• Ilustrada

    Monday, 20-May-2024 18:10:49 -03

    Crítica: Noção de justiça infalível tira força de livro nigeriano

    LUIZ BRAS
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    02/02/2013 05h41

    Um dos momentos mais irritantes da literatura universal é o desfecho edificante do romance "Crime e Castigo", de Dostoiévski.

    Raskólnikov, após dar cabo da velha agiota e de sua irmã, e fugir com as joias, é tomado pelo remorso e entrega-se à polícia.

    Existe o mundo como realmente é, em que criminosos jamais se arrependem --exceto, talvez, quando são capturados--, e o mundo como deveria ser, em que a justiça sempre triunfa. Dostoiévski optou pelo segundo.

    O nigeriano Chinua Achebe também escolheu o triunfo da justiça, ao enviar para o tribunal o jovem Obi Okonkwo, por corrupção, logo no início de "A Paz Dura Pouco".

    Diferente de Raskólnikov, Obi não teve uma crise de consciência e se entregou. Às voltas com problemas financeiros, o rapaz estava adorando receber propina. Mas caiu numa armadilha e foi preso.

    O principal dilema de qualquer representação ficcional pode ser resumido na oposição "otimismo versus pessimismo". Os proponentes do otimismo acham que uma sociedade corrompida precisa de narrativas edificantes, que retratem uma realidade melhor, a ser alcançada.

    Os do pessimismo acreditam que uma sociedade corrompida só buscará o aperfeiçoamento se for apresentada a si mesma, sem maquiagem.

    Achebe escolheu o otimismo, certamente a menos eficiente das duas armas na educação moral de um povo.

    Mas querer que ele nos desse um criminoso vitorioso, como Hannibal Lecter (psicopata sem dramas de consciência, criado por Thomas Harris), seria anacronismo.

    "Crime e Castigo" é de 1866 e "A Paz Dura Pouco", de 1960. Os leitores ainda não estavam amadurecidos para encarar a verdadeira natureza humana. Na verdade, mesmo hoje poucos estão.

    Mas é certo que o protagonista do romance de Achebe poderia ser um pouco mais ousado. Nascido numa pequena aldeia, Obi conseguiu uma bolsa para estudar na Inglaterra. Ao retornar à Nigéria, foi empregado como secretário pelo governo.

    É nessa hora que ele toma contato com uma das instituições mais sólidas da rotina burocrática: a corrupção.

    Após uma frouxa resistência inicial, o rapaz se convence, satisfeito, de que "podemos causar mais problemas recusando uma propina do que aceitando".

    A frouxidão moral de Obi é representativa da inércia geral, que faz da atávica corrupção nas repartições públicas uma prática aceitável.

    Mas, para denunciar a frouxidão moral de um extrato qualquer da sociedade, a literatura não pode se contentar apenas com personagens frouxos. Tampouco com uma justiça artificialmente infalível.

    LUIZ BRAS é autor de "Sozinho no Deserto Extremo" (Prumo).

    A PAZ DURA POUCO
    AUTOR Chinua Achebe
    EDITORA Companhia das Letras
    TRADUÇÃO Rubens Figueiredo
    QUANTO R$ 38 (200 págs.)
    AVALIAÇÃO regular

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024