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    'Scorsese tinha medo de me conhecer', conta diretor David Cronenberg em entrevista

    HENRY BARNES
    DO "GUARDIAN"

    18/09/2013 12h29

    The Guardian - Oi, David, você está aqui para falar sobre "Evolution", uma exposição itinerante dos adereços usados em seus filmes. Você tenta tornar esses objetos emblemáticos de propósito?
    David Cronenberg - Não. Você trabalha de dentro para fora. Se algo é projetado neles mais tarde, é só um benefício inesperado.

    Qual é a sensação de ver suas ideias se tornando realidade? O iPod tem algo de Cronenberg...
    Muitos dos escritores de ficção científica de minha juventude --como Arthur C Clarke-- eram muito orgulhosos de sua capacidade de prever o futuro. Mas para mim isso nunca foi motivo de empolgação. Jamais me vi como profeta.

    Todo mundo tem antenas. Algumas pessoas as ignoram. Quando você é artista, você as aproveita melhor. Caso suas antenas sejam suficientemente sensíveis, você percebe algumas coisas que são uma antecipação do futuro, quer você queira, quer não. Em "Videodrome", eu não poderia dizer que estava prevendo a Internet, mas a ideia de comunicação eletrônica interativa me parecia evidente. Parecia uma inevitabilidade, e por isso nem pensei que inventá-la fosse grande coisa.

    O que suas antenas estão captando agora? Estou pensando na notícia de que cientistas desenvolveram microcérebros...
    Sim, organoides cerebrais. A cada semana aparece algo de fantástico. A pesquisa mais pura são as coisas que parecem abstratas e inúteis, e são elas que realmente transformam a sociedade. Cada uma de nossas descobertas também é uma revelação sobre como as células trabalham. Um ser humano é, na verdade, apenas um módulo controlado pelos genes. No que tange aos seus genes, você não passa de um transmissor. Está aí a escuridão: a abordagem do gene egoísta quanto ao que um ser humano é.

    A exposição apresenta uma visão de "David Cronenberg". Você se preocupa que a imagem que pode sobreviver de você depois de sua morte não seja a da pessoa que é hoje?
    Não será. Você pode ver o que acontece a outros artistas quando morrem. É incontrolável. Houve época em que Shakespeare era considerado profundamente desimportante. Sua reputação passou por muitos ciclos, nenhum dos quais o afetou. Tudo que o afetou foi sua reputação enquanto era vivo. Não me perturbaria pensar que minha obra afundaria por sob as ondas e desapareceria totalmente, sem mais. E daí? Isso não me incomodaria.

    Você tem medo de morrer?
    Sim e não. Às vezes um suicida está só dizendo "para mim chega". Penso nisso como uma saída fantástica, sabe? Um escape. Mas é muito, muito difícil imaginar sua não existência, no entanto todos nós a experimentamos, de certa maneira, porque antes de nascermos não existíamos. Depende do momento do dia, de saber se estou com medo ou se sou capaz de aceitá-la.

    Você pensa sobre como e quando a morte pode chegar?
    Oh, com frequência. Tenho 70 anos. Conheço mais gente morta do que viva. A cada dia leio sobre alguém da minha idade que bateu as botas, e de muitas maneiras diferentes --às vezes interessantes, às vezes desinteressantes. Lembro-me de uma entrevista que dei na qual dizia que sempre que mato alguém em meus filmes, estou ensaiando minha morte. Dizendo: "Bem, como seria morrer assim?" Creio que isso continue verdade.

    Que conforto você pode encontrar, como ateu, no conhecimento de que vai morrer?
    É aceitar o caminho do universo. Todos morreremos. Todos os módulos morrerão. Tive um professor de ciências que costumava dizer: "Eu posso mudar, mas morrer é impossível". Ele estava falando da transformação de energia, de uma a outra forma. Sempre que tento me imaginar comprimido na caixa de uma dada religião, a sensação é de claustrofobia, opressão. Creio que o ateísmo é uma aceitação do que é real.

    A ideia de que você possa passar por mutação pós-morte é interessante...
    Sim. Você tem uma persona pública que está fora de seu controle. Lembro-me de que Marty Scorsese uma vez me confessou de que meus primeiros filmes o intrigavam totalmente, mas que morria de medo de me conhecer. E eu respondi: "Você é o cara que fez 'Taxi Driver' e tinha medo de me conhecer?".
    E eu pensei que, se isso podia acontecer com Marty, é compreensível que aconteça com outras pessoas. Surge confusão entre o que você é e o que seu trabalho é. Se você faz filmes assustadores, de horror, você deve ser uma pessoa horrível e assustadora.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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