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    Sem usar a vogal "e", francês cria jogo engenhoso de letra e sentido em livro

    RONALDO BRESSANE
    DE SÃO PAULO

    26/03/2016 02h00

    Conforme se percebe no astuto posfácio-solução-de-enigma escrito por Zéfere, o maluco tradutor que traduziu a excêntrica obra "O Sumiço", esse romance deve ser lido como um jogo criado por loucos num hospício. Para além de mera narrativa, o livro é uma coleção de charadas, de brincadeiras verbais, de pistas falsas, de indicações para outros livros, outras peças literárias: um verdadeiro jogo de esconde-esconde que conta com a participação ativa do leitor.

    Participante do OuLiPo, ou Ouvroir de Littérature Potentielle (Oficina de Literatura Potencial), um grupo formado por escritores como Raymond Queneau e Italo Calvino, o francês Georges Perec era um entusiasta das "contraintes": conjunto de regras e restrições que visavam eliminar a ideia de "inspiração" do autor, forçando-o a ser criativo utilizando critérios arbitrários —o tipo de coisa adorada por surrealistas como Alfred Jarry, pai espiritual do grupo.

    Divulgação
    Placa "Disparition", o artista francês Christophe Verdon, simulando sinalização de praça em Paris que homenageia Georges Perece suprime de seu nome a letra que não aparece em qualquer palavrado romance "O Sumiço"
    Placa "Disparition", o artista francês Christophe Verdon, simulando sinalização de praça em Paris que homenageia Georges Perece suprime de seu nome a letra que não aparece em qualquer palavrado romance "O Sumiço"

    "O Sumiço" (no original, "La Disparition", livro de 1969) é tido como um dos mais radicais exemplos de uso de "contraintes": superlipograma, não usa a vogal "e", a letra mais frequente da língua francesa (e segunda mais usada em português: com 12%, perde para os 14,5% do "a", o que, convenhamos, não ajuda tanto assim o tradutor). Lipograma é o tipo de texto que faz uma lipoaspiração e elimina uma letra: em suas 250 páginas, este é o maior lipograma já feito (e só de farra, o romance seguinte de Perec, "Les Revenentes", foi escrito apenas com palavras formadas pela vogal "e").

    Zéfere, o maluco que traduziu Perec (curiosamente dois nomes com "e"), lembra que outro livro de Perec, "W ou A Memória da Infância", é dedicado a "E", que poderia tanto ser a abreviatura de Esther, a tia que cuidou do jovem escritor após a morte —ou o sumiço— dos pais, ou aos próprios pais, uma vez que "eux", "eles" em francês, lê-se como "e" (o pai de Perec morreu na guerra; a mãe, em Auschwitz).

    Entre outras intrigantes coincidências, "E" é a primeira palavra de "Emeth", a palavra que, escrita na testa do Golem judaico, lhe dá a vida e, quando apagada, lhe traz a morte. O três também é importante e surge em várias estruturas frasais triádicas —afinal, é um "E" invertido. Segundo a concepção literária de Perec, que pede a conexão entre todos os seus textos, "O Sumiço" evoca outros livros, seus e de contemporâneos ou que lhe formaram a estante: "Moby Dick" (Melville), "A Invenção de Morel" (Bioy Casares), "O Homem que Dorme" (dele mesmo), sem falar de poemas japoneses, franceses, ingleses, que ressurgem citados ou transmutados, e sem falar nas centenas de citações literárias.

    Afinal, tudo é literatura para Perec e é disso que trata a trama de "O Sumiço". O desaparecimento da letra é o próprio tema do livro: um romance policial que investiga a ausência da letra "e" do mundo, a princípio percebida por Antoin Vagol, que também some, sendo procurado então pelo amigo Amaury Consoant. A falta do "e" é a própria substância do livro, que fala da falta de substância do mundo, do mundo erodido pela ausência de sentido —e só pode haver sentido se houver literatura.

    Não tema, ó leitor, a complexidade do romance: dribladas as ardilosas citações e os trava-línguas, sobressai uma história divertidíssima, nada sisuda e jamais tratando com solenidade a literatura —para Perec, a única maneira de se esconder da morte é brincar e só pode existir literatura se o leitor entrar na brincadeira, sem dela esperar nenhum prêmio que não seja a consolação em seguir vivo:

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    O SumiçoAUTOR Georges PerecTRADUÇÃO ZéfereEDITORA AutênticaQUANTO R$ 53 (256 págs.)AVALIAÇÃO
    "O Sumiço", de Georges Perec

    "Todos, a cada minuto avançando um pouco mais no obscuro do não-dito, urdimos, ao ponto duma saturação, a configuração dum discurso o qual, quanto maior ia ficando, ia abolindo o acaso do passado, a favor dum futuro cuja solução mal podíamos vislumbrar, mas, ainda assim, iluminando o caminho aos poucos, como uma lamparina, dando ao inquisidor só pistas mínimas (...) como diria Franz Kafka: há um alvo, mas não um caminho; nominamos 'caminho' nossas dúvidas". O projeto gráfico de Diogo Droschi, brincando com palavras cruzadas, faz as orelhas do livro o encerrarem como uma camisa-de-força. Coisa de louco.

    O Sumiço
    QUANTO: R$ 53 (256 PÁGS.)
    AUTOR: GEORGES PEREC
    EDITORA: AUTÊNTICA
    TRADUÇÃO: ZÉFERE

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