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    Filmes de Andrei Tarkóvski reverberam a dor do exílio do cineasta

    SÉRGIO ALPENDRE
    DE SÃO PAULO

    27/02/2016 02h00

    Andrei Tarkóvski, cineasta soviético, sai definitivamente de seu país deixando para trás uma parte de sua alma. Seus dois filmes de exílio reverberam essa dor de uma forma tão bela que é muito difícil não nos sentirmos tocados. Primeiro, na Itália, dirige "Nostalgia" (1983), filme esverdeado, que já fala em sacrifício. Depois, na Suécia, realiza sua obra final, "O Sacrifício" (1986), tendo a seu lado o ator (Erland Josephson) e o diretor de fotografia (Sven Nikvist) preferidos de um de seus grandes mestres, Ingmar Bergman.

    Josephson interpreta Alexander, ator, escritor, professor e filósofo que recebe alguns familiares em sua casa isolada para comemorar seu aniversário. Com a chegada da Terceira Guerra Mundial, toda a harmonia bucólica se desfaz dando lugar a tristezas, partidas e loucuras.

    Mais uma vez, apesar do exílio, o filme tem a cara de Tarkóvski. Seus movimentos de câmera muito lentos, a atenção à natureza, o humor peculiar, as cores esmaecidas (por vezes com filtros) e as cenas poéticas em câmera lenta são procedimentos muito imitados hoje em dia, até mesmo banalizados. Mas em seus filmes essas marcas de estilo encontram correspondência na procura por uma espécie de ascese, uma espiritualidade que só o dinamarquês Carl Th. Dreyer conseguia alcançar.

    O perfeccionismo de Tarkóvski também era grande. Em uma cena importante, na qual Alexander bota fogo na casa, houve um problema: o filme emperrou na câmera. Teriam de filmá-la novamente (ou filmá-la para valer), mas a casa já não existia mais. Estava em cinzas. Sugeriram que se utilizasse uma maquete, já disponível para a equipe e utilizada num dos delírios de Alexander. Mas Tarkovski recusou, dizendo que isso iria abalar a veracidade da cena, e ela perderia força. Resultado: construíram novamente uma casa, para ser queimada em seguida.

    Reprodução
    Cena de "O Sacrifício"
    Cena de "O Sacrifício"

    Não é possível dizer que tal sacrifício foi em vão. Esse é o tipo de comprometimento que tinha Tarkóvski, que já sofria com um câncer terminal durante as filmagens. A última imagem deste seu testamento cinematográfico, por sinal, está em sintonia com a primeira imagem de seu primeiro longa, "A Infância de Ivan" (1962): uma criança e uma árvore.

    No DVD duplo temos como bônus o bom documentário "Dirigido por Andrei Tarkóvski" (1988), de Michal Leszczylowski.

    O SACRIFÍCIO
    QUANTO: R$ 49,90
    DIRETOR: Andrei Tarkóvski
    DISTRIBUIDORA: Versátil

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    OUTROS FILMES ESTRANGEIROS

    A VERDADE SOBRE MARLON BRANDO

    Divulgação
    Capa de "A verdade sobre Marlon Brando"
    Capa de "A verdade sobre Marlon Brando"

    O título oportunista em português trabalha contra este belo "Listen to me Marlon", de 2015, inédito nos cinemas. O roteiro, pouco linear, estrutura-se a partir de gravações de áudio inéditas, nas quais a voz de um já idoso Brando, à maneira de uma auto-hipnose, reflete de modo íntimo sobre o sentido de sua trajetória e, principalmente, sobre a arte do ator.

    Excluída a ideia de bombásticas "revelações" em torno de sua vida, "verdade", para Brando, é o que pode dar nome à indefinível emoção que surge, quando, num especial momento de interpretação de cinema, o ator consegue desconstruir clichês e surpreender o público, "interrompendo o movimento da pipoca para a boca".

    Nestas quase "memórias póstumas", a voz do ator e a beckettiana imagem digital inacabada de sua cabeça flutuam sobre o cenário reconstituído de sua casa vazia após a morte. Entremeiam-se com recortes de suas performances e entrevistas e parecem recuperar, ao menos para nós, a paz e a privacidade que nunca conseguiu em vida. (ROBERTO ALVES)

    A VERDADE SOBRE MARLON BRANDO
    QUANTO: R$ 29,90
    DIRETOR: Stevan Riley
    DISTRIBUIDORA: Universal

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    UMA NOVA AMIGA

    O cinema de François Ozon, como o de Pedro Almodóvar, ambos herdeiros da visão lúbrica de Buñuel, tem na sexualidade uma obsessão e um motor. Para eles, o sexo é uma usina de fantasmas e o cinema, por sua dimensão fantasiosa, um espaço perfeito para mostrar o que nem sempre se vê às claras.

    Divulgação
    Capa de "Uma Nova Amiga"
    Capa de "Uma Nova Amiga"

    Em "Uma Nova Amiga" o diretor francês aborda a transexualidade de maneira ao mesmo tempo dramática e lúdica. Ao descobrir que David, viúvo de sua melhor amiga, tem impulso de se vestir de mulher, Claire reage primeiro com repulsa, depois passa à compreensão, até que o afeto evolui e transparece o desejo. David, por sua vez, fascina-se pelas possibilidades femininas de transfiguração por meio de roupas, maquiagens e penteados.

    Seu lado mulher, contudo, não se confunde com um desejo homossexual reprimido, assim como o impulso lésbico de Claire leva-a a querer a amiga que de fato é um homem. No centro dessa fantasia transgênero tratada sem nenhuma caricatura, o ator Romain Duris faz barba, cabelo e bigode. (CÁSSIO STARLING CARLOS)

    UMA NOVA AMIGA
    QUANTO: R$ 39,90
    DIRETOR: François Ozon
    DISTRIBUIDORA: Imovision

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    A VIAGEM DOS COMEDIANTES

    Divulgação
    Capa de "A Viagem dos Comediantes"
    Capa de "A Viagem dos Comediantes"

    A longa duração, as elipses e nosso pouco conhecimento dos fatos relatados podem parecer empecilhos, mas o esforço é recompensado pela descoberta de um dos mais densos e pouco conhecidos exemplares do alto cinema de autor. Dirigido em 1975 pelo grego Theo Angelopoulos, "A Viagem dos Comediantes" segue uma trupe de teatro que perambula por cidadezinhas e testemunha ou protagoniza os dramas e tragédias da história do país, de 1939 a 1952.

    A dominação nazista, a ocupação britânica, o militarismo local e o anticomunismo onipresente são algumas das crises que atravessam o percurso do grupo, que monta uma fábula sobre uma pastora. Em vez da tradicional reencenação da história, em que os acontecimentos não passam de cenário, na visão de Angelopoulos ela emerge do cruzamento de destinos individuais e coletivos e do retorno cíclico dos mitos. Seus planos longos e a liberdade com que reinventa o espaço e o tempo exigem um espectador concentrado, mas os premiam com um cinema cuja ambição era se equiparar aos feitos de Joyce e de Homero. (CSC)

    A VIAGEM DOS COMEDIANTES
    QUANTO: R$ 59,90
    DIRETOR: Theo Angelopoulos
    DISTRIBUIDORA: IMS

    Edição impressa

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