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    Herança deixada pela queda do muro de Berlim norteia ficção estrangeira

    DE SÃO PAULO

    30/04/2016 02h00

    DISTÂNCIA DE RESGATE

    Seria difícil prever que, a esta altura, surgiria uma escritora como Samanta Schweblin (Buenos Aires, 1978). Sua capacidade de renovação de gêneros como o fantástico –tão ineludível a ponto de ser questionável, pois, ao mesmo tempo que o pratica, também o coloca em xeque, levando-o a ser algo totalmente novo– deve ser ovacionada.

    Afinal, uma jovem autora compreende o inquietante como poderoso instrumento aferidor de níveis –ou limites– da realidade.

    Distância de resgate é o cálculo inconsciente que uma mãe faz ao se afastar do filho. Nesta sua novela de estreia (por aqui já haviam saído os contos de "Pássaros na Boca", pela Benvirá), Schweblin relata quase que somente por diálogos a contaminação agrotóxica ocorrida em um vilarejo rural argentino.

    Tensão e contenção são as regras desse jogo, assim como o desvelamento calculado de eventos. Schweblin, ao lado da compatriota Mariana Enríquez, da norte-americana Kelly Link e da coreana Han Kang, é um nome a seguir. (JOCA REINERS TERRON)

    DISTÂNCIA DE RESGATE
    AUTOR Samanta Schweblin
    TRADUÇÃO Ivone Benedetti
    EDITORA Record
    QUANTO R$ 34,90 (144 págs.)

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    O AMOR DE MÍTIA

    "Bem poucas vezes, em minha extensa caminhada como escritor, me defrontei com um texto vigoroso como o desta novela". Assim Boris Schnaiderman aquilata seu prazer em verter para nós, do original russo, essa obra-prima de Ivan Búnin (1870-1953).

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    Emigrante da Rússia para o Sul da França, em repúdio ao regime bolchevique, Búnin todavia entretece uma narrativa permeada de encantamento nostálgico pelas paisagens naturais de seu país natal.

    Nelas, espelha as transições e ambiguidades da trajetória de um adolescente devorado pelo Eros cego e doloroso. Daí Rilke, fã do livro, exaltar o "caráter profundamente espacial" do amor de Mítia por Kátia.

    Herdeiro da tradição realista do século 19, Búnin curiosamente tinha severas ressalvas contra as histórias "pesadas e mal-escritas" de Dostoiévski". Talvez por angústia da influência, pois não deixa de nos falar desde as mesmas profundezas abissais. (CAIO LIUDVIK)

    O AMOR DE MÍTIA
    AUTOR Ivan Búnin
    TRADUÇÃO Boris Schnaiderman
    EDITORA 34
    QUANTO R$ 42 (128 págs.)

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    O PESCOÇO DA GIRAFA

    A sobrevivência do mais forte é o mote em torno do qual se estrutura a vida numa pequena cidade da Alemanha Oriental, cuja população se vê às voltas com a herança deixada pela queda do muro de Berlim.

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    No primeiro romance em edição brasileira da alemã Judith Schalansky, a professora de biologia Inge Lohmark ensina a máxima de Charles Darwin para adolescentes que vivem com fones de ouvido e celulares em punho -há algo fora do tempo nessa escola decadente, que ainda mantém mestres saudosos do comunismo.

    O anacronismo da protagonista se revela no extenso (e cansativo) uso de vocabulário das ciências naturais no texto, como se sua visão de mundo determinista pudesse dar conta das mudanças em curso.

    Intercalada por belas ilustrações da própria autora, que às vezes parecem saídas de um livro didático, o tom da narrativa é violento: as frases curtíssimas e irônicas sugerem que só os capazes sobreviverão à nova ordem dos fatos. (JOÃO PERASSOLO)

    O PESCOÇO DA GIRAFA
    AUTOR Judith Schalansky
    TRADUÇÃO Petê Rissatti
    EDITORA Alfaguara
    QUANTO R$ 42,90 (232 págs.)

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    O GRANDE DEUS PÃ

    São muito prazerosas essas narrativas consideradas imorais e degeneradas em sua época, escritas por desajustados da estirpe de Ambrose Bierce, H.P. Lovecraft e, é claro, esse famigerado Arthur Machen, geralmente para revistas populares, porque, vocês sabem, o pedante torce o nariz, mas o grande público adora histórias bizarras, de gosto duvidoso.

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    Os ianques Bierce e Lovecraft já foram lançados no Brasil; estava faltando publicarem o galês Machen. "O Grande Deus Pã", um conto de 1890 que foi expandido para uma novela em 1895, é sua obra mais comentada entre os fãs do sobrenatural.

    "A natureza é a igreja do diabo", diz a protagonista do filme "Anticristo", de Lars von Trier. Um século antes, Machen já fizera do paganismo sua teologia negativa e, da natureza, um portal para as forças irracionais.

    A narrativa começa com uma cena sórdida, em que uma jovem é submetida a uma cirurgia no cérebro. Esse experimento desencadeia o horror, ao permitir que a jovem finalmente veja o monstruoso deus. (NELSON DE OLIVEIRA)

    O GRANDE DEUS PÃ
    AUTOR Arthur Machen
    TRADUÇÃO Chico Lopes
    EDITORA Penalux
    QUANTO R$ 32 (122 págs.)

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    CORPOS DIVINOS

    Após sua morte, em 2005, foram publicados três livros inéditos do cubano, depois britânico, Guillermo Cabrera Infante: o romance "A Ninfa Inconstante" e as memórias romanceadas "Corpos Divinos" e "Mapa Dibujado por un Espía", este ainda inédito no Brasil.

    De certo modo, tudo o que Cabrera Infante escreveu, até mesmo os ensaios sobre suas paixões −cinema, música, literatura e Havana−, foram páginas de uma insistente "velada autobiografia", como ele batizou este "Corpos Divinos".

    Centrada entre o início de 1957 e os primeiros meses de 1959, a narrativa é uma coleção deliciosa de histórias e anedotas coloridas pela memória ficcional. A tensão política rendeu bons momentos, mas as páginas sobre Ernest Hemingway e a filmagem de "O Velho e o Mar" são as melhores.

    Com os recursos que sempre foram sua marca registrada −mistura equilibrada de registro culto e coloquial, jogos de palavras, muita ironia e erotismo−, o autor atualiza uma fatia da crônica de sua vida e da revolução cubana. (NELSON DE OLIVEIRA)

    CORPOS DIVINOS
    AUTOR Guillermo Cabrera Infante
    TRADUÇÃO Josely Vianna Baptista
    EDITORA Companhia das Letras
    QUANTO R$ 74,90 (624 págs.) e R$ 39,90 (e-book)

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    BONITA AVENUE

    Ler "Bonita Avenue" é como imergir num filme em realidade virtual: as descrições detalhadas dos personagens e de seus universos, aliadas a constante troca de ponto de vista do narrador, propiciam uma visão 360 graus da história, absolutamente cristalina.

    Siem Sigerius, reitor de uma universidade holandesa e experiente judoca de meia idade, descobre que sua adorada filha Jonis publica na internet ensaios fotográficos eróticos de seu corpo de ninfeta. Detalhe: o cafetão, Aaron, é namorado da garota e amigo próximo do sogro.

    Está lançada a pólvora deste thriller que se vale de um fato real, a explosão de uma fábrica de fogos de artifício na virada do milênio na cidade de Enschede, como metáfora da derrocada do núcleo familiar à primeira vista arquetípico. Impressiona a forma meticulosa e paciente como o enredo se desenvolve, assim como a constante tensão sexual latente na trama.

    Não à toa, o magnífico primeiro romance de Peter Buwalda situou o autor de largada no patamar de Jonathan Franzen e de Michel Houellebecq. (JOÃO PERASSOLO)

    BONITA AVENUE
    AUTOR Peter Buwalda
    TRADUÇÃO Cássio de Arantes Leite
    EDITORA Alfaguara
    QUANTO R$ 64,90 (535 págs.)

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    O PAPEL DE PAREDE AMARELO

    Uma obra-prima esse conto, história terrível escrita no início dos anos 1890. A autora foi tida, por décadas, como uma espécie de discípula de seu conterrâneo Edgar Allan Poe. Vê-se agora que nada tinha a ver com Poe, mas com ela própria, com a histórica condição feminina de submissão ao homem, no caso, o marido médico.

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    Marido e homem da ciência. Duplamente poderoso! A ele, só a ele, caberia curar os males da alma da esposa, profundamente deprimida com os limites que o casamento lhe impunha: limitar-se a ser dona de casa, criar filhos e só.

    Escritora americana de grande leveza e profundidade psicológica, socialista e ativista no confronto da política sexual homem-mulher (há mais de século!) é reconhecida só a pouco como alguém à frente de seu tempo.

    No início, editores recusavam-se a publicar sua obra. Publicaram só em 1892 e veio isso de que escrevia como Poe, um homem. Ela deve ter odiado! (GREGÓRIO BACIC)

    O PAPEL DE PAREDE AMARELO
    AUTOR Charlotte Perkins Gilman
    TRADUÇÃO Diogo Henriques
    EDITORA José Olympio
    QUANTO R$ 23,90 (110 págs.)

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    HISTÓRIAS DE DUAS CIDADES

    Tempos atrás, John Freeman recebeu uma polpuda herança de sua avó e subiu um ou dois andares no arranha-céu social. Mas enquanto o ex-editor da revista literária "Granta" desfrutava de um confortável apartamento recém-adquirido, do outro lado da cidade, seu irmão morava num abrigo para sem-teto.

    A bipolar Nova York está povoada de histórias semelhantes. Nessa coletânea de ensaios poéticos, ficções confessionais e reportagens ficcionais, somos convidados a conhecer um labirinto abjeto −paraíso e inferno entrelaçados−, "onde um por cento da população ganha mais de quinhentos mil dólares por ano e vinte e duas mil crianças não têm onde morar".

    É certo que Nova York só difere de São Paulo e do Rio de Janeiro em número e grau, não em gênero. Conflitos de geração e classe, xenofobia, racismo, sexismo e outros ismos atravessam os textos de David Byrne, Junot Díaz, Dave Eggers, Jonathan Safran Foer e mais uma vintena de colaboradores, incluindo o irmão sem-teto do organizador, Tim Freeman. (NELSON DE OLIVEIRA)

    HISTÓRIAS DE DUAS CIDADES
    ORGANIZADOR John Freeman
    TRADUÇÃO Paulo Afonso
    EDITORA Bertrand Brasil
    QUANTO R$ 59,90 (320 págs.)

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    PRIMEIROS CONTOS

    2015 foi o ano em que lançou-se o romance inédito perdido de Harper Lee ("Vá, Coloque um Vigia") e os contos de infância e adolescência de seu melhor amigo, Truman Capote, encontrados por acaso na Biblioteca Pública de Nova York. Mas os dois escritores, que se afastaram logo após fazerem fama no meio literário, passariam muito bem sem os livros.

    Nestes primeiros contos, percebe-se o estilo precoce de Capote e nota-se como o menino escrevia bem, muito melhor, é de se pensar, que seus colegas de sala de aula. Mas a maioria dos contos não vai muito além disso: bons textos de um autor imaturo.

    Tanto que o livro só fica em pé com a ajuda de prefácio (de Hilton Als, da "New Yorker") e posfácio (de David Ebershoff, editor), justificando sua publicação.

    Para quem quer saber do que Capote era mesmo capaz, melhor ficar com a obra lançada enquanto o autor ainda podia controlar seus editores, como os clássicos "A Sangue Frio" e "Bonequinha de Luxo". (ROBERTO TADDEI)

    PRIMEIROS CONTOS
    AUTOR Truman Capote
    TRADUÇÃO Clóvis Marques
    EDITORA José Olympio
    QUANTO R$ 32,90 (160 págs.)

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    MEMÓRIAS DE UM CASAMENTO

    Louis Begley fez sucesso quando seu livro "Sobre Schmidt" foi adaptado para o cinema, com Jack Nicholson no papel do viúvo rico transformado pela nova geração. Begley é um dos autores norte-americanos que conseguem com impressionante naturalidade retratar o mundo dos brancos anglo-saxões protestantes (os WASP) endinheirados que ainda se acreditam um modelo social para os EUA.

    Esse ranço aristocrático contamina a história de Phillip, um escritor viúvo que volta a morar em Nova York após anos em Paris, e encontra Lucy De Bourgh, uma herdeira milionária que conta a ele os infortúnios de seu casamento com um homem de classe média. Os personagens têm casas nos Hamptons, em Paris, lanchas, jogam tênis e estudaram em universidades de elite.

    A falta de ironia e distanciamento do narrador faz com que o livro soe extemporâneo, como se estivéssemos lendo uma história ultrapassada, só que nos anos George W. Bush. Uma equação que só pode funcionar na Nova York do Upper East Side. (ROBERTO TADDEI)

    MEMÓRIAS DE UM CASAMENTO
    AUTOR Louis Begley
    TRADUÇÃO Rubens Figueiredo
    EDITORA Companhia das Letras
    QUANTO R$ 44,90 (200 págs.)

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    OS PESCADORES

    Para nós, brasileiros, desconhecedores da moderna literatura da África Negra, chega este romance nigeriano, já carimbado como best-seller: traduzido para 24 idiomas e com prêmios ganhos na Etiópia e no Zimbábue, concorre agora ao Man Booker Prize, cujo resultado chega no segundo semestre.

    Chigozie Obioma soube retransformar o espaço ambiente de Akure, no oeste da Nigéria, em pura floresta, rica em sons e cores, onde quatro irmãos da etnia Igbo, pré-adolescentes, descobrem a vida e a liberdade longe do pai, funcionário de uma agência bancária distante mil quilômetros.

    O traço terceiro-mundista: um deles sonha chegar a presidente da Nigéria e encher-se de dinheiro e helicópteros. Para dar espaço à tensão, ingrediente indispensável nesse tipo de narrativa quase paradisíaca, Abulu, vidente louco, prevê a morte do mais velho, assassinado por um dos irmãos. A ler. (GREGÓRIO BACIC)

    OS PESCADORES
    AUTOR Chigozie Obioma
    TRADUÇÃO Claudio Carina
    EDITORA Globo Livros
    QUANTO R$ 39,90 (270 págs)

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    A ÚLTIMA PALAVRA

    Um jovem escritor britânico, Harry Johnson, é comissionado a escrever a biografia de um gigante literário em decadência, Mamoon Azam, indiano radicado na Inglaterra.

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    O editor responsável pelo trabalho, Rob Deveraux, quer ver o velho escritor "de calça arriada, de bunda para cima" para ensiná-lo que, apesar do talento, não é uma pessoa melhor "que medíocres descerebrados, escravos assalariados e pagadores de imposto como nós".

    O plano é faturar com a exposição do biografado septuagenário. Ao longo do livro, Harry se muda para a casa de Mamoon e da jovem esposa esbanjadora, Liana, enquanto tenta extrair detalhes da vida do autor em entrevistas constrangedoras.

    O romance, que já foi interpretado como um "roman à clef" pelas semelhanças entre Mamoon e V.S. Naipaul, só seria mesmo possível em um ambiente literário onde "se você escreve um livro de sucesso, pode viver à luz dele por dez anos". (ROBERTO TADDEI)

    A ÚLTIMA PALAVRA
    AUTOR Hanif Kureishi
    TRADUÇÃO Rubens Figueiredo
    EDITORA Companhia das Letras
    QUANTO R$ 54,90 (310 págs.)

    Edição impressa

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