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    Os oponentes mais duros dos arruaceiros do futebol russo? A polícia

    PATRICK REEVELL
    DO "THE NEW YORK TIMES"

    01/05/2017 02h00

    James Hill/The New York Times
    Torcedores do CSKA Moscou em jogo realizado em 2016 contra o Rubin Kazan
    Torcedores do CSKA Moscou em jogo realizado em 2016 contra o Rubin Kazan

    Segurando dois oponentes pelos tornozelos, Alex, 33, membro de um grupo de arruaceiros que torce por um clube de futebol de Moscou, sentia os golpes que estava levando na cabeça, mas não largava os inimigos.

    O terceiro adversário, por cima dele, estava socando seu crânio com os dois punhos, mas Alex não soltava os outros oponentes, com a esperança de ajudar os amigos, que brigavam em torno dele.

    Por fim, o sujeito atingiu o rosto de Alex com uma cotovelada, quebrando o osso de sua cavidade ocular.

    Aquela não era a primeira briga, para Alex. Anos de pancadaria organizada o haviam deixado com o rosto alterado como resultado de golpes (Uma cirurgia e um implante plástico estabilizaram o seu olho depois da briga mais recente.) E aquele último combate, quase um ano atrás, foi bom, disse Alex em entrevista. Sua turma ganhou.

    O que o incomodou foi uma sensação nova: ele começou a perceber que estava difícil acompanhar o ritmo.

    Quando surgiram inicialmente, nos anos 90, os arruaceiros do futebol russo tomaram como exemplo os hooligans ingleses, adotando roupas e terminologia parecidas, o que inclui o termo usado para descrever as torcidas organizadas que eles formam: "firmas". Os russos também adotaram a paixão inglesa por beber até desmaiar e por brigar com qualquer um quando embriagados.

    "Os ingleses foram a nossa escola", disse Yevgeny Malinkin, um torcedor na casa dos 40 anos, conhecido entre os colegas como Kril. "Agora perdemos os nossos pais. Nós os superamos".

    E é verdade que as arruaças no futebol russo passaram por uma transformação. A nova geração não mostra muita semelhança com a belicosidade movida por cerveja e com as trocas de socos entre bêbados que caracterizam os hooligans tradicionais do futebol europeu, e tampouco exibe a violência com traços paramilitares vista nas torcidas organizadas mais fanáticas da América do Sul.

    Em lugar disso, os torcedores violentos que emergiram na Rússia nos últimos dez anos são obcecados com o condicionamento físico, o treinamento marcial de elite e, ao menos durante as brigas, praticam uma sobriedade militante.

    Conhecido como "okolofutbola", ou "ao redor do futebol", o ambiente das torcidas violentas russas se tornou provavelmente o mais radical do futebol europeu e, um ano antes que seu país sedie a Copa do Mundo, os torcedores russos mais combativos parecem estar na melhor forma de suas vidas.

    Mas embora sua capacidade de combate não esteja em dúvida, os observadores de torcidas, as autoridades do futebol e até mesmo os próprios arruaceiros dizem que não há qualquer chance de que a desordem que os torcedores russos causaram na Eurocopa da França, no ano passado, seja repetida em seu país.

    Em lugar disso, os torcedores violentos estão sofrendo uma repressão sem precedentes por parte das autoridades, que estão determinadas a garantir que a Copa do Mundo transcorra sem dificuldades.

    Entrevistas com mais de uma dezena de torcedores e membros de grupos de hooligans, nos últimos cinco meses, revelaram uma nova onda de detenções e buscas que tomaram por alvo os grupos de torcedores mais violentos e seus líderes, com a polícia adotando medidas mais associadas a operações de repressão política e de combate ao terrorismo do que ao combate aos arruaceiros do esporte.

    "Pode acreditar", disse Andrei Malosolov, jornalista de futebol que ajudou a criar uma torcida organizada para a seleção de futebol russa, "os anos anteriores à Copa do Mundo de 2018 serão os mais sossegados na história do futebol da Rússia".

    PRONTOS PARA A BATALHA

    Em Marselha, em junho do ano passado, rapidamente se tornou aparente que os russos estavam lá para brigar.

    Milhares de torcedores ingleses se concentravam no velho porto da cidade do sul da França, antes da partida entre a seleção de seu país e a da Rússia pela Eurocopa. Os ingleses –muitos dos quais estavam bebendo há três dias– haviam ocupado os cafés diante do mar, de onde alguns deles de vez em quando lançavam objetos contra a polícia de choque francesa que estava de prontidão.

    Os russos, enquanto isso, haviam desembarcado em Barcelona, na Espanha, e se identificavam mutuamente cantando canções punk russas. Ao chegar em Marselha, receberam mensagens de texto com instruções sobre onde deveriam se reunir. Sem nem mesmo parar para deixar a bagagem, a maioria deles partiu direto para o confronto com os ingleses.

    "Nem conseguimos chegar ao fim da primeira cerveja quando ouvimos um grito e o nosso pessoal começou a dizer 'e então, estamos aqui para quê?'", contou Ivan, um torcedor troncudo, que viajou com um grupo de uma dúzia de amigos à França, em uma conversa em um bar de Moscou recentemente. "Entramos naquela praça e começamos a trabalhar sem dó, em 360 graus". Ivan, como muitos dos entrevistados que ainda fazem parte de grupos de torcedores que procuram brigas, se recusou a permitir o uso de seu sobrenome, por medo da polícia.

    Os russos atacaram os ingleses como se estivessem integrassem uma unidade de cavalaria. Em questão de minutos, o porto se tornou um campo de batalha, com torcedores brigando em meio a uma, garrafas de cerveja e cadeiras arremessadas. Cerca de 200 russos, muitos dos quais usando máscaras e luvas de combate de MMA (artes marciais mistas), rodopiavam em meio ao caos, capturando imagens com câmeras GoPro presas em seus corpos.

    A violência continuou no estádio, naquela noite, quando centenas de torcedores ingleses e espectadores neutros se viram forçados a fugir de uma nova carga russa. O caos deixou 35 feridos. Embora os ingleses também tenham entrado em choque com a polícia, o que resultou em meia dúzia de detenções, a maioria dos observadores se espantou com a violência muito mais eficiente praticada pelos russos.

    Brice Robin, procurador da justiça francesa em Marselha, descreveu os russos em termos quase militares, dizendo a repórteres que eles eram "bem treinados" e capazes de "ações hiper-rápidas e hiperviolentas". A polícia francesa expulsou 50 russos do país –pelo menos um líder de torcida conseguiu voltar e teve de ser expulso uma segunda vez– e a Uefa, a organização que comanda o futebol europeu, multou a federação russa em US$ 170 mil, além de ameaça desclassificar a seleção do torneio.

    O episódio despertou uma nova e preocupante questão: os torcedores visitantes estariam em risco de ataque por esquadrões de arruaceiros altamente treinados, na Copa do Mundo do ano que vem?

    O fato de que alguns veículos estatais de mídia e algumas autoridades russas parecessem estar encorajando a violência, ou no mínimo a aceitando tacitamente, reforçava ainda mais as dúvidas.

    "Os torcedores russos são diferentes", disse Antoine Boutonnet, diretor da divisão nacional de combate à violência no futebol da polícia francesa. "São quase paramilitares."

    TREINAMENTO NO BOSQUE

    "Vejo a nova geração e realmente me surpreendo", disse Elena Bykova, produtora que realizou um filme com hooligans no elenco. "Eles não gostam de drogas ou álcool e estão sempre na academia."

    A evolução dos torcedores acompanha movimentos mais amplos na sociedade russa.

    A tendência em favor das artes marciais e do condicionamento físico –em parte promovida pelo Kremlin e pelo presidente Vladimir Putin, um judoca treinado que se orgulha de sua imagem atlética– ganhou espaço entre os torcedores. Ao mesmo tempo, o aparato de segurança estatal russo se reafirmou, o que levou a violência dos arruaceiros do futebol à clandestinidade.

    Embora problemas entre as torcidas continuem a acontecer regularmente nas partidas da liga russa, o policiamento agressivo e as câmeras de observação empregados pelas autoridades há uma década forçaram os mais dedicados hooligans russos a "fugir para o bosque", como dizem os torcedores.

    E eles querem dizer literalmente. A maior parte das brigas entre as torcidas organizadas russas agora acontece em bosques isolados, onde, nos finais de semana, grupos de torcedores de clubes rivais se encontram e formam linhas de batalha em clareiras. Em seguida, as duas linhas se atacam.

    Os combates são selvagens. Os lutadores mais competentes resolvem seus confrontos em segundos, e a maioria dos combatentes termina incapacitada em menos de um minuto. Cinco minutos de briga é uma maratona.

    Há poucas regras: nada de armas, e a briga para quando o árbitro manda. É praticamente só isso. Algumas cortesias são respeitadas: pisões na cabeça são encaradas com desaprovação, embora não sejam proibidos.

    As brigas são usadas como forma de seleção. Os recrutas das diversas firmas são convidados para testes de combate, começando por lutas entre equipes de sete combatentes e depois avançando para equipes de 15 e 20 lutadores. As brigas de elite podem envolver 80 lutadores de cada lado, e ferimentos sérios são comuns: concussões, pernas quebradas, mandíbulas rachadas, crânios fraturados.

    "Se ninguém grita para que paremos, a briga pode continuar", disse Alex, membro da RB Warriors, uma torcida organizada conhecida, do CSKA Moscou.

    "Você precisa bater até que o cara não consiga mais se levantar. Porque se ele puder se levantar, vai atacá-lo por trás. Mas jamais vou pisar na cabeça de alguém. Só os fracos fazem isso."

    A oportunidade de medir forças em combates irrestritos interessa aos praticantes de artes marciais, especialmente formas de boxe tailandês e de outras artes marciais mistas que ganharam popularidade na Rússia.

    Uma corrida armamentista entre as principais firmas, em busca de torcedores bons de briga, fez com que os confrontos se intensificassem. Dada a qualidade dos combatentes, beber antes da briga é uma má ideia, mas o passatempo ganhou popularidade depois de "Okolofutbola", filme produzido por Bykova em 2013.

    Os torcedores mais velhos se espantam diante do número de participantes das brigas atuais. "A coisa se tornou quase um esporte", disse Ivan Sergeev, 37, antigo e famoso integrante de uma das principais firmas de Moscou, a Union, na qual ele era conhecido como Il Duce.

    NA ACADEMIA

    James Hill/The New York Times
    Membros de uma torcida organizada russa praticam artes marciais em academia de Moscou
    Membros de uma torcida organizada russa praticam artes marciais em academia de Moscou

    Em uma noite recente, duas dúzias de jovens se reuniram em uma elegante academia de ginástica de Moscou. Com os rostos ocultos por máscaras de caveira, eles fizeram um aquecimento antes de começar a treinar boxe e luta livre.

    "O nível mudou completamente", disse Yevgeny Berezin, que comandava o treino. Berezin participou de brigas organizadas durante dez anos, mas recentemente parou, para se concentrar em sua carreira de ator.

    As firmas de torcedores violentos hoje se tornaram, para todos os efeitos, clubes de luta clandestinos. Os lutadores mais velhos –com idades entre os trinta e poucos e os 40 e poucos anos– lamentam que muitos de seus colegas mais jovens não se interessem por futebol. Um deles brincou que "proibir as torcidas organizadas não funciona na Rússia porque nossos torcedores não vão aos jogos".

    Os participantes são diversificados –operários da construção, profissionais de tecnologia, preparadores físicos–, mas os mais ativos se veem como lutadores de elite, e seguem um código de honra. Insistem em que jamais atacariam torcedores comuns, apenas outros hooligans.

    "Por que bater em pessoas comuns?", disse Alex. "Não é interessante. Não é justo".

    Ele e outros atribuem os ataques aos ingleses em Marselha ao excesso de entusiasmo, e dizem que os torcedores russos presentes não eram parte de grandes firmas –eram jovens grupos regionais que estavam assistindo ao seu primeiro grande torneio. "Há meninos que bebem e quebram banquinhos na cabeça dos outros", disse Berezin. "Mas isso nada tem a ver com o 'Okolofutbola'. É só arruaça."

    Eles se orgulham especialmente por lutar com as mãos nuas. Hooligans altamente condicionados apareceram em outros países –specialmente na Polônia e na Alemanha–, mas só na Rússia eles parecem ter se tornado parte do caráter nacional.

    Observadores simpáticos aos grupos apontam para a semelhança entre suas brigas nos bosques e um velho jogo camponês chamado "stenka na stenku", no qual duas aldeias se enfrentavam durante festivais.

    Para alguns, as torcidas organizadas e suas brigas se tornaram uma forma de expressão primal da masculinidade russa, o que parece especialmente apropriado em um momento no qual o Kremlin está cultivando a ideia de que a Rússia deve confiar em sua força e só nela, em oposição a uma Europa apática e civilizada em excesso.

    Depois de Marselha, Putin disse que queria entender como "200 russos conseguiram surrar milhares de ingleses". Talvez seja esse o contexto para a proposta recente de um político, que quer transformar as brigas dos arruaceiros em esporte.

    "Já que nossos torcedores são lutadores e não arruaceiros", escreveu em seu site o político, Igor Lebedev, membro do Partido Liberal Democrata e da federação nacional de futebol russa, "podemos transformar as brigas de torcidas em esporte! Adotar regras, criar competições".

    A proposta de Lebedev horrorizou a Europa, mas talvez seja parte do esforço governamental cada vez maior para dissociar as arruaças e o futebol.

    No segundo trimestre de 2016, uma briga entre as duas maiores firmas de Moscou resultou em sentenças de prisão domiciliar para cinco torcedores, entre os quais o líder de uma das firmas. Eles enfrentam a possibilidade de encarceramento –uma punição incomumente severa para esse tipo de briga.

    As prisões assustaram os lutadores, e novas detenções se seguiram, bem como revistas frequentes em moradias de torcedores. Em entrevistas ao "New York Times", diversos deles disseram ter sido visitados por policiais armados, e que receberam telefonemas que os alertavam de que estavam sendo vigiados.

    Em setembro, o clube nacional de torcidas russas foi fechado, e seu presidente, Aleksandr Shprygin, passou algum tempo preso, por conta da mesma briga. No dia seguinte, o carro de Shprygin foi incendiado. O fechamento do clube de torcidas, que pressagiou a prisão de Shprygin e o ataque incendiário, foi visto como punição por ele ter defendido a violência dos torcedores durante a Eurocopa, na França.

    James Hill/The New York Times
     Shprygin at Moscow's Dinamo metro station in November. He had been arrested in September in what many fans saw as punishment for his championing of the violence in France. Credit James Hill for The New York Times
    Aleksandr Shprygin, presidente do clube nacional de torcidas organizadas, foi preso várias vezes

    Como o próprio Shprygin foi hooligan, sua punição foi interpretada como sinal de que as autoridades russas não querem ser vistas como simpáticas a torcedores violentos, agora que a Copa do Mundo se aproxima.

    Na verdade, porém, a pressão sobre os grupos de arruaceiros vem crescendo há anos. Torcedores dizem que ela se intensificou perceptivelmente depois da revolução de 2014 na Ucrânia, quando torcedores de futebol foram vistos como força essencial de combate à polícia.

    O Departamento E do Ministério do Interior russo, responsável por vigiar grupos terroristas e de crime organizado, agora também vigia as torcidas violentas, e muitos torcedores acreditam que suas comunicações estejam sendo monitoradas. Mesmo as brigas nos bosques recentemente se tornaram menos frequentes, dada a possibilidade maior de prisão. "O movimento está paralisado", disse Sergeev.

    Este mês, Putin assinou uma lei que impõe penas mais severas a comportamento desordeiro de torcedores, o que inclui longas proibições de comparecimento a estádios.

    Piora Powar, diretor da Fare, uma organização que fiscaliza o comportamento de torcedores, disse estar "confiante" que não haverá problema sérios na Copa do Mundo. Dada a pressão atual sobre os torcedores e a imensa presença policial prevista para o ano que vem, os torcedores com quem conversei concordam que não há muita esperança de brigar.

    Não que os arruaceiros não desejem fazê-lo.

    "O desejo é forte", disse Alex, da RB Warriors. "Porque quando um evento como esse acontece, ou seja, quando pessoas do mundo inteiro estarão aqui, eu realmente gostaria de brigar", completa.

    Descrevendo como isso poderia acontecer, ele disse que integrantes das torcidas poderiam procurar por hooligans estrangeiros e informar sobre sua localização. Os russos então os seguiriam sorrateiramente e depois realizariam um ataque de surpresa.

    "Ninguém vai matar ninguém", disse Alex. "Só surrá-los um pouco. Você sabe, uma massagem leve". Seria uma vergonha perder essa oportunidade, ele disse.

    "Se não me prenderem", disse Alex, "em 2018, se Deus quiser, vou surrar alguém".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    Edição impressa

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