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    Calçados podem ter dado vantagem a vencedores da maratona na Rio 2016

    JERÉ LONGMAN
    DO "THE NEW YORK TIMES"

    12/03/2017 12h00

    Lucy Nicholson/Reuters
    Eliud Kipchoge (KEN)
    Queniano Eliud Kipchoge venceu a maratona na Rio 2016 com calçados que causam polêmica

    As sapatilhas vêm em cores que costumam estar associadas a drinques tropicais - verde limão, laranja e cor de rosa, como se o logotipo na lateral devesse ser um guarda-chuva de papel em lugar do símbolo da Nike. Quem as vê quase espera que as palmilhas tenham cheiro de rum e coco.

    Se o esquema de cores sugere frivolidade, os resultados nas pistas apontam para o contrário. As sapatilhas em questão foram usadas pelos três medalhistas na maratona da Olimpíada do Rio de Janeiro, no ano passado. Mais tarde, no final do ano, foram usadas pelos vencedores de grandes maratonas em Berlim, Chicago e Nova York.

    Os mais recentes projetos para os calçados de atletismo produziram tempos rápidos e resultados impressionantes em provas internacionais. Mas causaram mais um debate quanto ao avanço da tecnologia e a área cinzenta na qual confluem inovação e regras extremamente imprecisas sobre o que constitui assistência desleal ao desempenho, em termos de calçados.

    Qual é o limite de assistência permissível?

    Muitos esportes vêm enfrentando dificuldade para encontrar uma resposta. A natação, primeiro, autorizou trajes que envolviam o corpo inteiro e ajudaram no estabelecimento de muitos recordes, mas os proibiu depois da Olimpíada de Pequim, em 2008, porque eles propiciavam vantagem indevida em termos de flutuação e velocidade. E o atletismo vem há muito tempo tentado resolver a questão das próteses em forma de lâmina usadas pelo velocista sul-africano Oscar Pistorius.

    A mais recente causa de disputa são os calçados. A Iaaf, (sigla em inglês da Associação Internacional de Federações de Atletismo), organização que comanda o atletismo mundial, anunciou por e-mail ter recebido diversas consultas sobre o uso por atletas de calçados de design novo, produzidos por diversas companhias. O comitê técnico da entidade se reunirá dentro de duas semanas para "verificar se precisamos mudar ou revisar aprovações".

    Bret Schoolmester, o diretor sênior mundial da Nike para calçados de corrida, disse que "estamos muito confiantes em que aquilo que fazemos respeita as regras e é leal".
    Na terça-feira, a Nike lançou uma nova sapatilha, uma versão especial do modelo usado pelos maratonistas vencedores no Rio e em outras provas importantes nos últimos meses, como parte da audaciosa - e, segundo alguns, manipuladora - tentativa da empresa de reduzir o atual recorde da prova, de 2h2min57seg para menos de duas horas.

    George Hirsch, presidente da New York Road Runners, que organiza a maratona de Nova York e mais de 50 outras provas, disse que todo tipo de competição, das provas de elite a corridas organizadas por faixa etária, seria afetada pela mais recente tecnologia dos calçados. Verificar os calçados de centenas ou milhares de corredores antes de cada prova seria impossível, ele disse.
    "Isso muda o jogo, no sentido de que se as empresas produtoras de calçados obtiverem patentes e esses calçados chegarem ao mercado e forem usados por muita gente, teríamos de questionar se a competição está sendo justa, já que muitas pessoas poderão desfrutar dessas vantagens", disse Hirsch.

    Todos os calçados são vistos como um fator de melhora de desempenho. De outra forma, todo mundo correria descalço. Mas em que momento a vantagem que eles conferem passa a ser considerada como desleal? Ninguém sabe ao certo.

    "É uma área engraçada, essa da ética tecnológica do esporte em que estamos ingressando", disse Ross Tucker, um fisiologista do exercício sul-africano que escreve no blog "Science of Sport", muito acompanhado pelos corredores.

    Quando as raquetes de tênis passaram a ser fabricadas com metal em lugar de madeira, ele disse, "aposto que a mesma discussão aconteceu".

    A sapatilha da Nike usada pelos medalhistas olímpicos, que começará a ser vendida em junho por US$ 250, leva o nome Zoom Vaporfly. O calçado que será usado no Breaking2, o projeto da Nike para derrubar o recorde das duas horas na maratona, é uma versão especial chamada Zoom Vaporfly Elite, que a empresa define como uma espécie de "carro conceitual" do modelo, produzido especialmente para o atletismo profissional.
    Três maratonistas do leste africano patrocinados pela Nike, entre os quais o queniano Eliud Kipchoge, vencedor da maratona olímpica de 2016, tentarão bater o recorde mundial da maratona em uma pista de Fórmula 1 na região de Monza, Itália. E a Nike já declarou que a tentativa não atenderá a todos os requisitos necessários para um recorde oficial.

    Alguns críticos acusaram a Nike de organizar um golpe de publicidade, ou uma campanha de marketing, e não um evento esportivo confiável.

    As sapatilhas pesam cerca de 180 gramas e têm uma entressola espessa mas leve que, ao que se alega, propicia 13% mais energia que os solados de espuma convencionais. Kipchoge disse que gosta da proteção que o acolchoado oferece, e da redução das dores que ele sofre em suas pernas quando está se recuperando de corridas longas.

    Incorporada à entressola há uma placa rígida de fibra de carbono encurvada como uma colher. A placa foi projetada para reduzir o volume de oxigênio necessária para correr rapidamente. A placa armazena e libera energia a cada passo, e tem o objetivo de servir como uma espécie de estilingue ou catapulta, propelindo o corredor.

    A Nike diz que as placas de fibra de carbono reduzem em 4% a energia necessária para correr a uma dada velocidade, em comparação com outros de seus populares calçados de corrida.
    Se essa estimativa procede, disse Tucker, o cientista do esporte sul-africano, a vantagem seria o equivalente a "correr na descida com uma inclinação considerável", da ordem de 15% a 1,5%.
    "É uma diferença enorme", ele acrescentou.

    A Iaaf está sob assédio em diversas frentes, com casos de corrupção, doping, e questões quanto ao nível de testosterona permitido nas atletas mulheres. E a organização há muito tempo parece despreparada para definir o que os atletas estão autorizados a usar em seus pés e pernas.

    Isso se aplica especialmente ao caso de Pistorius, um atleta que teve as pernas amputadas e conquistou uma decisão favorável em um tribunal internacional do esporte que o autorizou a competir na categoria regular do atletismo na Olimpíada de Londres, em 2012. (Pistorius está servindo uma sentença de seis anos de prisão pelo assassinato de sua namorada em 2013.)

    Em 2007, durante o caso Pistorius, a Iaaf adotou uma regra que proíbe o uso de recursos de assistência que incorporem molas ou rodas, que parecia ter sido redigida para tornar ilegais as lâminas de fibra de carbono, no formato da letra J, que Pistorius usa como próteses. Naquela ano, a Spira Footwear anunciou que suas sapatilhas de corrida haviam sido proibidas por causa do uso de uma tecnologia de molas que a Iaaf considerou indevida.

    Mas as regras da organização se tornaram mais ambíguas desde que Pistorius venceu seu caso no Tribunal Arbitral do Esporte.
    A regra 143 da Iaaf agora dispõe que os calçados "não devem ser fabricados de forma a propiciar a um atleta vantagens adicionais desleais, o que inclui a incorporação de qualquer tecnologia que confira ao atleta uma vantagem desleal".

    O que constitui uma vantagem desleal? A regra não explica.

    O texto dispõe que "todos os tipos de calçados de competição precisam ser aprovados pela Iaaf". Mas a Nike disse não estar informada sobre qualquer processo formal de aprovação e que os fabricantes de calçados não costumam submeter seus modelos para aprovação como procedimento regular.

    Dirigentes da Nike também disseram estar trabalhando em estreito contato com a Iaaf quanto ao projeto da pista e aos testes antidoping do projeto Breaking2, e que os calçados seriam "compartilhados" com a organização normativa. Eles também apontaram que solas de fibra de carbono já foram usados pela indústria de calçados esportivos, no passado.

    "Estamos conferindo aos atletas um benefício que se enquadra às regras atuais", disse Schoolmeester, o executivo da Nike, acrescentando que "não estamos usando nenhuma forma de molas ilegais ou nada parecido".
    Tucker, fisiologista do exercício na Escola de medicina da Universidade do Estado Livre, em Bloemfontein, África do Sul, disse que em sua opinião o calçado da Nike "provavelmente deveria ser considerado ilegal", porque seu propósito é funcionar como uma mola. Se o modelo for proibido, ele disse, isso deveria acontecer em coordenação com uma revisão das imprecisas regras da Iaaf.

    O mais veloz dos maratonistas da Nike até hoje, Kenenisa Bekele, da Etiópia, participa de um projeto concorrente para derrubar o recorde das duas horas, organizado por Yannis Pitsiladis, cientista do esporte na Inglaterra. Na maratona de Berlim, em setembro, Bekele usou o Zoom Vaporfly e registrou o segundo melhor tempo na história das maratonas, com 2h3min3seg. Ele planeja usar o modelo em sua tentativa de quebrar o recorde mundial na Maratona de Londres, em abril.

    Este ano, Pitsiladis realizou um exame de ressonância magnética na sapatilha usada por Bekele em Berlim. Foi só então que ele percebeu a presença do que parecia ser uma placa de fibra de carbono na entressola.
    Porque a placa parecia funcionar como uma mola, disse Pitsiladis, a expectativa dele era a de que o calçado fosse proibido. Mas enquanto isso não acontecer, Bekele planeja continuar a usar o modelo. Ele disse, por intermédio de Pitsiladis, que a proteção acolchoada o agrada, bem como o fato de que os músculos de seus tornozelos não doem em provas longas.

    "Será que ele poderá usar a sapatilha em Londres?", questionou Pitsiladis, professor de ciência do exercício na Universidade de Brighton, Inglaterra. "Ou, depois da corrida, alguém me dirá que o recorde mundial não vale porque ele usou um calçado proibido?"

    Os atletas que competiram contra corredores equipados com o Zoom Vaporfly na olimpíada e outras grandes maratonas também estão curiosos para saber mais sobre o calçado.

    "Os atletas vão se irritar", se o modelo for ilegal, disse Hawi Keflezighi, agente e irmão de Meb Keflezighi, medalhista de prata olímpico em Los Angeles, 2004. "Mas ao mesmo tempo sempre acreditamos em inocência até prova em contrário". Meb Keflezighi concluiu a seletiva olímpica para 2016 em segundo lugar, atrás de Galen Rupp, mas enfrentou dificuldades na prova por conta de um problema estomacal, no Rio. Ele usa sapatilhas Sketchers.

    O uso generalizado do doping é preocupação mais urgente do que a tecnologia dos calçados, na opinião do Meb Keflezighi, segundo seu irmão. "Qual é o limite? Quando uma fabricante de calçados disser que está indo além do permitido por ter uma mola ou algo assim em seus calçados?"

    Na verdade, dizem os especialistas, o debate sobre os mais recentes modelos da Nike pode servir para elevar as vendas dos novos calçados aos atletas amadores e aos corredores que fazem uma maratona em quatro horas. Um modelo menos dispendioso que a sapatilha olímpica, mas com tecnologia semelhante, será colocado à venda em junho por US$ 150.

    "Para mim, é quase um cumprimento que, por estarmos propiciando um benefício tão grande, as pessoas comecem a perguntar se o que estamos fazendo é lícito", disse Schoolmeester. "Não concordamos que seja, mas ainda assim é muito lisonjeiro".

    Jos Hermens, antigo fundista holandês cuja agência de esportes representa o campeão olímpico Kipchoge, Bekele e outros importantes maratonistas, disse que ficaria "surpreso e desapontado" se o mais recente modelo vier a ser proibido.

    O esporte deve continuar a receber bem os avanços tecnológicos, ele disse, da mesma forma que fez quando as pistas de atletismo deixaram de ser pavimentadas com cimento e passaram a ser revestidas com borracha sintética, as varas do salto com vara deixaram de ser de bambu e passaram a ser de fibra de vidro, e os calçados começaram a incorporar bolhas de ar e gel para atenuar impactos.

    "Não estamos vivendo na era medieval", disse Hermens. "Haverá novas técnicas e materiais. É hora de termos algo que represente um avanço e não um recuo".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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