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    Tragédia em voo da Chapecoense

    Após tragédia da Chape, Neto enfrenta dores para reviver sonho de criança

    GUILHERME SETO
    DE SÃO PAULO

    28/01/2017 02h00

    Na bicicleta ergométrica da academia da Chapecoense, o zagueiro Neto pedala todos os dias, obstinado. Na sua cabeça, cada giro dos pedais o coloca mais próximo do seu objetivo imediato: um reencontro consigo mesmo.

    Ele não queria viajar ao Rio de Janeiro nesta quarta-feira (25) para receber as homenagens na partida entre Brasil e Colômbia. Não é que ele não goste de ser celebrado, mas a viagem lhe custaria duas sessões de fisioterapia. Quem o convenceu a ir foi o goleiro Follmann, que teve alta do hospital nesta terça-feira (24).

    "Para a gente que estava muito mal, um dia faz uma diferença enorme. Eu sinto que dia após dia o meu corpo vem respondendo da melhor maneira. Eu não queria ir ao Rio para não perder a fisioterapia. Estou reconstruindo meu corpo, e cada dia é um tijolinho a mais que eu coloco. Mas então o Follmann me ligou, disse que tínhamos que ir, que somos sobreviventes, e me convenceu", diz à Folha logo depois de quatro horas de exercícios.

    Sobrevivente do acidente aéreo que em novembro do ano passado deixou 71 mortos, entre eles 19 jogadores da Chapecoense, Neto é o que esteve em condições mais críticas - "quase morri três vezes no hospital". Hoje, ele já conquistou relativa independência, caminha sem muletas e conversa com naturalidade.

    "Tenho problema no joelho ainda, o ligamento cruzado posterior rompeu e o cruzado anterior estirou. Na coluna, tive um achatamento de vértebra. Tenho fraturas nos punhos, que já estão bem melhores, não sinto mais a dor de antes, que era grande. Tenho também uma lesão na canela, que deixou a perna dormente. Eu fico mais debilitado pelas lesões da coluna e do joelho. Mas uma hora ou outra elas vão passar. Minha vida nunca vai ser igual, mas meu corpo vai se recuperando, minha mente vai entrando no lugar", explica, sobre as limitações que ainda tem.

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    Essas dores, segundo Neto, incomodam mais quando não deixam fazer duas coisas: jogar futebol e brincar com seus filhos.

    "Sinto falta de estar dentro de campo, de treinar, de correr, de me sentir forte. Sinto falta de pegar os meus filhos no colo, abraçar e levar pela casa, que é uma coisa que eu tinha mania de fazer. Eles já são grandes, mas como eu era forte podia fazer isso. Hoje o joelho e a coluna me impedem", lamenta.

    A despeito das sequelas que permanecem, Neto diz não ter ódio do piloto Miguel Quiroga, apontado como um dos possíveis responsáveis pelo acidente por ter abastecido a aeronave com uma quantidade menor do que a necessária para o trajeto.

    "É impossível ter raiva de alguém que morreu. A gente tem que ter compaixão. Ele errou, claro, mas o erro está muito além dele. Fomos vítimas de tudo isso, tanto os sobreviventes como aqueles que se foram. Ele tinha um plano de voo que nós não conhecíamos, mas outros conheciam, e muita gente no aeroporto de lá [Bolívia] sabia. Não podemos culpar só um cidadão. Tem muita gente envolvida. Logo a Justiça vai chegar e eles serão punidos pelo que fizeram. A Bíblia diz que um dia todos nós seremos julgados. Um dia Deus vai julgá-lo da melhor maneira possível, correta e justa", acredita.

    Depois do acidente, Neto passou mais de dez dias em coma. Ele não tem memórias relativas ao resgate em Medellín nem a seus primeiros dias no hospital. As últimas lembranças são dos momentos que antecederam a tragédia.

    "Escureceu tudo, eu achei muito estranho, comecei a orar junto de companheiros e aí não lembro de mais nada, recobrei consciência dez dias depois. Muita gente acha que teve desespero, correria, e não foi assim. Teve muita oração, mas incerteza também, porque a gente não sabia se estava pousando ou caindo".

    DE VOLTA À ZAGA

    Neto não recebeu uma previsão dos médicos sobre quando voltaria a jogar, e até prefere não criar expectativas em torno desse retorno. Ele agora reza pela cartilha do "um dia de cada vez".

    "Não existe previsão para quem caiu de um avião. Quero voltar o quanto antes, porque é o que eu sei e gosto de fazer. Só de estar vivo eu tenho que agradecer e treinar para voltar a jogar futebol. Mas não cobro previsões do médico e é uma pressa e uma pressão que eu nem quero ter".

    Como muitos que passam por experiências também trágicas – mas dificilmente tão retumbantes–, Neto se apegou aos detalhes rotineiros da vida que levava anteriormente. E é a eles que ele recorre para se motivar.

    "Passei a dar mais valor às pequenas coisas. Quando eu estava na cama, não sabia tomar água nem ficar de pé. Agora qualquer problema que venha é mínimo. A lição que eu tirei é que quando estamos com fé e saúde nós podemos reverter qualquer problema. A vida é passageira demais: para alguns dura menos de um ano, para outros dura 20, ou 70. O valor que é dado para dinheiro, fama e sucesso não levam a lugar nenhum", filosofa.

    A futura volta aos gramados dá frio na barriga. Mas será apenas nesse momento que ele poderá se ver novamente como o que sempre quis ser na vida.

    "Depois de tudo que passou vai ser como entrar em campo pela primeira vez ou até como nascer de novo. Meus filhos, esposa e pais torcem por mim e querem que eu volte. Minha motivação é voltar ao nível que eu estava. Tem um tempo na vida que você está se sentindo bem, forte, e não quer deixar aquele momento para trás. Eu quero voltar a ficar assim. Vou sofrer, vai ser duro, afinal eu caí de um avião. Mas me motivo ao saber que tem muita gente que me ama dizendo que vai dar certo. Eu quero voltar a campo para viver o sonho que eu tinha quando criança, na Pavuna [bairro da zona norte do Rio], de ser jogador de futebol".

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