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    Obra póstuma de Eduardo Coutinho incorpora silêncios, impasses e crise

    ROBERTO ALVES

    30/04/2016 02h00

    Em fevereiro de 2014, quando fomos surpreendidos pela notícia estranhamente desencontrada da morte de Eduardo Coutinho, o cineasta preparava-se para acompanhar a montagem do material filmado meses antes. Eram entrevistas realizadas com estudantes do ensino médio de escolas públicas do Rio de Janeiro.

    O fato é que essa notícia, trágica pela perda humana e pelo muito que seu trabalho significava para o cinema brasileiro, assemelhou-se a certos cortes de seus documentários: algo abrupto, que pode nos precipitar no silêncio e mistério plenos dos significados que, mais densos, tendem a escapar.

    Divulgação
    Imagem do documentário 'Últimas Conversas'
    Imagem do documentário 'Últimas Conversas'

    Na entrevista que resultou a mais curta e bela entre as que foram montadas para o filme, a conversa de Coutinho com o jovem Thiago Theodoro, ao contrário da tônica "histórias de vida" da maior parte delas, marca-se quase que inteiramente pelo tom metafísico dos temas: vida, amor e morte. Em certo momento, com o eco silencioso das questões ainda postas no ar, o jovem sorri e diz: "O silêncio ficou estranho...". Coutinho responde categoricamente: "O silêncio tem que ficar estranho!". Depois, completa: "O silêncio é ótimo! (...) Entrevista não é isso? Pode ser silêncio!".

    A montadora Jordana Berg, experimentada colaboradora do mestre, fez com que essa entrevista terminasse em corte que encerra abruptamente o plano com o rosto do rapaz. Na maior parte das outras, ao contrário, os entrevistados são convidados a sair da sala e fechar a porta antes do corte. A Coutinho também não foi dado fechar sua porta mas, como as inúmeras entrevistas que realizou, também ele pode, paradoxalmente, ser silêncio.

    No substancioso encarte que acompanha o DVD, podemos entender os meandros estéticos implicados no processo que acabou por levar "Últimas Conversas" às telas. Sintetizam-se na frase que acompanha o título: "Um filme dirigido por Eduardo Coutinho, montado por Jordana Berg e terminado por João Moreira Salles".

    A decisão de dobrar o filme sobre si mesmo, incorporando a ele, à guisa de prólogo, trechos de conversa do diretor com Jordana gravados após o quarto dia de filmagem, revela-se brilhante, pois traz à obra a problematização intrincada, a não transparência e a subjetividade próprias ao filme-ensaio. A conversa explicita densa crise. Coutinho revela-se insatisfeito com o filme que faz: ao contrário da experiência em outros longas, diz não se identificar com os entrevistados: alega a pouca memória dos jovens, a difícil de ser quebrada "armadura" com que, segundo ele, se apresentam, e revela: "Momentaneamente ou para sempre, eu perdi a ligação com o mundo que eu tinha (...). Aí, é o fim". Para recomeçar, acende mais um dos seus inesquecíveis cigarros. Como em "Moscou" (2008), obra-prima pouco valorizada de sua filmografia, o filme ameaça falhar.

    Os jovens entrevistados revelarão seguranças (poucas inseguranças!), projetos e opções de vida, mas a ideia de "crise" que se costuma associar tão superficialmente à adolescência, quem a revelará é o diretor, no ponto alto de seu percurso existencial e artístico.

    ÚLTIMAS CONVERSAS
    DIRETOR Eduardo Coutinho
    DISTRIBUIDORA IMS
    QUANTO R$ 49,90

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