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    Doping russo e Jogos de 2024 criam conflito interno no esporte dos EUA

    REBECCA R. RUIZ
    DO "THE NEW YORK TIMES"

    01/03/2017 13h26

    Alex Wong/Getty Images/AFP
    Travis Tygart, o diretor da agência antidoping norte-americana, durante audiência no Congresso
    Travis Tygart, o diretor da agência antidoping norte-americana, durante audiência no Congresso

    Os dirigentes da Agência Antidoping dos Estados Unidos estão pressionando por uma resposta vigorosa ao programa de doping comandado pelo Estado russo, e fazem lobby junto aos dirigentes esportivos internacionais por sanções mais rigorosas e por uma revisão do sistema regulatório mundial.

    Os dirigentes do Comitê Olímpico dos Estados Unidos têm agenda muito diferente: estão fazendo lobby junto às mesmas autoridades esportivas para que Los Angeles seja escolhida como sede da Olimpíada de 2024, o que provavelmente beneficiaria o comitê em termos financeiros, e pressionando o Congresso para que este não amplifique as preocupações antidoping.

    As agendas concorrentes colocaram em conflito alguns dos mais poderosos dirigentes esportivos do planeta, agora que o comitê está ingressando nos meses finais da corrida para trazer a Olimpíada de volta aos Estados Unidos pela primeira vez desde 2002 –nos Jogos de Inverno de Salt Lake City.

    "Brigar com a organização responsável por escolher a sede de futuros Jogos Olímpicos -isso é um grande erro", disse Vitaly Smirnov, influente dirigente russo do movimento olímpico.

    Ele destacou as críticas de Travis Tygart, o diretor da agência antidoping norte-americana, que vem defendendo penalidades severas para a Rússia. "Esse cavalheiro está realizando um trabalho muito contraproducente com respeito à candidatura de Los Angeles", disse Smirnov.

    A escolha para a sede da Olimpíada de 2024 está entre Los Angeles e Paris, e os dirigentes olímpicos dos Estados Unidos e outros poderosos interesses envolvidos na candidatura expressaram preocupação aos membros do Congresso no sentido de que a cruzada pelo esporte limpo possa alienar alguns dos dirigentes internacionais que tomarão a decisão.

    Tygart manteve sua cruzada nesta terça-feira (28), quando depôs diante de um subcomitê da Câmara dos Deputados norte-americana sobre o escândalo de doping e as maneiras pelas quais o sistema esportivo mundial poderia ser melhorado.

    Em companhia dele estavam Michael Phelps, o atleta olímpico mais vencedor do planeta; Adam Nelson, que recebeu uma medalha de ouro quase uma década depois de sua participação na disputa olímpica do arremesso de peso, em 2004, porque um concorrente foi desqualificado por doping; e dirigentes do Comitê Olímpico Internacional (COI) e da Agência Mundial Antidoping, para a qual os Estados Unidos contribuem com US$ 2 milhões em verbas a cada ano.

    Scott Blackmun, presidente do Comitê Olímpico dos Estados Unidos, reconheceu que ao longo do ano passado sua organização discutiu a candidatura de Los Angeles, e diversas outras questões, com a Câmara e o Senado dos Estados Unidos.

    O comitê de Comércio do Senado, que não convocou uma audiência mas confirmou que inquérito paralelo continua, anunciou no sábado que havia "contestado as sugestões de que a candidatura a sediar os jogos de 2024 seja motivo legítimo para suspender ou postergar a fiscalização necessária do doping em competições internacionais".

    Blackmun disse que ele imaginava que uma audiência no Congresso fosse "mais produtiva" depois que os dirigentes do esporte internacional sinalizaram de que maneira planejavam tratar do escândalo, e que ele apoiava o desejo dos legisladores de se manterem informados. Ele também disse que apoiava a luta pelo esporte limpo, mas que sua organização preferia uma abordagem mais discreta.

    Enquanto o escândalo do doping russo conturbava o esporte internacional nas semanas que antecederam a Olimpíada do Rio, com os dirigentes correndo para responder à pressão aplicada por Tygart e outros, que pediam sanções radicais, o Comitê Olímpico dos Estados Unidos trabalhava para evitar atenção do Congresso à questão.

    "Não estávamos dizendo que audiências seriam inapropriadas, mas em lugar disso que realizá-las logo antes dos Jogos Olímpicos não era o momento certo", disse Blackmun.

    "O estilo de Travis... Seria mentira dizer que isso não tem impacto", disse ele sobre Tygart e a candidatura olímpica norte-americana. "Ele está fazendo seu trabalho, claro, e o faz realmente bem. Se preferiríamos que ele fosse mais delicado ao expressar suas opiniões? Com certeza sim".

    Tygart desconsidera as críticas aos seus métodos. "Não é incomum, quando você está tentando fazer a coisa certa, que existam tentativas de pressioná-lo a recuar quanto aos seus valores fundamentais", ele disse.

    Ainda que as sedes das duas organizações fiquem a apenas alguns quilômetros de distância, na cidade de Colorado Springs, seus líderes raramente se encontram em pessoa. Quando isso acontece, costuma ser no aeroporto, já que ambos viajam frequentemente. Eles conversam ao telefone a cada dois ou três meses.

    Embora as duas organizações estejam a serviço dos atletas dos Estados Unidos, suas ações nem sempre estão em harmonia. A tensão nos últimos 12 meses não surpreendeu os atletas norte-americanos, que expressaram frustração diante do que definem como hesitação dos dirigentes internacionais quanto a punir a Rússia por suas trapaças sistemáticas.

    "O COI é responsável pela integridade das olimpíadas e por mantê-las funcionando, e eles não estão cumprindo seu dever", disse Sarah Konrad, biatleta norte-americana que até o mês passado presidia o comitê consultivo de atletas do Comitê Olímpico dos Estados Unidos. "Sei que Scott Blackmun acredita que a Agência Mundial Antidoping e o COI precisam fazer mais, mas ele não está disposto a subir ao pódio e falar disso abertamente, por causa da candidatura".

    Solicitado a comentar a declaração de Konrad, Blackmun a definiu como "pessoa muito inteligente".

    O anfitrião dos jogos de 2024 será determinado em setembro, por voto secreto dos cerca de 100 membros do COI, que representam países que vão do Brasil ao Liechtenstein e Coreia do Norte. A Rússia conta com três votos.

    Os dirigentes esportivos internacionais estão acostumados a ter autonomia e podem se irritar com o escrutínio do governo norte-americano, esta semana, o que leva observadores como Konrad a imaginar se a investigação não causará mais mal do que bem.

    "Queremos que o COI seja independente, e que nada tenha a ver com política", disse Gerhard Heiberg, veterano membro do COI pela Noruega. "É claro que isso não é possível, mas seria muito difícil ter um país determinado envolvido em como lidamos com a questão do doping, e nos pressionando."

    Heiberg disse que os votos individuais dos membros do COI muitas vezes são decididos por capricho. "Em 13 de setembro, quando escolhermos entre Los Angeles e Paris, muita gente votará com o coração", ele disse.

    O interesse do Congresso pelo escândalo de doping, o ativismo de Tygart e os inquéritos dos Estados Unidos sobre a corrupção nos esportes internacionais -do caso da Fifa, o órgão que comanda o futebol mundial, a uma investigação do Departamento da Justiça sobre o escândalo de doping na Rússia- podem definir a maneira pela qual seus colegas votarão, disse Heiberg.

    "Isso pode afetar alguns membros -se vocês querem os Jogos, não misturem as coisas", ele afirmou.

    Gian Franco Kasper, da Suíça, integrante do comitê executivo do COI, também declarou que a fala dura de Tygart, somada à eleição de Donald Trump como presidente, pode tornar Los Angeles menos atraente como sede.

    Trump expressou apoio público à candidatura olímpica de Los Angeles, ainda que algumas de suas políticas -especialmente as relacionadas à imigração, entre as quais a ordem executiva que proíbe a entrada de visitantes de sete países predominantemente muçulmanos nos Estados Unidos- tenham causado preocupação às autoridades esportivas.

    Blackmun disse que o Comitê Olímpico dos Estados Unidos recebeu garantias do Departamento de Estado e do Departamento de Segurança Interna (DSI) de que os atletas e dirigentes esportivos internacionais não teriam problemas para entrar nos Estados Unidos em 2024.

    "Os Jogos estão a mais de sete anos de distância e, francamente, o COI já passou por isso diversas vezes", disse Blackmun. "Creio que eles tenham a capacidade de olhar além do horizonte político ou situacional de curto prazo".

    Já que o número de cidades interessadas em sediar Jogos Olímpicos vem caindo, o presidente do COI sugeriu que gostaria de ver menos "derrotados" no processo, o que gerou especulações de que Paris e Londres podem ser escolhidas ao mesmo tempo para sediar os Jogos de 2024 e 2028.

    Mesmo assim, Blackmun enfatizou na semana passada, em seu escritório no quinto andar da sede do Comitê Olímpico dos Estados Unidos, decorado com grandes fotos de atletas norte-americanos marchando em diversos desfiles de abertura olímpicos, que o foco norte-americano estava exclusivamente na Olimpíada de 2024. Se Los Angeles for escolhida, disse Blackmun, os jogos poderiam oferecer como exemplo o forte sistema antidoping dos Estados Unidos.

    A 10 minutos de carro dali, Tygart apontou para lemas motivacionais inscritos nas paredes da cozinha da agência antidoping norte-americana. "Coragem", ele disse, apontando para uma das palavras, por sobre o refrigerador. "Isso é o mais importante".

    Edwin Moses, medalhista olímpico e presidente do conselho da agência antidoping norte-americana, expressou consternação por a posição da agência em defesa dos princípios do esporte limpo poder solapar a candidatura de Los Angeles.

    "Se defender os direitos dos atletas e o fair play diminui as chances de um país sediar os Jogos Olímpicos... uau", ele disse. "Isso diz tudo que é preciso saber sobre o processo. E é por isso que o esporte não deveria estar encarregado de se policiar".

    Konrad, a biatleta olímpica, disse apreciar o fato de que Tygart tenha aberto mão de um relacionamento estreito com os dirigentes olímpicos, exibindo a independência que ele e outros defendem que as autoridades regulatórias tenham em nível mundial.

    "Entendo a posição das pessoas que preferem não se pronunciar porque querem que Los Angeles seja escolhida", disse Konrad. "Mas uma disputa limpa é mais importante para mim do que jogar em casa".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    Edição impressa
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