport nos deu verba que facilitou a liberação de um jogador como o Túlio de Mello. O Cruzeiro também, já que o Grolli tem patamar salarial importante e que hoje custa R$ 50 mil para a Chapecoense.

    Como é a experiência de se trabalhar em Chapecó?
    Aqui em Chapecó é como se estivéssemos no País Basco, na Catalunha, em Sevilha. Tem uma carga filosófica e emocional muito forte da comunidade. Aqui a sua experiência se torna muito mais fácil se você entender o espírito de ser alguém daqui. Eu e os jogadores estamos nesse processo de aprendizado, e vejo muitos jogadores já avançados nisso, recebendo o carinho dos torcedores.

    Você planeja incorporar o Jackson Follmann [goleiro que teve parte da perna direita amputada] no projeto?
    Quando aconteceu o episódio do acidente, foi muito duro para mim, porque tinha uma história com ele, contratei ele no Grêmio e depois tive que participar da dispensa também. Ele tem uma inteligência acima da média, e assim que estiver bem ele vai nos ajudar. A ideia é que ele trabalhe com o futebol aqui na Chapecoense. Não vamos dar uma sala para e encostá-lo, até porque ele é talentoso. Além disso, ele tem tudo para virar um grande para-atleta, porque também é forte.

    E quais as metas para 2017?
    Esperamos conquistas já neste ano. No Catarinense, temos meta de ganhar o título. Na Copa da Primeira Liga, vamos tentar chegar longe, como fundadores do campeonato. Ganhar a Libertadores é improvável, mas queremos uma campanha digna, que nos dê mais visibilidade, valorize a marca. No Brasileiro, tiramos a premiação por permanência na Série A que existia para os jogadores. Entendemos que isso não é mais objetivo para se comemorar hoje na Chapecoense. Temos que, pelo menos, mirar a Sul-Americana. Os jogadores que estão chegando têm que entender isso. Esse tipo de coisa não combina mais com a Chapecoense.

    Qual é o tamanho da Chapecoense hoje?
    Percebo constrangimento de trazer o assunto à baila, porque pode parecer que está se comemorando. Óbvio que não. Diante de tudo ruim que aconteceu, há coisas boas. Quando você vê a torre Eiffel pintada de verde, quando você vê organizadas que se matariam se abraçando, a gente volta à essência do futebol. O futebol é a capacidade de gerar essas coisas. O que aconteceu com a Chapecoense trouxe o futebol de novo para o cenário lúdico, para a paixão. Isso é um legado enorme.
    O clube chegou ao nível global, e o trabalho sério deles vai retroalimentar o processo de crescimento. A estrutura do clube é pequena, mas a marca é gigante. Nosso trabalho é melhorar estruturalmente até chegarmos ao nível da marca. O modelo familiar do clube traz transparência, comedimento A ideia é pegar o que tem de bom nisso e expandir para um modelo mais profissional.
    Esse clube é o maior laboratório do mundo. De todos os clubes do Brasil que podiam acontecer essa tragédia... Imagina se o aporte financeiro que a Chapecoense tem recebido acontecesse em outros clubes? Teria presidente andando de jato por aí.

    -

    RAIO-X

    Nascimento 18.nov.1970 (46 anos), em Porto Alegre (RS)

    Formação Advogado

    Trajetória
    > Diretor de futebol do Grêmio (2010-2012)
    > Diretor-executivo do Grêmio (2012-2016)

    Acidente em voo da Chapecoense

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